Alzheimer/Velhice
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sábado, 23 de novembro de 2013
quarta-feira, 20 de novembro de 2013
O susto ou: não devíamos acordar todos para a vida?
Texto de: Newton Tomazzoni
Sou uma eterna criança. E não tenho vergonha nenhuma de dizer isso. O que para a maioria talvez seja uma grave acusação, uma infame calúnia, ou uma irritante constatação, a mim é, na verdade, uma festa e uma orgia. Uma volta ao meu verdadeiro lar. Lá onde eu moro comigo mesmo e minha quente verdade. A se acreditar no filho de Deus, somente quem se tornar uma criança poderá entrar no reino dos céus. Por isso há muito tempo que desisti do mundo sério e engomado dos adultos. Ele não acordou a minha alma. Não fez cócegas na minha fantasia. Não zombou dos eternamente corretos. Ao contrário: ele tornou tudo cinza e barrento. Vozes resolutas anunciadoras de cantos estranhos a toda delicadeza...
Digo isso como um prelúdio: resisto em me tornar adulto. Talvez essa afirmação estranhe àqueles que, filhos da normalidade e devedores do ideal de cientificidade do mundo ocidental, acreditam no estado de maturidade como o ápice da vida. Eu caminho por outras estradas. Quem se tornou maduro é boi de canga, escravo, desertor de novas paragens, aceitou o selo da desistência gravado em sua pele, trocou as águias pelas tartarugas. A maturidade é um estado de quem chegou. Eu não quero chegar a lugar algum. Quero andar procurando...Há tantas coisas belas e simples espalhas pelo caminho. Invisíveis para quem não tem o olhar brincante. Jamais saboreadas por aqueles que “chegaram”. Quem chega desiste de novos rumos. Quem chega esvazia as malas. Quem chega guarda sua capa de chuva no armário. Quem chega, na verdade, chegou ao fim. Envelheceu. Seus olhos veem o que todos veem. Normal, demasiadamente normal.
Eu tenho dó dos maduros. Eles se sentam nas praças olhando o infinito com os olhos marejados de água. Sentam-se no meio fio das calçadas enquanto a banda passa “cantando coisas de amor” que eles nunca viveram. Tristes e dolorosos olhos em direção ao nada. Ansiando uma luz, uma mão, um sorriso...Eles não perseguem mais estrelas. Pois não há mais onde seguir. Chegaram. Maduros. Que vida triste, medida, domada, enclausurada, impotente, medíocre. Não haveria assim uma espécie de forma de sacudir essa gente? Penso que sim: um susto. Só há duas maneiras de alguém acordar antropologicamente para a vida. Primeira: uma decisão pessoal jogada na direção do não sabido. Uma corajosa vontade interior de enfrentar os abismos da existência. Alternativa muito pouco usada. Segunda: uma grande dor, um grandioso susto que os arranque desse ai aterrorizante de suas vidas estilhaçadas e os faça caminhar em direção a uma grande aventura.
Por isso que eu tenho um costume infantil. Adoro assustar meus alunos nos intervalos das aulas. Tal uma criança peralta, eu me escondo atrás das pilastras da Universidade e os assusto quando eles passam. Muitos pensam: esse professor não cresceu? Não. Definitivamente não. Esse professor não cresceu. Nem quer...Quando eles menos esperam eu grito nos seus ouvidos. A algazarra é geral. O riso emerge feliz por alguém tê-lo despertado. Ele é encouraçado, reservado, é preciso trazê-lo para fora. Ele não aparece fácil. Uns ficam brabos, outros entendem o recado: é preciso sair da mesmice que o cotidiano nos coloca. É preciso acordar para a delicadeza da vida, pois ela é uma grande brincadeira séria. O riso não é algo inocente. Ele é poderoso revolucionário. Rir não é só dispêndio de energia, como acusa nossos dicionários. Ele é um abrir cercas para deixar passar nossos anseios escondidos. É a última rebelião contra a tragédia. É como se rindo disséssemos: isso que ai está não é nossa grandeza. Há algo mais profundo. Belo, trágico, engraçado...O riso nos mostra a direção do sentido. Só ri quem já se superou. Segundo Ernest Bloch: “O que esta ai não pode ser verdade”. É isso que o riso faz. Nos arrasta para além da verdade. Nos empurra para dentro da beleza.
