Minha mãe tinha mania de varar noites e noites vendo filmes
na televisão. Gostava de assistir de madrugada, quando tudo silenciava. Então,
ela se estendia no sofá e ficava até o amanhecer vendo os clássicos que passavam
na TV. Naqueles dias, nos anos 70 e 80, era comum a Bandeirantes e a Globo
passarem bons filmes de madrugada. Também era comum que eu acompanhasse, impávida
e feliz, essas vigílias fílmicas. Foi assim que aprendia a amar Miguel Aceves Mejia,
Cantinflas, Vicente Celestino, Vitor Mature, Errol Flynn, Fred Astaire, Chaplin,
Grande Otelo e tantos outros...
Mas, havia um tipo de filme que, em particular, fazia a gente
rir e se maravilhar. Eram os chineses, ambientados na época imperial. No geral
eram de kung fu e sempre começavam com um crime que depois tinha de ser
vingado. Aí era aquela profusão de saltos, golpes e paisagens incríveis. A
China vista pela tela era um encantamento. As roupas, as casas, os cabelos, as
lutas, as cores. Por longos anos ficou latente o desejo de, um dia, quem sabe,
poder ver tudo aquilo com olhos reais.
Foi esse sentimento que me assaltou quando as retinas
abarcaram a entrada da Cidade Proibida. Ali
estava, descortinado, o cenário daquelas noites, em casa, com a mãe. Para
chegar ao portão é preciso antes atravessa a famosa Praça Tian’anmen, a maior
do mundo, palco de inúmeras manifestações estudantis em 1989, hoje vistas como
a fagulha inicial do processo de mudança que a China passou a viver na economia
e na política. Ali, vigilante, está a foto gigantesca de Mao Tsé Tungo, o homem
que liderou, nos anos 40, a revolução chinesa, sendo também o articular e
criador da República Popular da China. Mao governou os chineses de 1949 até
1976, ano de sua morte. De certa forma,
a sociedade alavancada pela “grande marcha”, acabou por enterrar
definitivamente os séculos e séculos de governo imperial. É fato que a China passou a ser república em
1912, depois de um movimento revolucionário liderado por Sun Yat-sen, mas o
imperador ainda permanecia com o direito de viver na cidade proibida, ostentando
o título, coisa que também lhe foi permitida durante a ocupação japonesa na
Manchúria. Esse mundo só desapareceu mesmo com a vitória do comunismo.
Ainda assim, a glória das dinastias Ming e Qing segue gerando
suspiros e divisas, afinal, o número de turistas que acorre todos os dias ao
local é tão gigantesco quanto a própria China. No mês de janeiro, quando o
inverno castiga o país e os estrangeiros são poucos, é quando os chineses
viajam para conhecer o esplendor de um tempo que já se esboroou. A cidade
proibida começou a ser construída no ano de 1406 para ser a sede do governo
imperial e levou 15 anos para ser terminada, empregando mais de um milhão de
trabalhadores na tarefa. É chamada assim porque de fato era proibida aos
simples “mortais”. Apenas a família do imperador e os que para ele trabalhavam podiam
entrar. E, caso alguém o fizesse, era preso e morto. O palácio, considerado um
dos maiores do mundo, cobre 720 mil metros quadrados. Dizem os chineses que os
edifícios somam 9.999 divisões, porque o número nove era considerado sagrado
pelos imperadores. É uma verdadeira cidade com os espaços de trabalho, descanso
e lazer do imperador, além das alas de moradia e de confinamento das mulheres.
