A comuna Amarildo já dá seus frutos
As vitrines
da “ilha da magia” já iluminavam um vindouro natal naquele dia 16 de dezembro
de 2013, quando, na madrugada, um grupo de famílias, sem condições de pagar
aluguel na grande cidade especulada, decidiu ocupar uma área na região mais
nobre da ilha de Santa Catarina: Canasvieiras, a super praia amada pelos
turistas. E, bastou que as lonas dos barracos fossem vistas da estrada, para
que começasse o furdunço. Num átimo e lá já estava a polícia e um pretenso dono
do lugar, até então, um vazio. Quem reivindicou a terra foi uma empresa chamada
Florianópolis Golf Club, de propriedade de Artêmio Paludo, que, em tempo
recorde, conseguiu a reintegração de posse. O judiciário, sempre ágil para
servir aos ricos, já mandou arrancar as famílias e derrubar os barracos.
Mas, as
coisas não foram tão simples assim. As 60 famílias que ocuparam o lugar deram a
ele o nome de “ocupação Amarildo de Souza”, em homenagem ao trabalhador negro,
desaparecido em uma UPP, na Rocinha, e decidiram resistir. Naqueles dias, ninguém
sabia, mas essa ocupação iria levantar o véu espesso que cobria a questão da posse
das terras em Florianópolis.
A
proposta dos “Amarildo”, como ficaram conhecidas as famílias, era a de
constituir ali, naqueles 600 hectares de terra uma comunidade agrícola, onde
pudessem plantar e viver. Boa parte das pessoas era migrante e saíra do campo
em busca de vida melhor. Na capital, as famílias viviam de bico ou no
subemprego, e não conseguiam garantir a moradia. Ocupar foi a solução. Afinal,
terra vazia, sem cumprir função social, é passível de expropriação.
A resistência
dos Amarildo foi grande. Eles foram tirados do terreno de Canasvieiras, depois
foram para outro no Rio Vermelho, onde a população os rechaçou violentamente.
Com crianças, velhos e mulheres, eles tiveram de se mover e chegaram a ir para
uma terra que era dos indígenas. Mais conflito. Passaram-se meses, de ocupação
em ocupação, insistindo junto ao Incra para que garantissem uma terra. Afinal,
o que eles queriam era integrar-se ao processo de reforma agrária, conquistando
terra e plantando.
Finalmente,
depois de muita batalha, eles foram levados para a cidade de Águas Mornas, onde
as famílias foram assentadas em pouco mais de 130 hectares. Já não eram mais as
60 da primeira ocupação. A dureza da resistência e a necessidade de ganhar a
vida na capital mesmo foram fazendo com que muitos tivessem de desistir. Mas,
os que ficaram logo arregaçaram as mangas e começaram a fazer a terra parir. E
ela deu frutos. Em pouco tempo já havia uma boa plantação de hortaliças,
produção de geleias, criação de galinha, e as famílias já começavam a comercializar.
Ainda
assim, as coisas não estavam definidas e a luta pela posse definitiva da terra
seguiu. Finalmente essa semana, os Amarildo tiveram uma vitória. O INCRA de
Santa Catarina formalizou, através de publicação no Diário Oficial, a criação
do Projeto de Assentamento, na modalidade Desenvolvimento Sustentável, para a
Comuna Amarildo de Souza. Isso significa que agora eles estão legalizados e
poderão, inclusive, garantir recursos para seguir plantando com mais eficácia e
qualidade.
Por
isso não era sem razão a alegria imensa estampada no rosto de Daltro de Souza,
uma das lideranças da área, quando me entregou nessa manhã de quinta-feira, a cópia
do documento oficial. Naquele pequeno pedaço de papel estava plasmada toda uma
batalha, que durou mais de três anos, travada na escuridão dos barracos de lona
e, depois, na solidão da distância, em
Águas Mornas.
Agora,
novos caminhos se abrem para os Amarildos e muito trabalho está por vir. As
famílias que perseveraram seguirão trabalhando e produzindo a comida que chega à
mesa do povo da cidade. E quando a noite chegar, eles poderão descansar a
cabeça na sua terra.
Mas,
apesar de estarem distante da capital, onde tudo começou com a ocupação do
terreno na beira da praia, os Amarildo deixam em Florianópolis a sua marca.
Depois da ocupação de 2013, que ousou questionar a posse da terra urbana, muita
água rolou. Aquela ferida aberta na região mais nobre da ilha moveu o
historiador Gert Shinke a pesquisar sobre quem eram os donos das terras na
ilha. E sua escavação nos arquivos acabou descobrindo a gigantesca farsa da “reforma
agrária” feita durante o regime militar, na qual os governantes distribuíram terras
aos amigos. Um vespeiro que ainda está zunindo e que pode ter consequências.
Lá em
Águas Mornas, as famílias da Amarildo agora dormem em paz, enquanto que nas
casas-grandes dos surrupiadores de terra a chapa esquenta. Não que se tenha fé
no judiciário. Impossível. Mas, pelo menos, o véu está rasgado e alguma
incomodação eles vão passar.
Na comuna,
mais do que nunca, ecoa o bordão pelo qual eles são conhecidos: “Firmes!” E
cada vez mais. Vida longa para a comuna, vida longa Amarildos.
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