Escrito em 1990, esse pequeno conto narra a realidade das famílias que ocupavam as margens da Via Expressa, na entrada de Florianópolis. Um tempo de intensa luta por moradia. Esperidião Amin era o prefeito, logo substituído pelo seu vice Bulcão Viana.
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Nos barracos da Via Expressa o
clima é de aparente calma. Algumas pessoas estão sentadas em frente das
casinhas, espantando o calor. No boteco, improvisado no barraco do Zé Pedro, os
homens tomam a pinga do fim de tarde, fazendo hora para não voltar para casa. O
trabalho já foi duro e, agora, aturar mulher e filho, é “dose pra leão”, diz Antoninho,
um branco azedo, conhecido na comunidade por viver brindando com sopapos a sua
mulher Otávia.
Carlos
Alberto também passa pelo boteco. É ali que fica sabendo das fofocas. Como ele
trabalha de servente de pedreiro na ilha, fica fora o dia todo. Dentro do bar a
discussão está acirrada. Todos falam sobre os ratos que andam competindo com as
pessoas pelo espaço na favela. Euzébio, um negro forte, de voz arrastada, diz
que é preciso fazer uma cruzada: “vâmo pegá uma turma e saí por aí matando tudo
que é rato que a gente encontrá”. Todos têm uma ideia brilhante e falam sem
parar, esquentados pela pinga. Enquanto isso, dois ratos enormes passam pra lá
e pra cá, indiferentes à discussão, roubando açúcar do saco que fica sob o
balcão.
Carlos lembra
os dois filhinhos, que já foram mordidos por rato, e a raiva vai tomando conta.
Ele sai do bar e vai em direção à sua casa, um amontoado de tábuas velhas,
coberta com pedaços de telha e lona preta. Ritinha está sentada no degrau da
porta. Um filho no chão e o outro no colo. Em volta da casa, um valo fedorento
deixa passar todo o esgoto que vem dos apartamentos do lado contrário à Via
Expressa. Rita tem os olhos arregalados na escuridão. Está com medo.
- Trouxe
vela? – pergunta com a voz firme, sem ternura.
- Trouxe! –
responde secamente o garoto, que já é homem apesar dos 18 anos apenas. Ele
entra e acende a vela. Só aí Ritinha se mexe. Bota os filhos na cama e vai
preparar a comida para o seu homem. Estão casados há dois anos. Ela tinha 15 e
ele 16. Duas crianças que se agarraram, com medo de ficar sós na vida. Sem pai
nem mãe ela só tinha um destino: virar puta. Mas ele, que há muito tempo a
espiava convidou-a para morar junto. Ela aceitou. Gostava dele, era carinhoso,
bom, trabalhador. Quando ela teve o primeiro filho, estava com medo, e ele
ficou o tempo todo do seu lado, vigiando, enquanto a parteira Maria lutava para
tirar de dentro o guri que teimava em não sair.
A vida até
que corria tranquila por ali, mas agora tinha os ratos que andavam roubando a
paz no barraco.
- Será que
ele não pode fazer nada – rumina a menina, enquanto mexe devagar uma mistura de
arroz, feijão e macarrão branco.
Carlos está
estirado na cama. Também pensa nos ratos. Sabe que Rita tem medo, mas ele não
dá conta de matar todos eles. Bem que queria, mas eles são muitos, aparecem sem
que se possa fazer nada. Devia ser por causa da sujeira que tem ali, o esgoto,
e o lixão lá atrás. Já tinham reclamado na prefeitura, mas nada fora feito. Era
preciso que eles fizessem uma limpeza geral.
Rita está de
costas, perdida em pensamentos e Carlos olha fixo para sua bunda. Gosta dela,
ainda mais quando estão na cama. Bem que ela podia não ficar tão emburrada.
- Semana que
vem vou puxar um rabicho do poste de luz, então ponho luz aqui em casa e compro
uma televisão. Ela vai gostar – pensa feliz.
Na
madrugada, quando já estão deitados, Rita ouve um gemido fraquinho. Por um
segundo, sente-se morrer.
- São os
ratos – assombra-se.
Corre para a
vela, acende e joga a luz sobre as crianças. O maiorzinho dorme na cama com
eles, está bem. A pequenina está num berço improvisado com restos de cadeiras.
Quando a luz da vela chega ao bebê, ela sente o terror invadir o seu corpo. Um
rato está grudado na cabecinha que a criança mexe devagar, com um choro miúdo.
