Alzheimer/Velhice

terça-feira, 3 de setembro de 2019

Os vendilhões do templo seguem aí

A proposta do curso



Minha mãe era católica e tinha por hábito ir à missa todos os sábados na Igreja Matriz, em São Borja. Eu, criança, preferia mil vezes passear com o pai durante aquela hora em que ela ficava na igreja . Íamos os três irmãos empoleirados no velho fusca rodando até o Paso, nosso passeio favorito. Dávamos uma espiada no rio Uruguai e voltávamos para esperar a mãe em frente à igreja. Se a missa demorava a gente se esbaldava no parquinho. Mas, tinha sábados que a mãe não ia à catedral e sim à capelinha do Hospital Infantil. Então a gente tinha de ficar lá dentro com ela. Só que lá a missa era diferente. O padre não se importava se as crianças fizessem barulho, ou corressem pela capela. Ele ainda incentivava as pessoas a falar durante o sermão. E a maneira como ele falava de Jesus era bem diferente. Naquele tempo eu não sabia, mas os padres dali eram da teologia da libertação.

Foi assim que eu fui conhecendo aquela figura pregada na cruz. Pouco a pouco, o Jesus torturado e morto passou a ser uma proposta de vida. Havia dado sua vida por nós para que a gente não precisasse sofrer com governos ruins, com fome, com  miséria, com falta de saúde, falta de moradia. Ele tinha vindo pra terra pra dizer que a vida tem de ser boa aqui e agora, e não depois da morte. Ele era um cara que andava com os rejeitados, que comia nas cumbucas dos empobrecidos, que abria os olhos das pessoas para que elas vissem a realidade mesma, saindo da escuridão do medo e da dor. A mãe e suas missas de libertação me deixaram esse legado, jesuânico, que junta o amor à libertação.

Então, hoje, atordoada, vi essa proposta de curso, no currículo da Administração, que apareceu na Universidade da Fronteira Sul, em Santa Catarina, a mesma para a qual o presidente do país nomeou um interventor. E, segundo a revista Carta Capital, o ministrante da proposta é o próprio interventor. Uma disciplina optativa, ministrada em 2013 e 2014. O curso se propõe discutir coaching (?), espiritualidade e gestão, fundamentos de liderança numa perspectiva de espiritualidade. Ou seja, uma ementa sobre como criar igrejas e lucrar com elas. Na bibliografia livros como “Os métodos de administração de Jesus” e “Jesus coach”.

Jesuânica que sou, me senti ultrajada. Pude ver o rosto amargurado de Jesus sendo usado para coisa tão sórdida, que é o engano e o roubo de pessoas que sofrem. E isso é ensinado numa universidade pública, secular. Fosse uma escola dos neopentecostais eu igualmente odiaria, mas entenderia.  Com todos os caralhos, Jesus não é coaching (treinador), seja lá o que isso significa. Não andou pelo mundo para treinar pessoas, nem para ensinar como administrar os bens dos incautos. Veio nos dizer que ao assumir sua condição humana, assumia nossa dor não para eternizá-la, mas para suprimi-la. Veio mostrar, com seus atos, o valor da partilha, do amor, da solidariedade, da comunhão com o outro, caído.

Aí vêm uns vigaristas de marca maior, usando dessa figura arquetípica, mítica e generosa, para ganhar dinheiro? Como pode um cristão aceitar uma parada dessas? Como podem deturpar de tal forma uma ideia tão pura? Inaceitável. É inaceitável que haja uma cadeira dessas numa universidade pública e laica. E é inaceitável que se use Jesus para uma coisa tão baixa, tão descolada de seus propósitos.

Hoje, ainda chocada com essa escrotidão, eu certamente encontrarei com Jesus, no fim do dia, para uma charla. E sei que ambos choraremos. Porque sabemos que o presente precioso da vida é o livre arbítrio e que os deuses existem para nos indicar o caminho do bem-viver. Nós é que escolhemos para onde ir. É dramático que essa gente sem escrúpulos siga usando da dor das gentes, em nome de Jesus, para encher as burras de grana.

Acordem, cristãos. Jesus não é coaching. Jesus é um cara que andou por aí a nos dizer: lutem pela vida boa, lutem contra os opressores, partilhem as riquezas, amem, desfrutem do grande jardim. E sabem do que mais? Ele não construiu igrejas, ele não tem conta na Suíça, ele não mora em mansões com torneiras de ouro, ele não tem jatinhos para voar pelo mundo, ele nunca roubou um centavo de ninguém. Ele morreu. Morreu como um de nós, trabalhador, empobrecido e acusado como um criminoso. Ele morreu. E voltou à energia infinita.

Energia que usaremos para derrocar os vilões do amor.

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