terça-feira, 28 de setembro de 2021

As aprontações do pai



Nos últimos tempos o pai tem dormido bem pela manhã. Dá uma acordada lá pelas seis, quando eu levanto, mas logo volta a dormir. Só quando tenho algo importante pra fazer é que ele resolve acordar cedo, comigo. Parece que ele adivinha. Eu não digo nada, mas é só pintar algo que exija minha mais profunda atenção e lá está ele. Hoje foi assim. Tinha o compromisso de fechar um texto e deixei para a manhã, que é quando estou mais focada. Pois nem deu seis horas e ele já estava de pé, mexendo em tudo pelo quarto. Tentei fazê-lo voltar a dormir, mas não deu resultado. Vencida, tratei de deixar pra lá o trabalho e começar as tratativas do levantar. Conversinha, banho, conversinha, colocar a fralda, conversinha, vestir, conversinha, levar para o café. Depois, o café. Uma boa novela. 

Lá pelas oito e meia as coisas estavam acalmadas. Dei um cigarro e comecei a ajeitar o cenário para começar a trabalhar. Ele, como sempre, inquieto, andando pra lá e pra cá, numa briga com o cachorro. Ele levanta da poltrona, o cachorro sobe. Aí ele quer voltar e o cachorro não deixa.  Um roteiro repetido milhares de vezes. 

Por fim, começou com o vai e vem até o portão. Eu na mesa da cozinha, escrevendo, mas com um olho vigiando a caminhada através da janela. Ficou assim um tempo, então parou do lado do varal de roupas que eu havia colocado ao sol. Segui escrevendo, observando pelo rabo do olho que ele estava ali, bem em frente à janela, mexendo nos grampos de roupa. Segui entretida até que notei que ele estava muito paradinho, quieto demais, parecia nem estar mais mexendo com os grampos, mas seguia ali, ao lado do varal. Continuei meu texto.

Então, deu aquele estalo. Quietinho demais. Eu continuava vendo ele da janela, mas estava muito parado. Levantei correndo e fui lá fora ver o que passava. Pois ele estava ali mesmo, paradinho, com a mão segurando firme no varal, mas completamente adormecido, quase ressonava. O danado dormia em pé. Levei um baita susto, porque poderia ter caído. Acordei o querido e ainda levei um baita esporro. Brabo, não queria soltar o varal. Mais uma novela para sair dali. 

- Tu tá dormindo, pai.

- Tô dormindo nada.

Toca pra dentro para ver se senta na poltrona e sossega. Já são 10 horas. Então ele senta e imediatamente volta a dormir. O cachorro senta aos seus pés e também dorme. Assim vão os dois, parceiros no mundo dos sonhos, enquanto eu finalmente consigo escrever alguma coisinha.



Um comentário:

Krishna Neffa disse...

Elaine, a vida é tudo isso. Nem mais, nem menos. É dormir deitado, sentado, em pé. É cheiro de flor e odor de chulé.
É preocupar-se e alegrar-se.
Cansar-se e descansar-se.
Parabéns por compartilhar tua existência e obrigado pelo trabalho que desenvolves no IELA junto com o Nildo e os demais membros.
Há tempo de plantar e tempo de colher. Não há dúvidas que tua colheita será farta e digna. E, na fartura, possas continuar partilhando o pão teu de cada dia com aqueles que ainda necessitam de alimento para o corpo e a alma.