foto: Celso Martins
Os textos, ditos sagrados, para mim sempre foram metáforas da vida
mesma. Um jeito de contar histórias que pudessem ser entendidas pelas pessoas
simples. Arquétipos de nós mesmos, de situações históricas, de passagens da
vida que sempre se repetem, dando conta de nossa condição humana. Por isso, me
encantam, e a eles dispendo tempo. Gosto, particularmente, no novo testamento, das
parábolas de Jesus, o jovem galileu, nascido no espaço do que hoje é a
Palestina ocupada. Histórico ou não, ele tinha esse dom de falar por metáforas,
buscando encontrar o centro do amor humano. Então, é a ele que recorro para
pensar meu mundo, nessa segunda-feira gris.
Ontem voltei a ver um velho filme que tocou minha alma na infância: Ben-Hur,
com o inesquecível Charlton
Heston. É sobre um homem que
passa por todas as agruras de um tempo de invasão estrangeira em sua terra,
que perde tudo, e que arma toda uma vingança. Mas, tocado pela figura e pelo
exemplo de um “ninguém”, um andarilho, um rebelde - o homem que mais tarde veio
a saber que era Jesus - ele volta a ser
o que era, generoso e bom, recebendo assim, outras bênçãos. Uma metáfora dentro
da metáfora. Só o amor pelo outro – caído - pode salvar a nós mesmos.
Hoje, em Florianópolis, um pequeno grupo de famílias vive a dor de ser
ninguém. Rebeldes, andarilhos, sem casa, sem um lugar para descansar a cabeça,
eles buscam um lugar para viver. Premidos pelo progresso excludente, que
enriquece alguns e empobrece a maioria, eles foram expulsos de suas pequenas ou
grandes cidades e saíram atrás de um mero sobreviver. Gente do interior do
estado, de outros estados, do interior da ilha, seres humanos querendo também
um lugar no grande banquete da vida. Quem não quer?
Outro dia, unidos pelo sonho de ter sua própria casa, eles fizeram o que
tantos outros – hoje heróis nacionais – fizeram há muito tempo atrás. Ocuparam terras
devolutas, que pertencem à União. Terras abandonadas, sem uso social, e que já
estavam sendo rapinadas por alguns espertos. Esses - autoridades, empresários, de
ternos bem cortados – nunca foram questionados. Cercaram as terras, forjaram
escrituras e bem logo a venderiam para que se transformassem em um campo de golfe,
esporte praticado por ricos senhores.
O que fizeram então os sepulcros caiados (limpos por fora e podres por
dentro) - a saber, a mídia e algumas pessoas “de bem”? Tal qual a massa raivosa
diante de Pilatos, entre o empresário ladrão e as famílias sem porvir, escolheram
o empresário para “libertar”. Já para as famílias empobrecidas, gritavam: “Crucifiquem-nas”.
A história se repetindo como uma dolorosa tragédia.
Retiradas da terra ocupada na beira do Rio Ratones, as famílias da
Ocupação Amarildo viveram a sua “paixão”. Casas derrubadas, tralhas recolhidas,
foram buscar abrigo em outros espaços. Mas, eram terras de outrem e ali,
ninguém queria tirar espaço de ninguém. Seguiram sua via dolorosa, buscando
outro recanto de amparo, que fosse público, devoluto, sem ninguém.
Acharam novas terras dentro da ilha da magia, essas, também tomadas
desde há séculos por ladrões a soldo da coroa portuguesa. Terras usurpadas de
povos indígenas e que, por força de lei de um povo invasor, acabaram se
legalizando como de um estado, ou de alguém. E lá se foram os Amarildos, com
suas tralhas, seus bichos, crianças e esperanças para o bairro do Rio Vermelho.
Ainda um espaço cedido, ainda um lugar não definitivo. Uma passagem, um
descanso, até que venha a vitória.
Não imaginavam esses caminhantes, essas almas grávidas de justiça, que
ali encontrariam outra vez alguns poucos representantes das famílias “de bem” a levantar os braços, bramindo:
“crucifiquem-nas”. Nos olhos inflamados desses “bons cristãos”, um ódio sem
medida contra aquilo que desconhecem. Não sabem nada daquelas pessoas, a não
ser o que lhes reproduz a mídia e as hipócritas vozes dos fariseus – esses sepulcros
caiados. E, tal qual autômatos sem cérebro, incorporam a sentença de que
aqueles são bandidos, vagabundos, gente desqualificada, uma ameaça ao seu bem
viver.
Hoje, informes de colegas que lá estão dão conta de que alguns moradores do Rio
Vermelho estão querendo expulsar, eles mesmos, os Amarildos da comunidade. Não
é a polícia, são os moradores. Pessoas ditas “de bem”, que querem garantir “a
paz” para suas famílias. Alguns chegaram a verbalizar: “A PM que deixe eles com
a gente”. Ou seja, estão dispostos, inclusive, a atos de violência contra uma
gente que nem conhecem. De dentro da ocupação, os olhinhos assustados das
crianças observam, estupefatos. Que crime cometeram? Por que não podem morar
como esses que ali hoje já têm as suas casas? Difícil explicar.
“Eu comprei a minha casa com muito sacrifício. Eles que vão trabalhar!”
Essa é a frase mais dita nos comentários dos textos que tratam do tema. Mas
como falar do outro sem saber dos dramas que tiveram, e ainda têm, que passar?
Como comparar as vidas? E por que não apoiar aqueles que, diante de tanta falta
e exclusão, ainda encontram forças para enfrentar batalha tão desigual?
Vejo essas tristes criaturas como aqueles que na velha judeia cuspiram e
apedrejaram o galileu, apenas porque assim lhes disseram os sacerdotes.
Incapazes de pensar por si mesmo, incapazes do gesto amoroso de amparar o que
sofre, incapazes da compaixão. Pessoas tomadas por um ódio cego, insuflado desde
fora, que nem mesmo é delas.
Enquanto isso, em algum lugar bem protegido, os que se adonaram da
cidade, os que roubaram terras, ou que as compraram a preço de banana de
nativos enganados, festejam. Não precisam sequer enviar as tropas policiais. Fizeram
o que era preciso. Criaram o ódio aos desgraçados, dividiram os que sofrem dos
mesmos infortúnios. Eles agora que se matem. Ao final, sobrará mais para eles
mesmos.
Eu, que creio na força das gentes, sei que, como na história do galileu,
haverá de chegar a páscoa. A hora do renascer. Ainda que tudo pareça conspirar
para o fim, ainda que crucifiquem “os cabeludos rebeldes”, o povo unido haverá de levar adiante esse sonho. E
ele vai vingar.
Amarildos! Firmes!
Nenhum comentário:
Postar um comentário