Nunca me ocorreu ser mulher.
Na família, jamais vivi qualquer opressão ou discriminação. Desde bem
pequena, mergulhada no mundo dos livros, aprendi que para conquistar os sonhos
que brotavam na cabeça, tudo o que tinha de fazer era levantar e agir. A
condição feminina nunca se colocou como limite para nada. A luta política, o
estudo, o trabalho. Fazia o que tinha de fazer. Com 20 anos fui trabalhar na
televisão. Espaço masculino. Ali – eu nem sabia – a mulher, ou era capacho, ou
era puta. Eu, nem uma coisa, nem outra. Meu negócio era trabalhar. Repórter,
viajando pelos caminhos com uma equipe de homens, nunca reparei qualquer olhar
de soslaio. Não havia. Na firmeza, eu cavava meu lugar.
Talvez, por conta disso, as lutas ditas feministas nunca me
atraíram. Primeiro porque eu sempre acreditei que as questões referentes à
mulher tinham de estar imbricadas na luta de classe. Mesmo a liberdade sexual,
da qual usufruí sem nunca pensar sobre ela, me parecia uma luta estranha. Ainda
assim, naqueles dias de juventude, eu apoiava, custando a crer que alguém
pudesse não ter o direito de dispor do seu corpo como bem quisesse. Via mais as
coisas pela ótica do Malleus Maleficarum – O Martelo das Feiticeiras – livro
que marcou minha vida – o qual narrava os horrores da inquisição com as
mulheres chamadas de feiticeiras por ousarem ter poder no mundo dos homens, do
que pelo Relatório Hite – livro que teorizava sobre o orgasmo feminino.
Depois, entendendo melhor as coisas do mundo, foi que me vi
mulher. Então, vivi a experiência da centopeia que andava garbosa com suas cem
pernas sem nunca pensar sobre elas, e quando alguém lhe perguntou: como
consegues andar com tantas pernas, ela se deu conta do problema que era e nunca
mais pode andar, tropeçando nas pernas. Por algum tempo me obriguei,
tropeçando, a olhar para a realidade observando a condição da mulher. Tantas, oprimidas
por pais, maridos, patrões. Algumas nem sequer ganhavam o mesmo salário que os
homens na mesma função. A violência doméstica, as mulheres do oriente com seus
corpos cobertos, sem poder estudar, as comunidades que mutilavam as meninas. As
terríveis violações que as mulheres sofrem nas guerras.
Percebi então que havia coisas relacionadas com a
mulheridade que estavam para além da classe. Como não ser solidária com uma
mulher oprimida, ainda que ela pertencesse à burguesia ou a aristocracia? Mas,
ainda assim, entendia que isso tinha muito mais a ver com o sentimento contra a
injustiça do que com a condição feminina. Também conheci homens oprimidos por
mães, por esposas e patroas. E com eles marchei. De alguma forma sempre
desconfiei dessa fragmentação e hierarquização da dor. Esse mundo de “tribos”. Luta
das mulheres, luta dos negros, luta das pessoas com deficiência, luta dos
índios. No frigir dos ovos, tudo era uma coisa só. E, ao ser despedaçada, mais
servia ao sistema opressor do que à causa.
Assim, mesmo patrulhada, nunca queimei sutiã e nem gritei
pela igualdade com os homens. Não quero igualdade. Somos desiguais. Entendo que
como mulheres, negros, deficientes ou índios, temos de nos unir, na semelhança,
para sermos fortes em batalhas pontuais, mas a luta tem de ser por um projeto
de mundo que se diferencie desse que aí está. Isso é o que nos alinha, o que
nos dá sul. Não estou no projeto da Kátia Abreu, nem do Angela Amin, ou da
Narcisa Tamborindegui. Não estou no projeto do Pelé nem do Barak Obama. Então,
posso me compadecer se alguns deles sofrer violência ou preconceito. Mas, meu
caminho é outro.
Vivo mulheridade com todas as suas belezas. As fases
lunares, as delicadezas, a ternura, a emoção, o desejo de esmaltes e batons.
Vivo a mulheridade na forma de estar no mundo, sem oprimir quando com poder,
usando e abusando das dessemelhanças. Na luta das mulheres quando necessário,
feminina todos os dias. Assim, como a centopeia antes de saber dos pés. Sendo
mulher.
E nesse passo cadenciado, de salto alto, vou carregando os
tijolos da construção da sociedade justa, sem discriminação, sem preconceito,
sem violência. Esse mundo no qual nem o homem nem a mulher sejam lobos de si
mesmos. Essa utopia... Vivo a mulheridade, sempre, mas sem nunca esquecer de
onde eu venho nem a classe a qual pertenço. Sou, penso e luto. Essa é a minha opção!
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