Por isso não deixarei de assustar meus alunos. A despeito de alguns ficarem brabos, não me importo. A beleza que brota de seus risos nos faz seres melhores, eu e eles, em dia com a quente verdade da vida. Uma vez uma aluna me disse: professor, você parece tão feliz! Eu respondi: Meu riso é uma desesperada tentativa de domesticar a tristeza. Não sei se ela entendeu, espero que sim. Se não, torço para que esse texto a ressuscite, como o riso faz em mim a toda hora. Por isso escrevo. Minha alma é hebraica. Os hebreus acreditavam na força da palavra. Até colocaram la no seu livro sagrado: “O verbo se fez carne...”. É isso. A palavra tem o poder de nos ressuscitar assim como um susto. Que um dia meus alunos possam, ao cair da noite de suas vidas, dizer como Mario Quintana, esse irmão que eu tenho da mesma mãe existência: “Sou apenas uma criança que envelheceu, um dia, de repente”.
Ogrinhos carinhosos
Conversando na padaria, descobrimos que estamos cercados por um tipo bem
especial de ogro urbano. São pessoas que aparentemente são brabas,
mal-humoradas, cheias de raiva, aspecto sisudo e prontas para fazer
alguma maldade. Mas, no fundo, não passam de criaturas cheias de doçura,
capazes dos atos mais lindos de amor. São os nossos "ogrinhos
carinhosos"... Na aparência, dureza... na essência, só belezas... Só das
nossas relações, minhas e da Míriam Santini de Abreu,
podemos enumerar, de saída, uns oito... Quem se reconhecer saiba:
amamos vocês e nos recostamos seguras, tal qual o menininho da foto...
terça-feira, 19 de novembro de 2013
O mineiro franciscano
Leopoldo Nogueira com as Pobres e Nojentas
Quando ele chega é como se uma luz dourada pairasse a sua volta. Tem a doçura da criança e a mansidão do velho. Está sempre a inventar brincadeiras como se a vida - dura na realidade - fosse mesmo um imenso jardim. Seu riso baila na sala como um ruído de cristal, limpo, quase divino, mesmo quando conta uma de suas muitas piadas sujas. Nunca se rende a dor, nem nos momentos mais difíceis. Chora, é verdade, e muito. Mas não se entrega ao sofrimento. Apenas sente, deixa que rolem as lágrimas e sobe, na busca do esperado meio-dia. Sabe que a tristeza dói no outro.
Leopoldo Nogueira é mineiro de Belo Horizonte. Tem a beleza das “geraes”, a terra de Marília e Dirceu, de Drummond, terra que abrigou Cruz e Souza em suas horas de morte. Nasceu no ano de 1960 e, na infância, pouco sentiu os terrores da ditadura militar. Menino, brincava na rua, ora soltando pipa, ora olhando para o céu e se encantando com a beleza da vida. Leitor contumaz, era rato da biblioteca do avô. Da mãe, artista plástica, ganhou o gosto pela arte e, na escola, era comum vê-lo nas peças teatrais. Tinha grande facilidade de articular os conteúdos e logo começou a se questionar sobre as coisas do mundo. Como ser? O que fazer? Que vereda seguir para ajudar os outros a serem felizes? Essas eram as preocupações do garotinho que ruminava as diferenças entre os seres, no caminho entre a leitura de um Tio Patinhas e um Schopenhauer.
Entre as leituras que fez, uma delas lhe tocou a alma: era sobre a vida de Francisco, o de Assis. Tamanha ternura lhe deu aquele homem que não teve dúvidas. Disse: vou ser franciscano. Então, toda a sua vida caminhou nessa direção. A idéia de ser padre não vingou, ficou para trás, mas o conceito de franciscanidade não. Seguindo essa senda foi parar em Alto Paraíso/Goiás, numa comunidade alternativa, onde trabalhou como professor e no apoio a crianças abandonadas. Dali seguiu para o interior de Minas onde queira fazer faculdade de Artes Plásticas. Mas, a universidade sempre lhe foi um peso. “Deviam oferecer disciplinas e a gente ir escolhendo. Assim como é, parece uma prisão”.
