O ano que termina foi o ano da peste. Já em janeiro os primeiros casos do novo coronavírus apareciam na China, ainda sem causar preocupação, visto que poderia ficar isolado naquela parte do mundo. Seguindo a lógica do “não é comigo” o resto do mundo seguiu tranquilo e no Brasil até o carnaval, cheio de aglomeração, aconteceu, apesar de já se saber que o vírus escapara do oriente em direção à Europa.
Quando no mês de março os diversos países do continente Europeu começaram a reportar casos do vírus houve uma comoção geral. Cenas dos hospitais lotados e das centenas de caixões chocaram a população brasileira, que assistia a tudo pela televisão sem imaginar o que estava por vir por aqui, e que seria muito pior. O anúncio das 500 mortes por dia na Itália causou estupor, assombro. Mas, quando chegamos a mais de mil aqui no Brasil, já ninguém mais se importava.
No mês de abril a Covid-19 faria uma entrada triunfal no Brasil e na América Latina, provocando também centenas de mortes. Estados como o Amazonas, por exemplo, abriram covas e mais covas para os mortos que não paravam de chegar. No Equador os mortos ficavam por dias nas ruas, sem gente para recolher. Foi um verdadeiro terror, pois nem os médicos, nem os trabalhadores da saúde sabiam muito bem como lidar com o vírus. Houve muita desinformação e medo. Põe a máscara, tira a máscara, tudo era muito pouco certo.
Diante disso, para piorar o que já era o mais puro horror, o governo federal decidiu travar guerras políticas com seus inimigos e abandonou a nação, demitindo dois ministros de saúde médicos e contratando um militar para gerir a crise. O resultado não poderia ser outro: mais mortes e uma absurda incompetência administrativa. Sem um plano nacional de combate ao vírus, estados e municípios foram definindo as políticas ao longo do caminho. No começo, optaram por ouvir a ciência, fechando comércio, escolas e tudo mais.
Mas, com o passar dos meses, começaram a ouvir o empresariado que não queria perder os lucros e tudo voltou a se abrir, ocasionando ondas de novos casos. A tal ponto que hoje já estamos próximos dos 200 mil mortos. Mortes que poderiam ser evitadas porque com o passar do tempo os trabalhadores da saúde já tinham certo saber sobre a doença e as formas de proteção. Ainda assim, muita gente se foi porque não encontrou um respirador no hospital.
O “ano da peste” define também mais um ano de mandato do atual presidente, que já havia promovido um grande desmonte no primeiro ano. Com a guerra política e o negacionismo em relação à ciência, só conseguiu fazer com que a tragédia se aprofundasse. Chamando a pandemia de uma gripezinha ele foi para a televisão receitar remédios inúteis, além de gastar horrores comprando estoques dessa medicação que agora mofa nos armazéns. Não há nada a fazer com eles. Não há remédio para prevenir o vírus. Prejuízo para a nação, dividendos para os amigos do Trump.
E assim, entre um espetáculo e outro do presidente, os meses foram se passando, sem que o governo federal tomasse a frente no combate à pandemia. Nem teria como, ocupado que estava em aprofundar o assalto ao estado brasileiro. Mergulhado nas denúncias de corrupção envolvendo os filhos e a própria esposa, o presidente tratou de criar várias cortinas de fumaça para tirar do foco as falcatruas da família. E, com isso, foi também fortalecendo esse grupo que surfa na mesma onda do negacionismo. Negação da doença, negação dos cuidados, negação da vacina.
No mês de junho, Fabrício Queiroz, o pivô da famosa “rachadinha” criada por Flávio Bolsonaro foi preso, num sítio do advogado da família do presidente em Atibaia. A imprensa tratou o caso de forma muito superficial e fosse outro o presidente, seria a morte política. Mas, para Bolsonaro não pegou nada. Ele seguia visitando padarias, sem máscara, ora dizendo que tinha se infectado com o vírus, ora dizendo que não. Uma pantomima sem fim. Queiroz foi preso, foi solto e até agora o filho número 1 não respondeu pelo crime. Nem ele, nem o pai, que interveio de maneira descarada na Polícia Federal, sem que nada lhe acontecesse.
Enquanto isso, os partidos começaram a esquentar as baterias para a eleição geral de novembro, que iria eleger prefeitos e vereadores. O vírus seguia ceifando vidas, mas os candidatos não fizeram caso. Houve campanha de rua, do mesmo jeito de sempre, só que com máscara. E também foi o tempo em que os índices de infecção voltaram a crescer. E quando novembro chegou, lá foi o povo a aglomerar mais um pouco nas filas de votação, com o corona bem satisfeito.
O resultado das eleições foram os esperados. Bolsonaro não elegeu os seus, mas também não foi responsabilizado pela inoperância na condução do combate ao coronavírus. Os menos convictos acabaram voltando para o reduto seguro dos velhos partidos das oligarquias tradicionais, sem abrir mão do conservadorismo, e voltamos a ver PP, DEM e PSDB assomando nos municípios. Praticamente nenhuma mudança no pensamento geral da nação, apesar de algumas vitórias pontuais de lideranças envolvidas em lutas específicas contra o racismo, LGBT ou agroecologia. As candidaturas de esquerda que propunham mudanças estruturais foram derrotadas e os ganhos da esquerda liberal, ao fim e ao cabo, não oferecem nada que efetivamente altere o sistema de forças. Serão espaços de resistência e denúncia, mas provavelmente só isso.