Nesta hora o medo se vai e Rita avanço no rato com as duas mãos, puxa com
força, tentando tirá-lo da cabeça da filha. O rato resiste, finca os dentinhos.
O bebê chora, Rita também, mas não larga o bicho. Pega um pedaço de pau que
está no chão e bate. O rato solta a criança e a mulher geme baixinho enquanto
levanta a filha e a encosta contra o peito, as duas chorando. Na cama, o marido
e o filho sonham.
Quando o dia
chega Carlos encontra Rita sentada, com a filha no colo, chorando mansinho.
- O que foi?
- pergunta. Ela conta, sem soluços, o choro caindo salgado e quieto. Ele fica
puto, não vai trabalhar. Pega uma pá, e sai para limpar o terreno.
- Hoje acabo
com esse lixo – resmunga entredentes. Os restos de esgoto estão por toda a
parte. Ele se enfia no meio da merda, da sujeira, e vai cavando uma vala em
volta do barraco. Depois, entra em casa e vai tirando tudo o que tem para fora.
Limpa cada canto, tira tudo o quanto é papel velho, pano sujo, tudo. Rita
assiste assustada aquela faxina toda, mas não diz nada. Esperava por isso,
queria isso.
Já vai longe
o meio dia quando Carlos termina a limpeza. Vai à venda, compra veneno para
ratos e espalha em cada cantinho da casa.
- Cuida pras
crianças não tocá – orienta a mulher.
Passam dois
dias inteiros sem que apareça qualquer rato. Carlos puxou o rabicho do poste e
agora tem luz na casa. As coisas vão melhorar, pensa a mulher. Mas naquela
tarde, o marido chega doente. Tem dor de cabeça e muita febre. Rita se apavora
e chama a sogra. Levam-no para o hospital, pois nenhum remédio acaba com a dor.
Lá, o médico diz que não é nada, só um problema de estômago, e manda de volta
pra casa. Mas a dor não vai embora, e ainda tem o vômito, a febre alta.
No outro
dia, volta de novo para o hospital. Mais um pouco de remédio para estômago.
Aquilo não estava certo. Carlos enfraquece, perde o prumo. Rita se apavora e
leva para outro hospital, afinal, já se iam três dias naquele sofrimento e
aquele homem era tudo o que ela tinha.
No Hospital
Regional, outro médico examina e manda internar. É grave.
- O que ele
tem? – indaga a menina. A pergunta fica sem resposta.
- Vamos
fazer alguns exames – diz o médico.
Três dias
depois o garoto está morto. Diagnóstico: Leptospirose. Uma doença causada por
ratos. Carlos deve ter se contaminado quando limpava as valas do esgoto em
volta da casa. A urina do rato, em contato com alguma ferida, fora a sua
sentença de morte. Isso, aliado ao descaso da saúde pública que não se importa
muito quando o paciente é pobre e preto.
Na Via
Expressa, durante o enterro do menino (tinha só 18 anos), o clima era de
revolta. Tinham um morto naquela batalha dura contra os ratos, e era um deles,
gente. Ritinha, agarrada aos dois filhos, já não chorava mais. Tinha medo.
Desses medos mudos de quem nada espera. A casa estava limpa, a vala também. Já
não tinha ratos a morder cabeças. Mas, até quando? Os esgotos continuavam
correndo no meio da comunidade. Os ratos voltariam. E quando isso acontecesse,
Carlos não estaria mais ali.
Naquela
noite, a primeira sem ele, a vizinha trouxe uma televisão, “que é pra menina se
distrair”. Na hora do jornal, o prefeito da cidade falava de um novo projeto.
Era a construção da marina na Barra, “onde os barcos vão poder atracar sem
problemas, com muito mais conforto”, ressaltava a cara branca no vídeo.
Foi só aí
que Rita chorou. Chorou de medo, de dor, de solidão. Ela, menina, entregue aos
ratos, não tinha nenhum portinho onde ancorar. Seu único porto estava agora
enterrado. Não tinha mais ninguém. E enquanto uma menina amansava sua dor lá
para os lados da Via Expressa, a cidade continuava a brilhar, longe, além da
ponte, fria e bela...
Pouco tempo
depois a polícia derrubava todos os barracos da Via Expressa, que era para
deixar a cidade com cara bonita para os turistas. Nem ratos, nem gente, nada
mais assomava no espaço. Era só um verde artificial, de grama nova, que perdura
até hoje.