Bicho livre, não conseguiu ficar na rotina das cadeiras inúteis. Golpeado no corpo e na alma, desistiu da pequena cidade do triângulo e veio encher de magia o sul. Chegou a Florianópolis em 1998, direto para a Universidade Federal, onde foi trabalhar na Agência de Comunicação. Ativista dos Direitos Humanos foi logo inventando coisas para discutir uma vida de paz. Mas sua alma de menino-artista tampouco conseguiu sobreviver em meio à aridez acadêmica. Pediu demissão e foi viver sem vínculos. Hoje sobrevive com alguns trabalhos que faz como artista gráfico. Não têm sido fácil, muitas são as experiências “desencantantes”. “Eu fiz o caminho inverso do que fez Cruz e Souza, saí de Minas, e vim pra cá ficar sem terra, sem árvore, sem lar, nesta Ilha do Desterro, onde no mais das vezes a falta de arte e cultura, de abraços, jardins e flores acabam matando a gente aos poucos, enterrando na tristeza”. Só que como não se rende, Leo segue o caminho, teimoso, apesar de estar morando de favor na casa de um amigo. Franciscano na prática, ele não se importa em não ganhar dinheiro, e tampouco fica chateado em mendigar. Acredita que as pessoas devem repartir o que têm. Por isso, quanto tem, reparte. Agora, diz, vive seu tempo de receber. “Já fiz de tudo nessa vida e acredito na solidariedade. Quando eu tinha dinheiro, eu repartia. Acho que todos têm direito de ter acesso a tudo o que o conhecimento humano proporciona. O amor franciscano, aquele do Cristo primitivo, precisa ser uma coisa concreta.”
Leopoldo acredita muito que a grande beleza está lá, “em casa”, ou na outra vida. E, enquanto ela não chega, ele vai contando histórias, compartilhando sua alegria de menino-artista-velho-amoroso com aqueles que são capazes de entender. “Quem tiver ouvidos para ouvir, que ouça”, diz. Defende com unhas e dentes a espiritualidade histórica-dialética, ou seja, “essa com a qual o ser humano pode compreender e perceber as outras dimensões em que se manifesta, interligado e integrado à vida universal, e pela qual possa se manifestar no universo e nos pluriversos tantas vezes desconhecidos pelas vãs filosofias, religiões, até as ciências, inclusive as ‘ocultas’ ".
Assim, nesse mundo de dor/sorriso a esperança de Leo são as crianças. Acredita, como Nietzsche, que é nelas que está a possibilidade de um novo tempo. Por isso, agora que voltou à universidade, a pedagogia que estuda e professa é a da libertação. “Hay que escolarizar-se, pero sín perder la ternura jamás”, diz, parafraseando Che, com aquele seu risinho mineiro. Crítico da escola, busca no seu fazer cotidiano encontrar respostas para uma nova educação, que não formate, que não oprima, que não mate a criança interior. Por isso, inventou um (ante) manifesto, que está em construção. “Ele foi inspirado no Manifesto Comunista, de baixo pra cima. Eu entendo a importância que aquele manifesto teve naquele período histórico, mas penso que hoje devemos contemplar em nossos corações as indignações para o despertamento da Criança Interior, capaz de fazer a verdadeira revolução, talvez a única possível: a de nossos próprios corações, que se entenderão uns com os outros nas dimensões em que interagimos.
Dividimos com todos essas idéias, para que comunguem e retornem. O manifesto não está pronto. Precisa de ti! Da tua criança... Então? Avante!!! “Esse `manifestarmos` quem somos, apesar de tudo o que nos quer "apagar", é a fonte de inspiração desse Manifesto das Crianças: mãos em festa, em obra, escarafunchando a Terra, acariciando um rosto, enxugando uma lágrima, dando-se à outra mão/Criança para passear junto pelos campos”.
(ANTE)MANIFESTO DAS CRIANÇAS
Crianças de todo o mundo, uni-vos!
As crianças têm toda a infância a perder se não soltarem a imaginação e abrirem as caixas de brinquedos para libertar a Esperança como uma pandorga livre no ar. Têm um mundo a sonhar e realizar como seus.
Crianças, coloquem em primeiro lugar, como ponto fundamental, a questão de se apropriarem de todas as terras para plantar flores e grãos com suas pás, baldes e regadores. Finalmente, unam-se para que todos as entendam em todos os países.
Em resumo, sejam a favor de tudo aquilo que as coloque a caminho dos jardins que esperam a revolução das estações com suas alegrias, com o sol, a lua, as estrelas, a chuva, o vento, o tempo.
Borboletas, abelhas, minhocas, passarinhos, todos se aliam a favor de seus sonhos. Em lugar dos antigos blocos de cimento duro ou asfalto seco, associem-se a cada um para que todos possam correr livres pelos jardins e campos à espera de sua vida.
