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Pai, trabalho e confusão
Quando comecei no jornalismo não tinha esse lance de salinha e computador. Não. As salas eram amplas e todos trabalhavam juntos. O ato da escrita, da construção da notícia, tinha de ser feito em meio ao barulho das vozes, da máquina de escrever, do telex, dos telefones tocando. Uma balbúrdia. A reportagem de televisão era ainda muito pior. Terminava as entrevistas e tinha de escrever o texto do off no joelho, sentada num meio fio ou dentro do carro, porque o material tinha de chegar semi-montado na redação. Ali aprendi o dom da síntese e essa misteriosa capacidade de entrar dentro de uma imaginária bolha silenciosa em meio ao caos. Talvez por isso que agora, trabalhando em casa, na pandemia, os textos consigam sair de alguma forma. A balbúrdia é grande. Tenho o pai, com demência, que me exige demais, cachorros, gatos, quintal, e tudo gira em torno de mim sempre ao mesmo tempo.
Basta que eu me organize, na mesa da cozinha, e abra o computador, para tudo começar. O pai gruda em mim, desde o amanhecer até a hora de dormir. Não há folga, e ele mesmo não descansa. Desde que acorda até à noite fica andando, mexericando nas coisas. Então, escrevo uma linha e saio à porta para ver se ele não se enredou em algum galho no quintal. Escrevo outro parágrafo e lá vou tirar das mãos dele os meus recuerdos de viagens que ficam no armarinho da sala. Já quase não há um inteiro. Ou ele já quebrou a cabeça, ou a pata, ou o rabo. As lembranças têm mesmo de ficar só na memória.
Também é preciso vigiar para ver quando ele faz xixi ou cocô, pois há que entrar em campo toda a parafernália da limpeza. Tenho pelo menos uma quatro toalhas e 12 panos de chão que uso diariamente nessa tarefa e todos precisam ser usados e lavados a cada tanto. Também há que ficar de olho para ver se ele não come demais, pois como não se lembra do que fez há um minuto, ele assalta a fruteira dezenas de vezes, podendo às vezes comer frutas demais. Também gosta de fuçar nos sacos de pão e faz uma bagunça danada. Deus o livre que eu diga alguma coisa. Vira no Jiraia. Há que deixar ele no seu mexe-mexe. Só que isso dá um trabalho danado e concentrar em um tema é quase impossível. Como ele não dorme de tarde, não há descanso.
Se tenho alguma reunião de trabalho, feita pelo computador, ele fica parado na minha frente querendo que eu pare de falar com as outras pessoas e fale só com ele. Ciumento que só. E se estou participando de alguma atividade extra, como uma conferência ou uma entrevista, tenho de fugir e me entocar no quarto para que ele não interrompa, brabo. E, mesmo escondida, fico saindo de quando em quando para dar uma espiada. Raramente consigo me concentrar na coisa em si. É extraordinário que consiga concatenar ideias.
Quando o dia vai terminando vem a novela do “eu quero ir embora”. Ele fica na porta me chamando: vamos, vamos. E nessa desamarração eu levo pelo menos uma hora e meia. Aí já é hora do jantar. Toca arrumar a comida e cuidar para ver se não está fazendo estripulia com a janta. Não dá para descuidar. Depois, quando tudo acaba, volto outra vez para o computador ver se consigo finalizar algo. Ele fica sentado ao meu lado ouvindo o Programa do Rolando Boldrin, e a cada minuto me convoca para fazer um comentário ou qualquer outra coisa incompreensível. Nessa hora já estou em exaustão, mas ainda arrisco mais um pouquinho de trabalho. O que é automático sai tranquilo, mas pensar exige mais. Ler, então, é uma odisseia.
Com muito custo o convenço a ir ver a novela. Ele vai, mas fica indo e vindo, cobrando atenção. O máximo de tempo que consigo é uns 15 minutos e aí tenho de acelerar para poder encerrar algum tópico ou parágrafo. A parada é dura. Lá pelas nove horas da noite ele começa a demonstrar cansaço e o coloco pra dormir. Ele deita e ronca. Mas aí eu mesma já não tenho mais qualquer fatia de energia. Toca-me a desabar na cama e dormir também, já que preciso aproveitar para descansar quando ele mesmo dorme. E assim lá se vai mais um dia na pandemia, como se estivesse diariamente girando dentro de um furacão. A sorte é que, de alguma forma, sempre vivi assim, ainda que em menor medida. Por isso, espero sair viva!
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