quarta-feira, 11 de outubro de 2017

A UFSC e os desafios dos trabalhadores


Fui até a reitoria ontem, acompanhar a reunião do Conselho que discutiria os rumos da administração da universidade após a trágica morte do reitor Luis Carlos Cancellier. Levei minha câmera. Imaginava encontrar o saguão lotado de gente. Professores, alunos e técnico-administrativos, ansiosos por acompanhar o debate e dar seu pitaco, como sempre foi. Os destinos da UFSC suscitando discussões e massivas aglomerações. Surpreendi-me. Pouquíssimas pessoas acorreram e ali estavam entre perplexas e apáticas. Apenas um pequeno grupo de trabalhadores - no qual me incluo - preocupava-se em participar do debate, distribuindo um panfleto com sua posição sobre o tema aos conselheiros e aos presentes.

Os demais seguiam sua vida nos espaços da UFSC, aparentemente indiferentes ao que se desenrolava na Sala dos Conselhos. A instituição tocando sua vida, intocável e inerte. Praticamente nenhuma paixão, como as que outrora sacudiam a universidade, no debate de qualquer coisa que tivesse a ver com sua realidade. 

Entrei na UFSC em 1994, indo direto para a Agência de Comunicação. Lá, a vida pulsava. Havia o Jornal Universitário, que discutia a realidade local e nacional, havia trabalhadores que se envolviam com a UFSC até o pescoço. Tinha amor, tinha paixão, tinha ódio, tinha compromisso, tinha alegria e tinha união. Trabalhava-se além da conta e ao final do expediente ainda ficava-se na UFSC para um churrasquinho, uma cerveja de fim de dia, uma confraternização que era sempre regada ao debate sobre a política da instituição. 

Nos movimentos de trabalhadores também iluminava a paixão e o compromisso. Reuniões, greves, debates, festas, muita discussão, divergências, lutas. E, em tudo, o amor pela UFSC, o compromisso com o serviço público, o cuidado com o trabalho, com o atendimento das pessoas. Vêm à memória pessoas como Helena Dalri, Moacir Loth, Valcionir Correa, o Assis, o Silva, o Maneca, a Angela Dalri, entre tantos, gente que entregou sangue e suor pela UFSC. Para quem a universidade era casa.  Lembro-me da alegria que dava na gente, caminhando pelo campus, com suas flores, seus canteiros bem cuidados, seus projetos de música na Concha, a estudantada pelos caminhos, no Centro de Convivência, nos CAs, debatendo e discutindo o país.

As grandes batalhas contra os projetos de privatização de FHC. Anos e anos de resistência, passados na luta renhida, com movimentos, ocupações e batalhas campais na rua. Trabalhadores, estudantes, juntos, na defesa da universidade pública. 

Ontem, era essa universidade que eu queria ver. Mas, é claro que ela não existe mais. Praticamente toda aquela geração que fazia a luta nos anos 90 e 2000 já está fora da UFSC. Muitos se aposentaram justamente por conta dessa mudança na atmosfera da vida universitária. A universidade acomodou-se aos tempos de “vacas gordas” do governo petista. Os salários melhoraram, as lutas foram ficando pontuais, no geral por arrumação no plano de cargos. Depois, por conta de algumas gestões, principalmente a de Roselane/Lúcia passou de espaço de acomodação a um ambiente doentio, hostil, feio. Quem não se lembra da chuva de processos contra os trabalhadores que levou pessoas ao adoecimento e à exclusão? 

Os novos trabalhadores que chegaram já no século XXI encontraram uma universidade diferente. Muitos deles também sequer vinham para a UFSC por conta daquele desejo fervoroso de servir ao público, de atuar na área da educação. Era só mais um concurso, e deparando-se com o empobrecimento salarial, já partiam para outro e outro. E os que ficaram vivenciaram momentos de profunda decepção, o que os levou ao medo ou a indiferença. Um exemplo disso foi a greve das 30 horas, movimento histórico dos trabalhadores, no qual as portas da UFSC ficaram abertas ao público de forma ininterrupta. Um movimento que levantou de novo a estima dos trabalhadores, que envolveu em paixão, em amor, aqueles sentimentos que marcaram a geração passada. Uma greve “diferente”, de ação, de atuação, de trabalho contínuo, que mobilizou toda a nova geração. Mas, a forma como terminou, derrotada pelo próprio sindicato da categoria e punida exemplarmente pela reitora Roselane, sufocou e interrompeu o processo de recuperação do compromisso pela UFSC. Foi um golpe e tanto.

Desde aí, com cortes de salário, perseguições e até a tentativa de exoneração de um de seus líderes, o movimento arrefeceu. Cada um foi cuidar da vida, cortado das asas. Muita gente adoeceu, outros tantos seguem doentes, se arrastando pelos corredores. Muitos sofreram processos e tiveram a vida interrompida. Um estado policialesco foi sendo criado dentro da universidade, o que marcou de maneira profunda os trabalhadores. 

