sábado, 24 de junho de 2017

Seu Getúlio, patrimônio do Campeche


Seu Getúlio, com Amaro Manoel em mais uma festa no rancho


O bairro do Campeche, em Florianópolis, é um lugar especial. Aqui convivem histórias de belezas e de lutas. E nessas areias vicejam pessoas especiais. Foi no Campeche que os aviões da Aeropostale pousaram num tempo distante e foi aqui que os pés de Saint Exupery caminharam entre os pescadores.  Foi o Campeche o primeiro bairro da cidade a construir um plano diretor, para si e para todos, e foi o Campeche que abrigou o Bar do Chico, espaço de construção de tantas batalhas, morada das lutas e das festas comunitárias.

Por isso, quando vim morar no Campeche, tinha certo temor: como entrar nessa comunidade tão antiga e tão peculiar? Como, vinda desde fora, ocupar espaço no coração e na casa de pessoas tão significativas para mim e para a cidade. Já conhecia o Lázaro Daniel, o Hugo, a Débora, Janice, Fernando, parceiros de lutas na cidade. Mas, a planície era grande, e os núcleos nativos são fechados. Não seria coisa fácil.

Pois foi bem na beira do mar, aberto para a imensidão, que encontrei o caminho. O rancho de canoa. Ali, um pescador, conhecido como filho do seu Deca, iniciava um projeto de música com a juventude local. Pescador, músico e aposentado da Aeronáutica, ele decidiu fazer do rancho um espaço de ensino, buscando atrair os jovens para uma vivência comunitária mediada pela música.

Tinham acabado de chegar de Minas, dois meninos que vinham viver comigo, atrás do sonhos do estudar, um sobrinho de sangue e outro do coração. Estilo meio bicho-grilo, cabelo comprido, e aquele jeito quietinho e cismador. Falei do projeto e lá foram eles procurar o pescador para se inscrever. Bateram na casa dele. Pediram uma vaga. Ele olhou, desconfiado, aqueles guris estranhos. Franziu a testa e disse: “as vagas já foram preenchidas”. Os guris amuaram, carinha de tristes. Ele pigarreou, fez um suspense e finalizou: “mas vou dar uma chance pra vocês, mineiros”.

No dia seguinte lá estavam os guris no histórico rancho de pesca, começando, com seu Getúlio Inácio, esse projeto de música no rancho da canoa, que sobrevive até hoje. Foi ali que o Rubens aprendeu a tocar clarinete e o Renato, o sax. E foi ali que a vida do Campeche começou a se abrir também para mim. Cada apresentação dos músicos, cada festa, cada ensaio ia aproximando a gente – de fora – dos locais. Os pescadores que rodeavam o rancho, ajudando no projeto, os moradores que chegavam para a missa de abertura da pesca, os nativos históricos, todos e cada um abrindo espaço para que a gente também pudesse vivenciar esse sentimento de pertencimento.  O rancho do Getúlio foi o portal.

O trabalho do seu Getúlio com a gurizada e com a cultura local foi crescendo a tal ponto de que hoje ele não é mais apenas o filho do seu Deca, outro personagem histórico local. Ele é o Getúlio, tem luz própria, palmilhou o próprio caminho construindo belezas, na terra e no mar. Vivencio isso todos os dias quando vejo meu sobrinho saindo para aula, na Faculdade de Música da UDESC, cria daquele rancho e do sonho do seu Getúlio.

Vejo Getúlio Inácio como mais um patrimônio do Campeche. Dessas pessoas imprescindíveis que lutam sistematicamente pela manutenção da nossa cultura, das nossas tradições mais bonitas.  Um morador apaixonado que sempre teve esse gesto generoso de acolhimento para com os diferentes. Um pescador que abre o rancho para a vida, um músico que de maneira dadivosa entrega o que aprendeu, um militar que conserva  o gosto pela disciplina e pela vida ordenada. 

Seu Getúlio é o típico ilhéu. De pouca fala e poucos gestos de afeto, mas ele é pródigo em gestos poéticos, simbólicos, cheios de amor e generosidade. Como é comum no Campeche, existem as rixas e os desacertos. Seu Getúlio faz parte de alguns. E, ainda que existam as tretas, não dá para negar o papel que ele hoje representa na comunidade.  

Sempre que o vejo passar, de passo lento, em direção ao Rancho, meu coração transborda de alegria. Por um dia ter encontrado aberta a porta do rancho e por ter achado o caminho do coração do Campeche.

Obrigada, seu Getúlio...




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