Os índios Guarani decidiram sair em passeata pela cidade de
Florianópolis. A marcha foi um protesto e uma afirmação. Protesto, porque era
preciso responder a série de reportagens do jornal Diário Catarinense, que, de
maneira deliberada, desinforma sobre a questão indígena a cada reportagem que
produz. Não é novidade para ninguém que o grupo RBS defende os interesses dos
especuladores de terra. Por isso, essa coisa cotidiana de disseminar meias
verdades. “As famílias que ocupam a terra do Morro dos Cavalos são do Paraguai”,
dizem. Uma mentira, mas mesmo que fosse verdade, isso não as faria menos
Guarani e tampouco faria com que o território fosse menos Guarani. Antes da
chegada dos invasores europeus toda essa região que pega parte do Rio Grande,
Santa Catarina, Paraguai, parte do Uruguai, Bolívia e Peru era território
Guarani. Assim que não há mais nada a discutir sobre isso. O espaço ocupado
pelas famílias Guarani no Morro dos Cavalos é Guarani.
Outro elemento colocado pelos disseminadores do ódio e do
preconceito é que os índios não precisam de tanta terra para viver. Outra
mentira e outra desinformação. A cultura indígena se diferencia da cultura do
branco. Primeiro que eles não organizam suas vidas como os brancos da cidade,
que dividem a terra em lotes nos quais tem sua moradia, desvinculadas da vida
mesma. Para o Guarani, o território é espaço coletivo, no qual as famílias
compartilham a existência. Ali, há o espaço das moradias, da agricultura de subsistência,
do sagrado, da preservação. A terra é muito mais do que um lugar onde morar, é
espaço de vida, de cultura e de espiritualidade. No território eles moram, vivenciam
a cultura, fazem rotação de plantio, encontram seus deuses. Será tão difícil
entender isso? Desde quando essas pequenas fatias de terra podem ser
consideradas “muito”, se os indígenas são os primeiros usuários desses lugares?
E por que não se questiona com igual virulência o fato de uma única pessoa ser
dona de milhares de hectares de terra improdutiva, como é o caso dos latifúndios?
O fato é que os povos indígenas são os verdadeiros donos das
terras, usurpadas pelo invasor. E, agora, o que pedem é ainda muito pouco
diante do que deveria ser legitimado como território indígena. Ainda assim, a
cobiça dos latifundiários e dos especuladores não tem fim. Não basta confinar
os indígenas em espaços minúsculos, há que lhes negar o território mínimo. E mais, há que colocar sobre eles toda a sorte
de preconceito e dúvida.
Mas, os Guarani não se intimidam com as práticas violentas
dos meios de comunicação a serviço dos especuladores de terras. Lutam por seu
território e defendem sua forma de vida. Por isso decidiram realizar a
caminhada pelas ruas da capital catarinense para entregar à população um panfleto
onde contam a sua versão sobre os fatos. Um espaço de diálogo no qual buscam
falar de sua história e de sua foram de organizar a vida, que é coletiva e
caminhante, bem diferente da do não-índio.
Nesse protesto, os Guarani receberam a solidariedade de
outros grupos que, igualmente, sofrem os ataques da mídia e da sociedade
excludente. Negros, que vivem cotidianamente um genocídio. Quilombolas, que
lutam pela regularização de suas terras.
Povo sem terra, que busca um espaço para viver com dignidade. Todos eles
marcharam juntos, apresentando suas demandas, irmanados, porque, afinal, como
definiu uma das lideranças negras, Alexander Zock Faria: “Nossa luta é a mesma,
é uma luta pela vida, unicamente pela vida”.
Os Guarani que vivem no Morro dos Cavalos conformam uma
comunidade com 32 famílias. Vivem há anos confinados em um pequeno espaço de
terra, no qual sequer conseguem plantar. Lutam para garantir o território (menos de 0,6% do espaço total do estado) e a
desintrusão, que é a retirada das famílias que hoje ocupam a área originalmente
indígena. Muitas já aceitaram o acordo com a Funai, mas ainda há resistência.
Algumas famílias estão ali há anos, tendo comprado as terras de boa fé. É um
conflito, de difícil solução, ainda mais que o tempo todo é transpassado por
pessoas que procuram aprofundá-lo. O território Guarani também fica bem no meio
de uma disputa com o Estado , que quer a duplicação da BR 101, e é uma
constante na mídia, imputar aos indígenas a culpa pela demora das obras. Ora,
se a BR ainda não foi duplicada, a culpa não é dos Guarani, mas sim dos governos
estadual e federal que não cumprem a lei. Questões como a consulta aos indígenas
– que está garantida na Constituição – e problemas de ordem da legislação
ambiental é que tem travado o andamento das obras. Mas, fica mais fácil jogar a
“culpa” para os índios, como se fossem eles os responsáveis pelo “entrave” e
pelas mortes que seguem acontecendo no trecho não duplicado. Cria-se um consenso
contra os indígenas, quando, na verdade, as causas do atraso são outras. E
assim, o preconceito contra os indígenas vai se aprofundando, com a sempre
providencial atuação da mídia, que propaga mentiras.
A caminhada dessa sexta-feira (dia 22 de agosto) foi uma
tentativa de mostrar à comunidade catarinense que o povo Guarani tem todo o
direito de ocupar o seu território, que é ínfimo diante do que lhes seria
direito. E, também, na medida em que os indígenas saem à ruas, mostrando todos
os elementos de sua cultura, buscam também levar conhecimento ao juruá (não-índio),
informando sobre sua forma de viver. Eles acreditam que se a população tiver a
informação correta não vai discriminar.
O protesto contra a RBS teve a parceria dos representantes
do movimento negro, que também apresentaram à sociedade a sua luta contra o
genocídio do povo negro, dos quilombolas, que lutam pela regularização de suas
terras, e das famílias que hoje lutam por moradia na Ocupação Amarildo. Juntos,
eles desfilaram suas bandeiras e suas demandas. Uma caminhada pelo direito de
viver em paz.
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