A proposta do curso |
Minha mãe era católica e tinha por hábito ir à missa todos os
sábados na Igreja Matriz, em São Borja. Eu, criança, preferia mil vezes passear
com o pai durante aquela hora em que ela ficava na igreja . Íamos os três
irmãos empoleirados no velho fusca rodando até o Paso, nosso passeio favorito.
Dávamos uma espiada no rio Uruguai e voltávamos para esperar a mãe em frente à
igreja. Se a missa demorava a gente se esbaldava no parquinho. Mas, tinha
sábados que a mãe não ia à catedral e sim à capelinha do Hospital Infantil.
Então a gente tinha de ficar lá dentro com ela. Só que lá a missa era
diferente. O padre não se importava se as crianças fizessem barulho, ou corressem
pela capela. Ele ainda incentivava as pessoas a falar durante o sermão. E a
maneira como ele falava de Jesus era bem diferente. Naquele tempo eu não sabia,
mas os padres dali eram da teologia da libertação.
Foi assim que eu fui conhecendo aquela figura pregada na
cruz. Pouco a pouco, o Jesus torturado e morto passou a ser uma proposta de
vida. Havia dado sua vida por nós para que a gente não precisasse sofrer com
governos ruins, com fome, com miséria,
com falta de saúde, falta de moradia. Ele tinha vindo pra terra pra dizer que a
vida tem de ser boa aqui e agora, e não depois da morte. Ele era um cara que
andava com os rejeitados, que comia nas cumbucas dos empobrecidos, que abria os
olhos das pessoas para que elas vissem a realidade mesma, saindo da escuridão
do medo e da dor. A mãe e suas missas de libertação me deixaram esse legado,
jesuânico, que junta o amor à libertação.
Então, hoje, atordoada, vi essa proposta de curso, no
currículo da Administração, que apareceu na Universidade da Fronteira Sul, em Santa
Catarina, a mesma para a qual o presidente do país nomeou um interventor. E,
segundo a revista Carta Capital, o ministrante da proposta é o próprio
interventor. Uma disciplina optativa, ministrada em 2013 e 2014. O curso se propõe discutir coaching (?), espiritualidade e gestão,
fundamentos de liderança numa perspectiva de espiritualidade. Ou seja, uma
ementa sobre como criar igrejas e lucrar com elas. Na bibliografia livros como “Os
métodos de administração de Jesus” e “Jesus coach”.
Jesuânica que sou, me senti ultrajada. Pude ver o rosto
amargurado de Jesus sendo usado para coisa tão sórdida, que é o engano e o
roubo de pessoas que sofrem. E isso é ensinado numa universidade pública, secular.
Fosse uma escola dos neopentecostais eu igualmente odiaria, mas entenderia. Com todos os caralhos, Jesus não é coaching
(treinador), seja lá o que isso significa. Não andou pelo mundo para treinar
pessoas, nem para ensinar como administrar os bens dos incautos. Veio nos dizer
que ao assumir sua condição humana, assumia nossa dor não para eternizá-la, mas
para suprimi-la. Veio mostrar, com seus atos, o valor da partilha, do amor, da
solidariedade, da comunhão com o outro, caído.
Aí vêm uns vigaristas de marca maior, usando dessa figura
arquetípica, mítica e generosa, para ganhar dinheiro? Como pode um cristão
aceitar uma parada dessas? Como podem deturpar de tal forma uma ideia tão pura?
Inaceitável. É inaceitável que haja uma cadeira dessas numa universidade
pública e laica. E é inaceitável que se use Jesus para uma coisa tão baixa, tão
descolada de seus propósitos.
Hoje, ainda chocada com essa escrotidão, eu certamente
encontrarei com Jesus, no fim do dia, para uma charla. E sei que ambos
choraremos. Porque sabemos que o presente precioso da vida é o livre arbítrio e
que os deuses existem para nos indicar o caminho do bem-viver. Nós é que
escolhemos para onde ir. É dramático que essa gente sem escrúpulos siga usando
da dor das gentes, em nome de Jesus, para encher as burras de grana.
Acordem, cristãos. Jesus não é coaching. Jesus é um cara que
andou por aí a nos dizer: lutem pela vida boa, lutem contra os opressores,
partilhem as riquezas, amem, desfrutem do grande jardim. E sabem do que mais?
Ele não construiu igrejas, ele não tem conta na Suíça, ele não mora em mansões
com torneiras de ouro, ele não tem jatinhos para voar pelo mundo, ele nunca
roubou um centavo de ninguém. Ele morreu. Morreu como um de nós, trabalhador,
empobrecido e acusado como um criminoso. Ele morreu. E voltou à energia
infinita.
Energia que usaremos para derrocar os vilões do amor.
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