Beijin,
capital da China, é uma cidade, a primeira vista, difícil de ser amada. Com
mais de 20 milhões de habitantes, nela, tudo parece grandioso demais. As ruas
são largas, os prédios imensos e para onde quer que se olhe, lá estão, como
monstros a nos oprimir. Alguns deles são famosos como o Word Center, com 330
metros de altura, o maior centro de comércio internacional do mundo ou o da
Torre Nova da Televisão Central Chinesa, que é um gigante de cimento, com um
desenho estranhíssimo, tendo no seu meio uma espécie de porta. Todo esse
esplendor está em consonância com a nova fase do país, que cresce como se
tivera engolido fermento. Em 2010 o PIB cresceu 10,4% e, em 2011, embora tenha
caído, ainda ficou entre as maiores taxas do mundo, 9,4%. Há um desaquecimento
agora em 2013 por conta da crise europeia, mas, ainda assim, há quem diga que
as coisas voltam a crescer ainda esse ano. O PIB do ano passado ficou em 8,28
trilhões de dólares. É a segunda economia do mundo, perdendo apenas para a dos
Estados Unidos e representa 15% de toda a economia mundial.
Pelas
ruas da imensa capital só o que se vê é trabalho. Há uma espécie de frisson em
produzir e ganhar dinheiro. Entre a população mais jovem, as prioridades são os
aparelhos eletrônicos de última geração e as mercadorias de marcas famosas.
“Ninguém quer saber de produtos chineses, não têm qualidade nem diversidade”,
diz uma trabalhadora do comércio, cuja aspiração mais imediata é viajar aos
Estados Unidos para poder comprar coisas mais “modernas”. Para os jovens, as
mudanças introduzidas pelo governo, que nada mais são do que as opções do
capitalismo, estão fazendo muito bem. “Antes as mulheres não tinham trabalho,
agora têm, podem ser independentes. Nem precisam se casar”. No geral, um
salário mínimo, dos mais baixos, está em 2.000 iuans, em torno de 500 dólares,
mas há quem ganhe muito mais se trabalhar nas empresas estrangeiras, tiver dois
empregos ou for funcionário do governo.
O
“governo” é um caso a parte. É visto como um ente, uma coisa concreta, poderosa
e misteriosa. Ninguém que não seja funcionário pode entrar em qualquer prédio
público, tudo é cheio de segredos e há muito ressentimento com o “comunismo”.
Um garoto contando sobre o fato de que não é possível acessar o facebook, abre
os braços e diz, desolado: é o comunismo. A grande rede que hoje é um vício
mundial está bloqueada na China. Em compensação, a maioria das famílias não
sabe o que é um aluguel. “Os que são daqui de Beijin têm moradia própria, só
esse pessoal que está vindo de fora agora é que precisa alugar apartamento”.
Segundo Jang, como os alugueis acabam sendo muito caros, é comum os jovens se
juntarem entre dois ou três para conseguir viver mais perto dos centros de
comércio, onde chegam a trabalhar mais de 10 horas por dia. “Se não for assim,
há que ficar na periferia”. Na verdade, toda essa problemática que compõe a
vida no mundo capitalista agora está muito presente na China. “O bom é que a
gente agora pode ter roupas coloridas, variadas, e não mais aquele cinza,
sempre igual”.
A
virada da China para o inchaço das grandes cidades no ritmo alucinado da
produção tem pouco mais de vinte anos e é a única realidade conhecida pela
juventude local, mas a memória de pais e avós, muitas delas nada agradáveis no
que diz respeito ao sistema, fazem com que o governo seja visto como ameaça. Há
sempre um jeito de pronunciar, um sorriso, um manear de cabeça que denota certo
desconforto. Mas, se “o governo” não atrapalhar a caminhada para o consumo das
coisas boas, das grandes marcas, da tecnologia, já está muito bem.
