Dalva Tomazzoni
Era 1982, e
eu vivia em uma velha casa de madeira, verde e amarela, na Avenida Itália,
perto da igreja de São Pelegrino, em Caxias do Sul. A casa era tão antiga – há
anos condenada - que pendia para um lado. Mas, teimosa, não caia. Quando
assomávamos à janela, as pessoas nos viam tortos também. Era engraçado. Ali
vivenciamos dias de profunda alegria e comunhão, apesar dos apertos financeiros.
Naquele então morava com meus tios, avó e primos. Foi quando iniciei meu
caminho na televisão, trabalhando na TV Caxias, como repórter.
No final de
semana era de lei passarmos a noite de sábado acordados, vendo filmes na
televisão. Enquanto a noite avançava e a gente se embolava nos cobertores, em
camas feitas no chão, a tia Dalva circulava pela casa, enredada em baldes,
rodos, panos e sabão. Sua hora de faxina era aquela, na madrugada, enquanto nós
curtíamos o Corujão. Vez em quando o barulho da limpeza parava e só escutávamos
o estalar das pipocas. Nos entreolhávamos e sorríamos. Não demorava muito e lá
vinham os pirex lotados de branquinhas, que consumíamos como lobos. Quando a
rabeirinha do sol começava a sair era a hora de a gente desligar a TV e dormir
o sono dos justos, embalados pelo bate-bate da tia, limpando. Aquela mulher
tinha o dom de fazer tudo parecer bonito, mesmo nos momentos de maior tensão ou
dor. Era mágica.
Nos dias de
semana, o almoço era sempre em família. Os guris, Kiko e Xará, chegavam da
escola e eu do trabalho. Magicamente a comida aparecia, embora ninguém visse a
tia cozinhar. De novo, o mistério. Em poucos minutos, brotavam coisas do fogão,
dos armários, tudo se ajeitava e, enquanto os pratos eram postos, alguém
começava a batucar. Um faca tocando no prato, uma colher batendo em outra
colher, as tampas de panela virando pandeiros, o tio agarrado ao violão e, num
repente, começávamos a cantar. A música enchia a casa, o pátio, a rua. Se demorasse, os guris pegavam os trompetes e
a algaravia ficava ainda maior. As donas da casa, duas senhoras bem velhinhas,
que moravam ao lado, botavam a cara na janela que dava para a nossa cozinha e
sorriam, acenando. Aquelas duas casinhas de madeira antiga da Avenida Itália
exalavam cheiro de comida caseira e bem-aventuranças.
Nas noites
de sexta-feira era a vez de chegarem os amigos da vó. Todos jogadores de pife.
Vinham com seus casacões, garrafas de café, biscoitos, e varavam a noite na
função do carteado. De vez em quando alguém se alterava. “Tão roubando”, mas
era tudo troça. As fichas eram feijões e o dinheiro que circulava era pouco.
Quando era inverno – e Caxias sabe ser frio – eles enrolavam cobertores nos pés
e seguiam o jogo até de manhã.
Naqueles
dias dos anos 80 eu tinha pouco mais de 20 anos e começava a encontrar meu
caminho na vida. Daí que a casa verde e todo aquele furdunço que era nossa
existência entre dificuldades e risadas, acabou sendo fundamental para eu
aprender a mesclar aperto com beleza. O companheirismo, a solidariedade, a
compaixão, a delicadeza, a alegria, o cuidado, todas essas pequenas coisas
costuradas na grande colcha da vida fizeram profundas marcas em mim. Aquele compartilhar
de tanto amor, construíram o que sou.
É por isso
que quando bate a tristeza, eu tiro da capa meu velho disco do Tijuana Brass -
nosso preferido - boto na vitrola, e , ao primeiro acorde, saio rodopiando pela
casa. Num átimo, me transporto para aquela velha morada na Avenida Itália, e
posso sentir os corpos brincantes de meus irmãos de alma dançando comigo, rindo
alto. Aquilo tudo era tão bom! E também posso ouvir o batucar do balde e minha
tia Dalva, com seu riso de cristal. O
mesmo riso que encontro hoje, quando compartilho com ela as delícias de um
passeio na Redenção ou de uma boa conversa.
Essa minha
tia Dalva, mágica, mãe.
Um comentário:
enchi o zóio d'água... gauderices tão familiares.
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