Alzheimer/Velhice

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Os Amarildos, firmes!


foto: Celso Martins

Os textos, ditos sagrados, para mim sempre foram metáforas da vida mesma. Um jeito de contar histórias que pudessem ser entendidas pelas pessoas simples. Arquétipos de nós mesmos, de situações históricas, de passagens da vida que sempre se repetem, dando conta de nossa condição humana. Por isso, me encantam, e a eles dispendo tempo. Gosto, particularmente, no novo testamento, das parábolas de Jesus, o jovem galileu, nascido no espaço do que hoje é a Palestina ocupada. Histórico ou não, ele tinha esse dom de falar por metáforas, buscando encontrar o centro do amor humano. Então, é a ele que recorro para pensar meu mundo, nessa segunda-feira gris.

Ontem voltei a ver um velho filme que tocou minha alma na infância: Ben-Hur, com o inesquecível Charlton Heston. É sobre um homem que passa por todas as agruras de um tempo de invasão estrangeira em sua terra, que perde tudo, e que arma toda uma vingança. Mas, tocado pela figura e pelo exemplo de um “ninguém”, um andarilho, um rebelde - o homem que mais tarde veio a saber que era Jesus -  ele volta a ser o que era, generoso e bom, recebendo assim, outras bênçãos. Uma metáfora dentro da metáfora. Só o amor pelo outro – caído - pode salvar a nós mesmos.

Hoje, em Florianópolis, um pequeno grupo de famílias vive a dor de ser ninguém. Rebeldes, andarilhos, sem casa, sem um lugar para descansar a cabeça, eles buscam um lugar para viver. Premidos pelo progresso excludente, que enriquece alguns e empobrece a maioria, eles foram expulsos de suas pequenas ou grandes cidades e saíram atrás de um mero sobreviver. Gente do interior do estado, de outros estados, do interior da ilha, seres humanos querendo também um lugar no grande banquete da vida. Quem não quer?

Outro dia, unidos pelo sonho de ter sua própria casa, eles fizeram o que tantos outros – hoje heróis nacionais – fizeram há muito tempo atrás. Ocuparam terras devolutas, que pertencem à União. Terras abandonadas, sem uso social, e que já estavam sendo rapinadas por alguns espertos. Esses - autoridades, empresários, de ternos bem cortados – nunca foram questionados. Cercaram as terras, forjaram escrituras e bem logo a venderiam para que se transformassem em um campo de golfe, esporte praticado por ricos senhores.  

O que fizeram então os sepulcros caiados (limpos por fora e podres por dentro) - a saber, a mídia e algumas pessoas “de bem”? Tal qual a massa raivosa diante de Pilatos, entre o empresário ladrão e as famílias sem porvir, escolheram o empresário para “libertar”. Já para as famílias empobrecidas, gritavam: “Crucifiquem-nas”. A história se repetindo como uma dolorosa tragédia.  

Retiradas da terra ocupada na beira do Rio Ratones, as famílias da Ocupação Amarildo viveram a sua “paixão”. Casas derrubadas, tralhas recolhidas, foram buscar abrigo em outros espaços. Mas, eram terras de outrem e ali, ninguém queria tirar espaço de ninguém. Seguiram sua via dolorosa, buscando outro recanto de amparo, que fosse público, devoluto, sem ninguém.

Acharam novas terras dentro da ilha da magia, essas, também tomadas desde há séculos por ladrões a soldo da coroa portuguesa. Terras usurpadas de povos indígenas e que, por força de lei de um povo invasor, acabaram se legalizando como de um estado, ou de alguém. E lá se foram os Amarildos, com suas tralhas, seus bichos, crianças e esperanças para o bairro do Rio Vermelho. Ainda um espaço cedido, ainda um lugar não definitivo. Uma passagem, um descanso, até que venha a vitória.

Não imaginavam esses caminhantes, essas almas grávidas de justiça, que ali encontrariam outra vez alguns poucos representantes das famílias “de bem” a levantar os braços, bramindo: “crucifiquem-nas”. Nos olhos inflamados desses “bons cristãos”, um ódio sem medida contra aquilo que desconhecem. Não sabem nada daquelas pessoas, a não ser o que lhes reproduz a mídia e as hipócritas vozes dos fariseus – esses sepulcros caiados. E, tal qual autômatos sem cérebro, incorporam a sentença de que aqueles são bandidos, vagabundos, gente desqualificada, uma ameaça ao seu bem viver.

Hoje, informes de colegas que lá estão dão conta de que alguns moradores do Rio Vermelho estão querendo expulsar, eles mesmos, os Amarildos da comunidade. Não é a polícia, são os moradores. Pessoas ditas “de bem”, que querem garantir “a paz” para suas famílias. Alguns chegaram a verbalizar: “A PM que deixe eles com a gente”. Ou seja, estão dispostos, inclusive, a atos de violência contra uma gente que nem conhecem. De dentro da ocupação, os olhinhos assustados das crianças observam, estupefatos. Que crime cometeram? Por que não podem morar como esses que ali hoje já têm as suas casas? Difícil explicar.

“Eu comprei a minha casa com muito sacrifício. Eles que vão trabalhar!” Essa é a frase mais dita nos comentários dos textos que tratam do tema. Mas como falar do outro sem saber dos dramas que tiveram, e ainda têm, que passar? Como comparar as vidas? E por que não apoiar aqueles que, diante de tanta falta e exclusão, ainda encontram forças para enfrentar batalha tão desigual?

Vejo essas tristes criaturas como aqueles que na velha judeia cuspiram e apedrejaram o galileu, apenas porque assim lhes disseram os sacerdotes. Incapazes de pensar por si mesmo, incapazes do gesto amoroso de amparar o que sofre, incapazes da compaixão. Pessoas tomadas por um ódio cego, insuflado desde fora, que nem mesmo é delas.

Enquanto isso, em algum lugar bem protegido, os que se adonaram da cidade, os que roubaram terras, ou que as compraram a preço de banana de nativos enganados, festejam. Não precisam sequer enviar as tropas policiais. Fizeram o que era preciso. Criaram o ódio aos desgraçados, dividiram os que sofrem dos mesmos infortúnios. Eles agora que se matem. Ao final, sobrará mais para eles mesmos.

Eu, que creio na força das gentes, sei que, como na história do galileu, haverá de chegar a páscoa. A hora do renascer. Ainda que tudo pareça conspirar para o fim, ainda que crucifiquem “os cabeludos rebeldes”, o povo  unido haverá de levar adiante esse sonho. E ele vai vingar.

Amarildos! Firmes!


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