Alzheimer/Velhice

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Um tempo, em Caxias

Dalva Tomazzoni 

Era 1982, e eu vivia em uma velha casa de madeira, verde e amarela, na Avenida Itália, perto da igreja de São Pelegrino, em Caxias do Sul. A casa era tão antiga – há anos condenada - que pendia para um lado. Mas, teimosa, não caia. Quando assomávamos à janela, as pessoas nos viam tortos também. Era engraçado. Ali vivenciamos dias de profunda alegria e comunhão, apesar dos apertos financeiros. Naquele então morava com meus tios, avó e primos. Foi quando iniciei meu caminho na televisão, trabalhando na TV Caxias, como repórter.

No final de semana era de lei passarmos a noite de sábado acordados, vendo filmes na televisão. Enquanto a noite avançava e a gente se embolava nos cobertores, em camas feitas no chão, a tia Dalva circulava pela casa, enredada em baldes, rodos, panos e sabão. Sua hora de faxina era aquela, na madrugada, enquanto nós curtíamos o Corujão. Vez em quando o barulho da limpeza parava e só escutávamos o estalar das pipocas. Nos entreolhávamos e sorríamos. Não demorava muito e lá vinham os pirex lotados de branquinhas, que consumíamos como lobos. Quando a rabeirinha do sol começava a sair era a hora de a gente desligar a TV e dormir o sono dos justos, embalados pelo bate-bate da tia, limpando. Aquela mulher tinha o dom de fazer tudo parecer bonito, mesmo nos momentos de maior tensão ou dor. Era mágica.

Nos dias de semana, o almoço era sempre em família. Os guris, Kiko e Xará, chegavam da escola e eu do trabalho. Magicamente a comida aparecia, embora ninguém visse a tia cozinhar. De novo, o mistério. Em poucos minutos, brotavam coisas do fogão, dos armários, tudo se ajeitava e, enquanto os pratos eram postos, alguém começava a batucar. Um faca tocando no prato, uma colher batendo em outra colher, as tampas de panela virando pandeiros, o tio agarrado ao violão e, num repente, começávamos a cantar. A música enchia a casa, o pátio, a rua.  Se demorasse, os guris pegavam os trompetes e a algaravia ficava ainda maior. As donas da casa, duas senhoras bem velhinhas, que moravam ao lado, botavam a cara na janela que dava para a nossa cozinha e sorriam, acenando. Aquelas duas casinhas de madeira antiga da Avenida Itália exalavam cheiro de comida caseira e bem-aventuranças.

Nas noites de sexta-feira era a vez de chegarem os amigos da vó. Todos jogadores de pife. Vinham com seus casacões, garrafas de café, biscoitos, e varavam a noite na função do carteado. De vez em quando alguém se alterava. “Tão roubando”, mas era tudo troça. As fichas eram feijões e o dinheiro que circulava era pouco. Quando era inverno – e Caxias sabe ser frio – eles enrolavam cobertores nos pés e seguiam o jogo até de manhã.

Naqueles dias dos anos 80 eu tinha pouco mais de 20 anos e começava a encontrar meu caminho na vida. Daí que a casa verde e todo aquele furdunço que era nossa existência entre dificuldades e risadas, acabou sendo fundamental para eu aprender a mesclar aperto com beleza. O companheirismo, a solidariedade, a compaixão, a delicadeza, a alegria, o cuidado, todas essas pequenas coisas costuradas na grande colcha da vida fizeram profundas marcas em mim. Aquele compartilhar de tanto amor, construíram o que sou.

É por isso que quando bate a tristeza, eu tiro da capa meu velho disco do Tijuana Brass - nosso preferido - boto na vitrola, e , ao primeiro acorde, saio rodopiando pela casa. Num átimo, me transporto para aquela velha morada na Avenida Itália, e posso sentir os corpos brincantes de meus irmãos de alma dançando comigo, rindo alto. Aquilo tudo era tão bom! E também posso ouvir o batucar do balde e minha tia Dalva, com seu riso de cristal.  O mesmo riso que encontro hoje, quando compartilho com ela as delícias de um passeio na Redenção ou de uma boa conversa.

Essa minha tia Dalva, mágica, mãe.

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