Todos os palácios são feitos de madeira, trabalhados
artesanalmente por mais de cem mil mestres da arte chinesa. Os imensos pilares
e frontais se encaixam sem que nenhum prego tenha sido usado. Tudo ali é
simbólico. O rio interior, a harmonia suprema, o poder, a fé nos deuses
antigos, o temor aos animais mitológicos, o respeito ao que consideravam
sagrado. Por toda a parte escapa o hálito quente de um mundo que foi capaz de
tornar a China uma referência para o mundo inteiro nos tempos mais remotos da
humanidade. Que o diga Marco Polo, o navegador europeu que andou pela China e
relatou as maravilhas que atiçaram a cobiça dos conquistadores. Os mais velhos,
olham com silenciosa curiosidade aquele universo outrora proibido, mas a nova geração
que assoma na China remodelada e aberta ao ocidente, nada mais quer do lugar a
não ser a foto tirada como um souvenir de um tempo que já não diz nada. É só a
cópia fetichizada de uma das maravilhas do mundo que, por acaso, está ali, bem
ao alcance do celular.
Poucos há que se deixam ficar nos pátios a imaginar o esplendor
da época imperial, ou que miram com suspiros os móveis e paredes talhados a
ouro, capazes de custar a vida de tantos e tantos chineses. Poucos também são
os que prestam atenção ao palavreado decorado dos guias que, apesar da
ritualística, acabam por trazer informações importantes para se pensar as
relações de poder que se estabeleciam naqueles tempos idos. A arrogância suprema
dos imperadores, a completa ignorância da vida fora das muralhas, a exploração
dos trabalhadores, o sofrimentos das mulheres, o exagero, a ostentação, o
sacrífico de milhares de almas.
Na fala de muitos jovens também se pode notar a alegoria de
uma crítica ao sistema comunista que, de 1945 até a morte de Mao, também usou
de muitos desses elementos vistos no mundo imperial. “A vida na China não mudou
muito com o comunismo”, dizem, e oferecem créditos ao que está vindo com a
abertura econômica e o crescimento vertiginoso que eles não identificam como
capitalismo, mas chamam curiosamente de “comunismo especialista”. “Hoje, por
exemplo, as mulheres podem ter um emprego e cuidar da vida. Não precisamos mais
casar. Também, com o nosso trabalho, podemos viajar e comprar coisas jamais
imaginadas. Hoje podemos usar cores. Veja que na época imperial nos era
proibido o amarelo, e no comunismo só podíamos usar o cinza. Agora, estamos
livres para nos colorir”. De certa forma, essa gurizada tem razão, mas ainda é
um discurso que só pode valer para poucos. É que a China tem tanta gente que a
impressão que se tem é de que todos podem fruir das benesses do propalado
crescimento.
Mas, se a gente prestar bem atenção e olhar para além dos
espaços de comércio, pode-se ver o trabalhador excluído da promessa do “mundo
livre”. Os que varrem o chão com as enormes vassouras de galhos, os que se
esgueiram por detrás dos portais encarquilhados das ruas laterais, os que
limpam os hotéis de olhos baixos e postura servil, os que recolhem o lixo nas
madrugadas geladas, os camponeses perdidos de sua terra, os que não compram
suas roupas em xópins, os que usam as velhas sapatilhas comunistas, os que não conseguem
mais ter sua casa própria. Num país de um bilhão e trezentos mil habitantes o
abismo entre pobres e ricos também começa a crescer, vertiginosa e inexoravelmente.
Para quem olha de fora, é bem fácil perceber as tantas “cidades proibidas” que
florescem por todo o país. É certo que ninguém mais está obrigado ao uso do
mesmo uniforme gris, mas são milhões os que jamais poderão adentrar ao mundo de
“cores” sonhado pela jovem trabalhadora que encontramos na Praça Taiananmen. Na
velocidade da roda do consumo inaugurada com a “explosão” da economia, ninguém
parece se importar com o fato de que se alguém está crescendo feito um bolo
fermentado, é porque outro está fenecendo.
Para os chineses, sobretudo os jovens, já não há cidades
proibidas e todas as muralhas estão no chão. Mas, sozinha no grande pátio do
palácio dourado, num janeiro de oito graus abaixo de zero, penso que muralhas
há que são invisíveis, mas igualmente poderosas. No aparentemente feliz mundo
do capital, tudo parece permitido, até que se desmanche no ar na hora do embate
com a realidade.
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