O mundo das redes sociais tem provocado reações interessantes. Ora, serve para democratizar a informação, ora para confundir e difundir mentiras. É um terreno fluido, líquido, pantanoso. Navegar por esses mares do éter cibernético requer cuidado e, principalmente, formação. Como os conteúdos são jogados sem qualquer compromisso com a verdade - ou são mentiras propositais para confundir, ou são meras opiniões, o sentir de cada um sobre os fatos - apenas aqueles que se dispõe a investigar, procurar a fonte original, compreender a realidade, podem formar um quadro que verdadeiramente se aproxime do real. Só que isso dá trabalho, exige estudo, leitura, pesquisa sistemática. Então, o que parece ser hegemônico nos espaços como facebook, twitter ou plataformas semelhantes, é um bombardear incessante de informações sem fundamento, opiniões pessoais, preconceitos e muitas vezes até a discriminação criminosa.
Pode-se observar isso em questões bem específicas que envolvem a política mundial: as manifestações populares na Ucrânia, na Venezuela e no Brasil. Tem sido bem comum nas redes sociais, as pessoas compararem os três países como se fossem situações semelhantes. Uma postagem em particular diz assim: Na Ucrânia, o povo luta contra o socialismo, na Venezuela, luta contra o socialismo e, no Brasil, luta pelo socialismo. Nada poderia ser mais mentiroso. É absolutamente impossível comparar a realidade desses três países de forma tão simplista.
Na Ucrânia, a população está em conflito e mobilizada. Uma parte quer que o país estreite laços comerciais com a Rússia e outra parte quer a união com a Comunidade Europeia. Aí estão colocadas a luta de classes e visões distintas de mundo. Os que querem a União Europeia preferem estar na parceria com o centro do mundo capitalista, acreditando que, com isso poderão participar das promessas do sistema. E não é apenas a elite que anseia pelo pleno capitalismo. Ali também estão operários, estudantes, camponeses pobres, trabalhadores informais e ex-soldados que sentem-se à margem do bem-estar nessa nova Ucrânia pós-soviética. Esses, acreditam que essa outra forma de organizar o mundo, representada pela comunidade europeia, pode lhes dar uma chance melhor, afinal, nunca a tiveram.
Os que preferem a aliança com a Rússia não estão a favor do socialismo, até porque essa experiência há muito tempo que não existe mais naquele país. A Rússia aparece como um parceiro desejável porque tem um considerável poder, por conta de sua força nuclear e militar. E, também, por conta de que seus aliados são os que estão hoje no comando da Ucrânia. Mas, do ponto de vista da proposta de desenvolvimento, não há muitas diferenças com o projeto capitalista.
O certo é que a Ucrânia hoje tem uma sociedade dividida e está em conflito, mas os motivos disso não são tão simplistas assim, de ser contra ou a favor do socialismo. Aliás, como já disse, o socialismo nem está em questão. Há toda uma experiência do passado - de ligação com a antiga União Soviética - que é rechaçada pelas novas gerações, há racismo, há rasgos fascistas, assim como há o medo de mergulhar na ilusão capitalista por conta da já conhecida derrocada de vários países da periferia da comunidade europeia. É complexo. E esse embate já gerou mais de 100 mortos, porque, afinal, é uma batalha de concepção de mundo. Os últimos informes apontam para um acordo entre a oposição (pró-europa) e o governo (pró-rússia) de antecipação das eleições e mais poder para o parlamento. Tudo isso pode significar o levantamento das barricadas, mas não garante que todas essas pessoas - as bem intencionadas ou não - terão os ganhos que sonharam. A luta pelo poder recomeçará forte na batalha das eleições.