No Congresso Nacional dormem mais de 50 pedidos de impedimento do presidente da nação, por corrupção, por improbidade administrativa, por desleixo na gestão da saúde, por incapacidade governativa, enfim, múltiplos motivos. Mas, os deputados preferem sentar em cima dos pedidos e negociar cargos e emendas milionárias. Não há, na classe política brasileira em geral, qualquer preocupação com a população. Tudo gira em torno de interesses pessoais. Tanto que agora, ao fim do ano, com o visível crescimento do contágio do coronavírus por conta das liberações gerais, a casa legislativa nem se toca e segue a vida, muito mais envolvida com a eleição do presidente da Câmara e do Senado do que com qualquer outro tema. Afinal, quem preside a Câmara define a agenda, e isso é poder.
Vários países do mundo já iniciam a vacinação em massa a partir do final esse ano, mas aqui no Brasil o presidente vai à televisão dizer que não haverá vacina para todos, que ele não vai tomar e que tampouco vai obrigar que a população se vacine, será facultativo, como se a saúde pública pudesse ficar à deriva, sob o desejo individual de cada brasileiro. O presidente faz piada com a vacina chinesa e não organiza uma estratégia de vacinação. Estamos completamente entregues ao desmando e a inoperância. É um caos programado e bastante adequado ao sistema de poder.
É bom lembrar que enquanto as gentes se debatiam no meio da absurda guerra política que se transformou a questão da Covid 19 ao longo desse tenebroso ano, o governo seguiu destruindo o país, acabando com “tudo isso que tá aí” conforme o prometido. Não atuou contra as queimadas que varreram a Amazônia, o Pantanal e o Cerrado, sendo conivente com fazendeiros e mineradores que aplaudiam o fato de o fogo ter aberto mais espaço para a exploração. Um fogo que provavelmente nasceu das mãos dessa mesma gente.
O presidente não moveu um dedo para parar com a violência no campo e nas terras indígenas, pelo contrário, incentivou. Abriu as portas para as armas estrangeiras, chegando ao ponto de zerar o imposto para importação, mais uma vez gerando lucros para as empresas estrangeiras. E no finalzinho do ano ainda rematou com a proposta de desmonte completo da política da saúde mental. Uma volta ao hospício e a medicalização, bem ao gosto da indústria da morte que são as farmacêuticas e os hospitais privados. Também tentou meter a mão na verba da educação garantindo que ela escoasse para mãos privadas. Ou seja, seguiu cumprindo as promessas feitas aos fazendeiros, ao agronegócio, às escolas particulares, aos parceiros estrangeiros.
Chegaremos ao ano 2021 com a sensação de que esse que passou foi um ano perdido. Mas, apenas perderam os trabalhadores. Os mais ricos do mundo ficaram ainda mais ricos por conta da pandemia, e a maioria das gentes apenas se debateu como pode nesse mar de descaso. A sobrevivência foi um ato de sorte.
O mais doloroso para nós brasileiros é que o ano que se aproxima seguirá sendo um ano de peste. A vacina tardará o quanto o presidente puder fazer tardar e nós ainda teremos de amargar mais 360 dias com o que parece ser um bando de gângsteres dando as cartas e assaltando o estado no máximo vapor.
O dramático de tudo isso é que os trabalhadores passaram esse ano na mais completa apatia gerada pelo medo de perder o emprego e de morrer pela Covid, o que aprofundou ainda mais a exploração. O aumento dos preços da alimentação, da luz, da água, da moradia foi motivo de apreensão, mas não de indignação. E nem mesmo o apagão no estado do Amapá, que chegou a ficar mais de 15 dias sem luz por conta da incompetência de uma empresa privada, provocou passeatas ou manifestações. Nenhuma solidariedade, nenhuma cobrança. Nada. Pelo contrário, encerramos 2020 com 37% dos brasileiros aprovando um governo genocida. E nada disso foi capaz de fazer reagir as Centrais sindicais, outrora tão combativas, e que praticamente estão mortas. Tampouco houve, ou há, qualquer ação por parte dos partidos de esquerda que deram toda a energia na eleição, sem sequer carregar nas tintas contra o governo federal. A maioria disputou os municípios com propostas locais, sem ligação com a política nacional, pensando talvez que se não atacassem Bolsonaro teriam chance. Ingenuidade ou má fé? Ainda estamos para ver.
2020 foi, enfim, um ano triste demais. Perdemos amigos, familiares, conhecidos, amigos dos amigos, perdemos uma infinidade de vida e não ainda recobramos a consciência. A consciência de classe.
Enquanto isso, cercado de cadáveres, o presidente inaugura exposição de roupas usadas por ele na posse e usa a verba do governo para promover empresa de eventos do filho mais novo que agora também entra na política pela mão do pai. E praticamente ninguém diz um ai. Ao que parece, para esse senhor que ocupa a presidência, tudo é permitido. Sem limites.
Que se acabe logo esse 2020 e que a luz da rebeldia apareça para incendiar o mundo. Porque geralmente é assim mesmo. Uma fagulha, uma ínfima fagulha e quando se vê, já está.
Aqui estamos, na espera.
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