Por
outro lado, as implicações do crescimento tem sido problemáticas. Uma delas é a
poluição, que chega a níveis assustadores. Em dias de inverno é tão intensa que
parece que é noite mesmo estando o sol a pino. É tanta fumaça que toda a
claridade se esvai. Beijin tem milhares de chaminés soltando fumaça por conta
da calefação que ainda é feita com carvão mineral. Somam-se a isso mais cinco
milhões de carros com seus escapamentos. O resultado é uma espécie de fog que
não tem fim. As pessoas usam máscaras, mas isso não é suficiente. Em poucas
horas na rua, o peito queima como se fosse explodir. “A gente não protesta
porque não tem o que fazer. As pessoas precisam se aquecer no inverno e tem que
ter calefação”, diz a jovem funcionária
do café. Em algumas zonas da grande Beijin, a temperatura pode chegar a 23
graus negativos em janeiro e apesar de a maioria ter ar condicionado, ainda há
quem só tenha papéis e carvão para queimar.
Mas,
se por um milagre qualquer, um vento forte empurra a poluição para longe, a
cidade se abre num intenso e vivo colorido. Os restaurantes se enchem de gente
e os mais velhos lotam os parques para dançar e praticar o tai chi, duas febres
nacionais. Os chineses são amorosos e sorridentes e quando se juntam é como se
fosse uma grande festa. “Em Beijin não temos o costume de sair à noite. A gente
chega do trabalho, faz a comida, a família come sempre junto, e depois vamos todos
até o jardim para a prática dos exercícios. Feito isso, vamos dormir. É raro um
bar aberto depois das nove da noite, a não ser nos grande hotéis”, conta Jang.
Os mais velhos, que já estão aposentados, não sabem o que é depressão, porque
estão sempre buscando se divertir em comunhão e isso inclui muito movimento e
muito riso. “Faz bem para o corpo e para a mente”. Nos bairros mais pobres,
mais na periferia da cidade, pode-se ver muita pobreza, mas são raros os
mendigos e não há vestígios de crianças de rua.
A
zona rural destoa totalmente da azáfama da cidade grande. Ali, as casas são
baixas, ao estilo tradicional, como se fossem pequenas fortalezas. São
construções pobres e cinzentas. “A cor sempre foi um tabu na China. Na época
imperial, só os imperadores podiam usar o vermelho e o amarelo. Depois, no
comunismo, foi a vez do cinza. Agora é que a gente está podendo variar”. Ainda
assim, cinza é considerado uma cor elegante e é por isso que a maioria opta por
ela nas suas moradias. Nos arredores de Beijin pode-se ver muitas dessas
localidades que são chamadas apenas de “campo” e também nelas dá de perceber
muito resentimento com relação ao “governo” porque a maioria de alguma forma
foi afetada pelo crescimento. Muitos camponeses foram removidos por conta da
abertura de grandes rodovias e não se conformam com isso. Mas, essas são
impressões passadas por pessoas da cidade. Eles mesmos não dizem palavra.
Mas,
apesar de toda essa onda de modernidade, Beijin também vive bastante do
passado. Uma das grandes fontes de divisas são as belezas deixadas pela época imperial.
Só a Cidade Proibida, conjunto de palácios que foi o centro do poder por cinco
séculos (1416 a 1911), é visitada por mais de 80 mil turistas ao mês. Em
janeiro, quando é o tempo é muito frio, os estrangeiros são poucos, mas há
vagas e mais vagas de chineses de todas as partes que vêm à capital para
conhecer essa parte de sua história. Bem em frente ao complexo fica a famosa
Praça Tiananmen , ou Praça da Paz Celestial, a maior do mundo, onde em 1989 um
jovem sozinho parou um tanque durante uma revolta estudantil. Curiosamente,
todas as menções sobre esse fato em particular não aparecem em quaisquer
páginas de internet acessadas na China e o fato foi apagado da história. Mesmo
assim, as pessoas tiram fotos da Praça, rememorando aquele acontecimento tão
emblemático que ainda vive na memória popular.
Da
mesma forma a Grande Muralha, que pode ser acessada a menos de duas horas do
centro da cidade, é outro foco de turismo intenso. A assombrosa construção que
levou mais de 600 anos para ficar pronta, cobre mais de oito mil quilômetros de
fronteira. Algumas partes foram restauradas exclusivamente para o turismo e não
há dúvidas de que são magníficos monumentos do trabalho humano. A muralha
começou a ser feita 200 anos antes de Cristo durante a dinastia Zhou, com a
finalidade de impedir o avanço das tribos nômades. Ela atravessa montanhas,
cidades e todo o deserto de Gobi e é, sem dúvida, uma das maravilhas do mundo.