O seu poder, crianças, está para converter a secura das paisagens em florestas e bosques perfumados de doçura e sorrisos. Desapareçam, como que por encanto, todos os seus medos quando vocês se derem as mãos para isso. Sim, isso poderá se realizar em 10 passos como no jogo de amarelinha, pé-ante-pé, indo das tristezas das paisagens que lhes foram dadas até além, onde o céu se põe em espetáculo de cores. Vamos, se abracem. Pulem!
As crianças arrancarão de seus corações, pouco a pouco, todas as ervas daninhas que lhes foram plantadas pela tradição das escolas, como tem acontecido através dos séculos. Isso não acontecerá novamente neste maravilhoso jardim-de-infância.
Do mundo antigo há arvores que lhes foram mostradas lindas, como a da liberdade, a da justiça e tantas outras que jamais lhes foram dadas para brincar. Mas, em seu jardim, todas as novas árvores estarão verdes na primavera para vocês balançarem em seus galhos, e se deitarem às suas sombras nos dias de calor. Venham, tragam suas sementes para plantar de novo aquela Esperança.
Uma nova história começa a partir de sua semeadura. Que nos canteiros de flores sejam desmarcadas todas as fronteiras de sua meninice, para que seja conquistada a amizade entre todos, numa só pátria de solidariedade como flor desabrochada por seus anseios.
Meninas e meninos, tragam seus gracejos e sua vida! Venham com todos os seus brinquedos fazer casinhas nas árvores, reencontrar uma família de irmãs e irmãos que compartilhem a vontade de recriar os laços de ternura e afeto. Brinquem, que as árvores e o jardim são de todos.
Inventem suas novas formas de brincar, esqueçam-se das pilhas e dos manuais de instruções de cada jogo que lhes foi ensinado. No amor e companheirismo dedicados uns aos outros poderão ser descobertas outras maneiras de contar e fazer histórias. Sejam livres para fazer a sua linda história de amor e solidariedade.
Crianças, que seus corações estejam abertos para compartilhar a riqueza de idéias e ideais de cada um. Que o futuro seja construído a partir de seus sonhos de ventura. Repartam, de mãos cheias de alegria, os abraços e cuidados para com tudo e todos. Construam, assim, seu mundo novo.
As flores e os frutos deste jardim são abundantes. Juntem suas mãos para colher mil buquês, façam suas cestas para depois irem repartir estas alegrias plantadas e descobertas. Repartam este jardim aos outros, chamem mais crianças para brincar, que estes campos são para todos. Unam-se.
Deixem os bancos enfadonhos das escolas que transformam as crianças em peças de máquinas, e dispersem-se pelos canteiros em busca do que aprender com seus novos amigos. Ah, crianças, abram suas asas da imaginação para tocarem-se e repartirem o que têm aprendido. Subam às árvores, iniciem hoje este processo de compartilhamento destes sonhos.
Continentes inteiros esperam sua chegada, crianças, para que da terra brote as esperanças adormecidas. As cidades mortas, as casas vazias de ternuras, as estradas poeirentas, os campos aguardam sua vinda. Espalhem-se, recriem a natureza à imagem e semelhança de seus sonhos. Que a solidez das flores se desmanche no ar em bem-te-queros através dos seus perfumes.
Ah, crianças, que as manhãs de seus sonhos façam cair os véus das antigas e tristes noites de quando seus sonhos lhes foram retirados. Sejam corajosas, vivam seus ideais, despertem da sonolência que lhes foi imposta pelos contadores de uma história que lhes tirou a dignidade e os finais felizes. Em cinco pétalas e palavras: acordem, brinquem, vivam, realizem, sonhem.
Sorriam ao compartilharem suas flores, sentem-se à grama e recriem seus brinquedos. Inspirem as outras crianças adormecidas a brincarem também. Quando elas ouvirem suas gargalhadas saberão que podem se juntar à brincadeira e realizarem as vontades de sua imaginação.
Crianças, um mundo despedaçado em ruínas espera sua chegada para que novas formas de viver em alegria recrie a beleza para as futuras estações. Um tempo de pás, de baldes, de regadores, enxadas, foices e martelos para que sejam derrubadas todas as cercas, muros e portões que as separavam de seus sonhos.
Crianças do mundo inteiro, uni-vos!
segunda-feira, 18 de novembro de 2013
Viamão: um retrato singular do descaso com as gentes
Nara Regina foi morar no
interior de Viamão, comunidade de Águas Claras, há pouco mais de um ano. Espaço
rural. Algumas casas, pequeno comércio, mas com os serviços básicos de uma
comunidade que já tem mais de sete mil almas: posto da brigada militar, escola e
posto de saúde. Uma fábrica da Ambev atraiu muita gente e o povoado cresce a
cada dia. Mas, o que pode parecer bucólico revela toda a falta de respeito que
uma administração pode ter com o seu povo.