Na Venezuela a situação é radicalmente diferente. Não há um passado de ligação com o dito "socialismo" soviético. É o contrário. Ao longo de toda a sua existência como república, a Venezuela esteve dominada pela elite local, nascida e criada na exploração dos índios, dos camponeses e, agora, da riqueza natural que é o petróleo. Desde sempre a opção dos que comandaram o país foi pela exploração capitalista. A batalha que está dada hoje na Venezuela é sim, contra as propostas de caráter socialista iniciadas por Hugo Chávez. A chegada de Chávez ao poder em 1998 trouxe a possibilidade de repartição da riqueza do petróleo, que até então estivera na mão de muito poucos. Isso começou a ser feito com uma série de mudanças estruturais que se iniciaram, mas que não se completaram. Logo, não há um regime socialista na Venezuela. O que há é um capitalismo de Estado que tem como proposta ir se socializando. Mas, esse objetivo tem sido algo bem difícil de alcançar.
A Venezuela não conseguiu alavancar o desenvolvimento interno, a indústria, a produção agrícola. A elite que segue fazendo batalha contra as propostas do governo - porque quer voltar a dominar a riqueza petrolífera - nunca pensou em apostar no desenvolvimento do país. Quando tinham a renda do petróleo, exploravam e enriqueciam. Hoje, sem ela, exploram o setor de importação, que é igualmente rentável e não gera divisas, a não ser para eles. Então, o que está em disputa na Venezuela é um projeto de Estado e de desenvolvimento. É certo que nas fileiras dos "escuálidos", a oposição elitista, também tem gente simples, camponeses, trabalhadores, operários que tem suas próprias demandas, legítimas, mas que somadas ao golpismo, acabam se perdendo. Com certeza, entre esses trabalhadores, não deve haver quem queria a volta da exploração dos velhos oligarcas, mas eles também têm críticas ao governo bolivariano, que muitas vezes não são levadas em conta. Por isso gritam e se manifestam legitimamente, oferecendo outro projeto. Tudo isso torna igualmente complexa - embora não igual a da Ucrânia - a luta que se trava nas ruas.
A semelhança com a Ucrânia é a da mobilização popular – tanto de facções reacionárias, como progressistas - a realidade de uma sociedade em crise, mas os motivos que levam uns e outros às ruas são bem diferentes, e devem ser analisados nas suas respectivas conjunturas. Na Venezuela, o que se vê é um governo com ampla base e apoio popular, que não tem medo de chamar o povo às ruas, que convoca a população a defender a proposta bolivariana de desenvolvimento. O governo não se esconde e não escamoteia suas propostas. Tem problemas? Claro que tem! A Venezuela não é um país socialista, o governo - desde Chávez - comete muitos erros, se equivoca de caminho, volta, retoma. Há uma certa burocracia estatal se fortalecendo, há corrupção. Óbvio. É um governo de humanos. Mas, também há esse diálogo direto com as gentes, feito cara-a-cara e sem medo de defender as escolhas de cunho mais socialista ou progressista. Assim, os erros podem ser acertados. Tudo está em ebulição. Essa é uma luta interna, mas não dá para ser ingênuo. Aproveitando-se das divergências internas, o império - incorporado nos EUA - põe a sua mão. É igualmente óbvio que um governo bolivariano não é bom para os Estados Unidos. Eles preferem os amigos da velha elite, seus também velhos aliados. Vai daí que tudo isso se expressa nas ruas. Descontentes de esquerda, a direita renitente e os mercenários ianques. Realidade explosiva e complexa.
No caso do Brasil, as similitudes aparecem igualmente no crescimento da mobilização popular que esteve bastante adormecida nos últimos tempos. Como a opção do governo petista, desde Lula e agora com Dilma, foi de aliança com os banqueiros e com a elite dominante, os problemas de poder começam a se acirrar, porque a elite é insaciável. A escolha por seguir pagando religiosamente os serviços da dívida tira do governo brasileiro a possibilidade de realizar mudanças estruturais. Como analisou o economista Nildo Ouriques, no programa Faixa Livre, da Rádio Livre, nessa sexta-feira (dia 21) as políticas sociais do governo brasileiro não passam de "caridade", não conseguem ultrapassar esse limiar. Com isso, foi se formando uma grande bolha de descontentamento. Existem críticas fortes feitas por parte da esquerda, que, de forma clara tem apontado os desvios de curso, os erros estratégicos, as alianças funestas. Uma esquerda que mostra onde estão os limites e que aponta caminhos, sem ser levada em conta.
