No bar, meu avô Dionisio e nós, os três irmãos.Eu sou a menor das gurias.
A rua 28, em Uruguaiana, na Banda Oriental, hoje parte do Rio Grande, é mítica. Ali, eu passei a minha
meninice. Morávamos então na casa do meu avô Dionísio. Ele tinha um bar, bem na
esquina em frente ao bebedouro, e do lado do Instituto Rio-grandense do Arroz. No
entroncamento das ruas passava o trilho do trem e nossa diversão era ver a
Maria Fumaça passar, deixando aquele rastro de rolos brancos no céu, no barulho
característico tlac-tlac-tlac.
Meu vô era um italiano alto, forte e bom. E naqueles dias
abrigava nossa família por conta dos reveses da falta de dinheiro. O bar, não
só funcionava como um armazém, mas era também abrigo dos que vinham visitar o
bordel da cafetina mais famosa da região. Ali, eles faziam o esquenta, antes de
entrar para o palácio das delícias. Os produtos que mais saíam eram a pinga e o
salame. Eu tinha uns três ou quatro anos, e uma das minhas tarefas era
justamente a de picotar o salaminho, em pequenas rodelas, que eram servidas
como aperitivo no longo balcão de pedra, onde se debruçavam os que caçavam
amores fortuitos.
A “casa das putas” como chamavam, ficava colada à casa do vô,
separada apenas por um portão. Durante o dia, era comum eu e a minha irmã
passarmos para o lado de lá, circulando entre as mulheres que tomavam sol,
penteavam a cabeleira ou raspavam as pernas. Havia cheiro de rosas, de lavanda,
de pó de arroz e elas gostavam de brincar com a gente. Eu imagino que nem a mãe,
nem a vó tivessem qualquer preconceito porque essas visitas eram comuns e as
mulheres também estavam sempre cruzando o portão, para alguma coisa ou outra.
Eram as mulheres do bordel as responsáveis também pelo
passeio mais lindo que fazíamos: os passeios de carruagem. Elas tinham duas delas,
bonitas, de madeira reluzente, puxadas por cavalos, e forradas com cetim
vermelho. Um cenário de sonho que nunca se descolou das minhas retinas. Vez em
quando elas nos levavam para percorrer a cidade e eu ainda sinto o cheiro
adocicado dos perfumes e ouço os risos de cristal. Aquelas mulheres me
apareciam como fadas, princesas, rainhas. Eram bem vestidas, cheirosas e tinham
aquelas incríveis carruagens. Até hoje a lembrança daqueles dias me provoca
ternura.
Vez em quando, nos cálidos finais de tarde de verão, elas
saiam para passear na calçada, ao redor do bebedouro, onde os homens amarravam
os cavalos. Era outra visão de sonho, aquelas mulheres vestidas de tafetá, com
sombrinhas de pano tão chiques, e longas piteiras nas mãos. Como nós as conhecíamos, corríamos para elas, circulando de mãos dadas, cheias de orgulho
das amigas tão lindas.
Meu avô ficou apenas alguns anos no bar. Homem da terra, não
tinha lá muito tino para negócios. Tanto que nos verões modorrentos de
Uruguaiana, bastava que chegássemos com os amiguinhos na calçada e ele já
chamava, mandando o Beto – que era meu tio – distribuir picolés de abacate para
toda a reca de gurizada. Tudo de graça. Também saia, de graça, farinha, pão,
arroz, feijão, batata, cebola e qualquer outra coisa que algum necessitado sem
dinheiro pedisse. Um belo dia, já sem capital, fechou o bar e voltou para a
roça.
Daquelas vivências no bar da 28, penso que muitas foram
formadoras da pessoa que sou. Essa curiosa vontade de horizontes, fruto das
caminhadas nos trilhos que pareciam não ter fim. O amor pelas viagens,
despertado pelo apito do trem que evocava lugares e caminhos distantes. Seguir
o trilho, o tlac-tlac da Maria Fumaça era como um chamado xamânico que me toma
até hoje. Essa capacidade de estar com o distinto, o diferente, e não temê-lo.
Nesses tempos em que o ódio parece ser a regra e tudo que
não é igual ao que somos provoca violências, eu agradeço aos meus avós e aos
meus pais que nunca trancaram o portão que nos separava da casa das putas. Que
nos permitiram conhecer um mundo diferente, sem medo, e fazer com que cada uma
daquelas mulheres fosse respeitada como uma amiga querida. Naqueles dias, eu
não entendia porque as mulheres que nos viam passar na carruagem olhavam para o
carro com tanto nojo. Para mim, a vida, ali dentro daquela maravilha de cetim,
era espaço de amor, carinho e cuidado. Lembro-me da minha carinha, de olhos
graúdos e curiosos, assomada na janela de madeira, enquanto pensava que eu
mesmo era uma princesa, ainda que usasse casaquinhos rotos.
A rua 28 vive segue viva em mim. E vez em quando, nas
noites, escuto o toque da gaita, o cheiro da pinga com salame, as risadas e o tropel dos cavalos. E aquelas
mulheres, cheias de universos conversam comigo ao pé do bebedouro. Ainda somos
irmãs.
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