A nova administração, com Luis Carlos Cancellier, tinha esse desafio. Devolver o velho quadro de alegria e de comprometimento que a UFSC sempre suscitou nos trabalhadores. E ele começou mal, já que o processo de exoneração do trabalhador Daniel Dambrowski, fruto da greve das 30 horas, durante a gestão de Roselane/Lúcia, seguiu seu curso, deixando os trabalhadores com a orelha em pé. Foi preciso muita batalha para reverter a situação. Assim, pressionado pelo que ainda restava do espírito de luta dos técnico-administrativos, Cancellier acabou encontrando um caminho, e isso era o que o diferenciava. A incansável busca por soluções negociadas, passando ao largo dos conflitos. Daniel não foi exonerado e essa pequena vitória poderia ser a alavanca para a retomada da participação dos trabalhadores na vida da universidade. 

Esse é o cenário da UFSC hoje. O reitor, símbolo da conciliação, que iniciava uma prática pouco conhecida na UFSC, de presença cotidiana no campus e de portas abertas, está morto. Os trabalhadores seguem desarmados diante da realidade. Sem um sindicato de luta, sem grupos de oposição atuantes, sem ação política interna. Parece que a UFSC é só um espaço aonde se vem cumprir as obrigações, aonde se vende a força de trabalho. Não se vê aquela entrega de outras épocas. “Não vale a pena”, dizem alguns. Temos uma universidade burocrática e ainda sobrevive a atmosfera do medo. Agora, renovado, por conta de nova caça às bruxas, desta vez externa. 

Assim que não deveria ser surpreendente o esvaziamento do dia de ontem. Nem mesmo os apoiadores da administração compareceram em massa, para apoiar a vice-reitora Alacoque. Apenas um que outro. Apareceram poucos estudantes e o pequeno grupo de técnicos que, apesar de não ter votado na proposta Cancellier/Alacoque foi manifestar seu posicionamento de que o Conselho Universitário deveria referendar a sequência da gestão, com Alacoque como reitora. 

A melancólica tarde da UFSC serviu pelo menos para essa reflexão. E a certeza de que há um longo caminho de reconstrução para ser feito junto a nossa categoria. O desmonte da universidade e dos serviços públicos já está em andamento, desde a aprovação do congelamento dos investimentos públicos por 20 anos. Há uma guerra declarada contra os trabalhadores, para usar uma expressão do professor Nildo Ouriques. Novos ataques virão, bem logo. E, se foram travados nesse campo de apatia e desamor, a derrota é certa.

Nós, os trabalhadores, temos um compromisso: recuperar a beleza que já vicejou nessa universidade. Recuperar a paixão, o amor pela coisa pública, o compromisso, a alegria de construir uma casa de saber. Sim, não é a universidade sonhada, nem a necessária. Mas essa universidade, para se fazer, precisa da nossa ação. Eu, que sou velha, e vivi momentos de profunda beleza nesse campus, não esmoreci. Penso que os jovens também não devem ceder ao sistemático assédio e à proposta de destruição que está à porta. Ninguém vai salvar a UFSC. Somos nós, os trabalhadores, aliados aos estudantes comprometidos com a universidade pública, que podemos insuflar vida e luta nesse campus. É tempo...

Ontem, conversando com o Leandro, da segurança da UFSC, ele contava que era prática comum do reitor aparecer lá no setor, tarde da noite, e acompanhar a ronda para, segundo ele, “ver como estavam as festinhas dos estudantes, se estava tudo bem”. Cancellier tinha lá os seus problemas, nem era um cara de esquerda. Mas, uma coisa não podemos negar. Ele amava a UFSC, com esse amor como o do Assis, da Helena, do Moacir, do Silva e de tantos outros que também cuidaram da UFSC como se fosse a sua casa. 

Esse amor é o que precisa voltar a existir em nós, trabalhadores. Porque a UFSC não é só um local de trabalho. Ela é o espaço da construção de uma nova sociedade. E cabe a nós erguer esse edifício ainda inconcluso. Não se trata de reproduzir a lógica liberal de “vestir a camisa da empresa”. A universidade não é uma empresa. Há mais coisas em jogo aqui do que apenas a venda da força de trabalho. Ela é campo fértil de disputa de ideias e concepções de mundo.

A decisão do Conselho Universitário foi a de referendar Alacoque para que termine o mandato. Foi a melhor decisão. Nós, que somos oposição, seguiremos atuando, de olho e em luta, não só com as coisas da UFSC, mas com as coisas do Brasil. Afinal, a história nos ensina. Só a luta muda a vida. 



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