Pois esses limites e equívocos agora emergem. O desemprego é uma dos menores da história? Correto. Mas os salários são de miséria. Isso vai aprofundando o abismo das desigualdades sociais. O conflito acaba se explicitando, muitas vezes de forma indefinida e esparsa como mostraram as jornadas de junho. Com a completa falência dos partidos políticos, que deixaram de fazer política, "preferindo fazer trabalho eleitoral", como diz o economista e presidente do Iela, Nildo Ouriques, não restou ao povo senão a revolta, que se mostrou nas mais variadas facetas, inclusive a da reação alienante. "Não sei porque estou na rua, mas se todo mundo está, também vou". Ou seja, era uma apropriação ingênua, mas não irreal, das demandas do movimento social organizado. Essas pessoas, de um jeito ou de outro sabem que o transporte é uma droga, a saúde é uma droga e a educação vive um estado de miséria. As coisas não estão bem! Muitas vezes, como na Venezuela e na Ucrânia, explodem em reações de cunho fascista, justamente porque falta trabalho político junto às massas.
Diante de todos esses conflitos e o acirramento da luta popular - que encontrou ainda mais força no derrame de dinheiro público para obras da Copa - qual foi a atitude do governo petista? De novo, o professor Nildo Ouriques oferece uma interpretação: "O governo não tomou posição diante do povo na rua, preferiu ignorar o conflito, não enfrentou o drama social que gera dependência e subdesenvolvimento. Em vez de convocar as massas para a luta nas ruas, na defesa de um projeto emancipador, abafou o conflito, não explicitou seu projeto de país". Com isso, acabou atiçando a direita que está sempre à espreita de qualquer deslize para se fortalecer.
A conjuntura brasileira, a exemplo da Ucrânia ou Venezuela, também é complexa. Há os jovens que anseiam mudanças, há os revoltados por causas difusas, mas legítima, há uma esquerda crítica que não pode ficar calada sob a pressão de se confundir com a direita, há partidos políticos com interesses coletivos legítimos, mas há também uma direita raivosa que arma e incita à violência, bem como militantes à soldo das políticas estadunidenses, como não poderia deixar de ser. Porque é preciso que se tenha claro que os Estados Unidos atuam, e forte, na tentativa de manter os países da América Latina na sua órbita. Seja com financiamento direto de grupos, seja com a colonização ideológica e cultural. Não são poucas as pessoas "de bem" que acreditam firmemente serem os Estados Unidos os guardiões da liberdade. Desconhecer todas essas forças, também as externas, é enveredar para a ingenuidade, coisa inconcebível no mundo da político. Mas, se há tudo isso, como diferenciar esses grupos no meio de uma multidão de milhares e milhares de pessoas? Aí está o desafio. Nas manifestações de junho, nos grupos que gritavam “fora partidos”, a organização – com distribuição de camisetas e lanches – estava a cargo de conhecidas figuras de partidos de direita. Então, há que se informar, estudar, compreender. Não é possível ficar no âmbito da consciência ingênua, acreditando que o povo que marcha quer uma coisa só. Como também não dá para agir como um avestruz, dizendo que quem protesta são só os "coxinhas", ou mercenários, ou anti-petistas, ou a esquerda "burra". Há uma fatia muito grande de descontentes que estão se expressando. Há gente séria fazendo a crítica. E também há entre os que respondem a violência do estado com violência, porque em determinadas situações é o único que cabe fazer. Desconhecer a realidade é o primeiro passo para a derrota.
A paz, todos a querem. Mas pessoas há que querem a dos cemitérios e outras que preferem a de um país soberano, livre e com participação popular.