Contam que boa parte dos trabalhadores morreu durante a empreitada por conta
das péssimas condições de trabalho. Ao longo da muralha há várias fortificações
onde ficavam os soldados. Eles se comunicavam por sinais de fumaça e bandeiras
coloridas. A subida é um ritual importante para os chineses e logo na entrada
se pode ver um escrito do grande timoneiro Mao Tsé Tung: “Quem nunca subiu a
muralha não pode ser considerado um homem”.
Mas,
para aqueles que amam as cidades pelo que elas têm de invisíveis aos olhos
comuns, Beijin se mostra verdadeiramente esplendorosa na sua face mais popular.
E, aí, nada pode ser mais bonito do que o fascinante mercado Pan Jia Yuan, um
gigantesco espaço da genuína arte tradicional e popular chinesa, misturado a um
animado e diversificado brique, no qual se vendem desde bonecas quebradas até
as mais finas joias.
O
pavilhão, é claro, fica fora dos circuitos turísticos. Há que se arriscar andar
pela cidade procurando a vida mesma, aquela que se expressa no cotidiano. E,
assim, numa surpreendente e inesperada visão, aparece a Pan Jia Yuan. Adentrar
aos seus portões é mergulhar na China mais verdadeira. Na praça estão os
vendedores avulsos, cada um com seu banquinho e
antiguidades de todos os tipos. Tranquilos e sorridentes eles nos
convidam para sentar e apreciar as coisas, com calma. Não importa que a língua
verbal não seja compreendida, o corpo fala e as partes se entendem. Impossível
descrever a beleza que explode ali. O mercado, na sua concepção mais antiga. O
olho no olho, a conversa, o regateio, tudo na paz.
Depois,
nas lojinhas que circundam o grande pavilhão aparecem as pedras de jade em
todas as suas conformações e os artistas se apresentam, no trabalho,
sorridentes ao olhar do desconhecido. Em outras dezenas de boxes estão os
pintores da arte tradicional, em nanquim. Verdadeiras obras de arte que em nada
devem as que ficam no chique Espaço 798, antiga fábrica de componentes
elétricos desenhada pelos alemães em 1950, que virou área da expressão da arte
moderna da China. Só que ali, na Pan Jia Yuan, o desenho é a paisagem, as
amendoeiras, o impressionismo. Pode-se ficar por horas nos corredores vendo as
obras se fazerem na sua frente, metódica e tranquilamente, por experientes
pintores. Também é de tirar o fôlego acompanhar a confecção das famosas sombras
chinesas. Incrível e delicado trabalho que testemunha a capacidade humana de
produzir indizíveis belezas.
Depois
de circular por cada cantinho da imensa praça, é bom ficar ao sol, olhando as
pessoas, sob centenas de bandeirinhas coloridas. Não há a sofreguidão dos
grandes mercados nem a frieza dos xopins. Não há turistas e praticamente não há
ocidentais. Só o farfalhar dos casacos e a risada cristalina das mocinhas. É
quase como um oásis no meio de Beijin. E, para coroar a sensação de que se está
no paraíso, no meio da praça há uma árvore florida. Em pleno janeiro, no frio
intenso, quando não há sequer folhas nas árvores, aquela árvore, no centro de
Pan Jia Yuan explode em rosa claro. Seu caule está protegido porque “as árvores
se assustam com o frio”, conforme explicou uma senhora. E ela, a árvore,
agradece àquele povo simples e criativo, assim, se abrindo em beleza.
Então,
de todas as maravilhas que vi em Beijin, na parte antiga e na nova, certamente
o que nunca me sairá das retinas é aquela amendoeira, em flor, como que a
desafiar o tempo. Ela mesma um milagre, tão maior do que o desenvolvimento que
pretende levar a China ao paraíso. Aquele que consegue ver, não tem dúvidas. O
paraíso já está ali.
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