Viamão é o maior município da
região metropolitana de Porto Alegre, maior até que a capital. Tem quase 300
mil habitantes, os quais se espalham pelo largo território. Uma grande parte
vive nas comunidades rurais ou na periferia. Ainda assim, a prefeitura atua
como se cada cidadão de Viamão fosse filho de Porto Alegre. Pouca coisa se
consegue fazer no município e quase tudo
aponta para a capital, fazendo com que as pessoas vivam uma espécie de calvário
por conta de pequenas coisas.
Um exemplo disso é a saúde. Na
comunidade de Águas Claras, desde agosto de 2012 não há médico. Qualquer um que
procure o posto de saúde do local vai ser recebido por uma moça solícita que só
sabe dizer: não temos médico, não temos condições, não temos nada. Nara tem
hipertensão e precisa de acompanhamento sistemático. Cada vez que precisa de
uma avaliação precisa pegar um ônibus e se deslocar até a parada 44, quase na
entrada de Porto Alegre, onde tem um posto central. Isso significa pelo menos
uma hora de pé, em ônibus lotados, que passam em Águas Claras de hora em hora.
Na última quinta-feira ela foi
mordida por um cachorro. Com a mão aberta, correu para o posto. A enfermeira
nem sequer olhou o ferimento. “Já temos médico, mas ele é pediatra, e não está
aqui agora. Também não temos a vacina anti-tetânica nem a anti-rábica. Melhor
ir para Viamão”. Com a mão enrolada numa toalha, sangrando, lá se foi ela para
a parada de ônibus. Quarenta minutos de espera, mais trinta minutos de viagem
até o centro de Viamão. No posto de
saúde central tampouco havia vacina. Mandaram para o hospital, na emergência.
Toca esperar mais de duas horas pelo atendimento. Feito o curativo, a médica
anunciou que também o hospital não tinha a vacina. “Vai até o posto da 44”.
Mais quarenta minutos na parada e uns vinte minutos de viagem. No posto da 44
tampouco tinha a vacina. O único jeito era ir à Porto Alegre. De novo, mais um
tanto na parada de ônibus até um centro de referência na capital. Cada viagem
no ônibus, três reais e vinte de passagem. Já se iam quase 10 reais.
No Sanatório Partenon, em Porto
Alegre, uma única médica se desdobrava entre o atendimento dos mordidos por
cachorro – que eram muitos - e o plantão
no hospital. Um desgaste tremendo para a profissional e para os que precisam
dela. “Tinha que ter um médico são para o atendimento dos mordidos, mas não
tem. Temos de dar jeito”. Toda essa odisseia entre a chegada no posto de Águas
Claras e a volta para casa demorou exatas oito horas. A sorte da mulher foi que
a mordida não lhe arrancou a mão. Ela pode aguentar.
Mas, a pergunta que fica é: como
pode um município que tem uma população rural imensa, logo sujeita a esse tipo
de ocorrência (uma mordida de cão ou de cobra) não ter, em nenhum dos seus
postos uma vacina? Como pode um município empurrar uma demanda para outro sem
qualquer prurido? Como pode abandonar sua população a esse tipo de sacrifício?
Pois esse município assim o faz.
O novo prefeito, agora do PSDB, ainda chegou ao cúmulo de retirar ônibus de
circulação, deixando a população rural em completo abandono. O que já era ruim,
ficou pior. Foram retirados horários e os coletivos que fazem os percursos
rurais ficam lotados, colocando em risco a vida das pessoas. A resposta ao caos
veio da forma mais perversa possível. A prefeitura autorizou as empresas que
fazem o transporte intermunicipal a recolher passageiros. Só que os ônibus que
fazem as linhas intermunicipais não são adequados para transportar pessoas em
pé. Os corredores são bem menores e não há onde se agarrar. É cruel ver aquelas
pessoas idosas – um número bem expressivo – passarem todo o tipo de humilhação
e aperto. Uma vergonha!
Nas paradas de ônibus a
reclamação é geral, mas, como sempre acontece, os governantes não estão nem aí.
Fazem ouvidos moucos. Eles não usam o transporte coletivo. Resta ao povo a
humilhante espera nos pontos e todo aquele sofrimento para chegar em casa.
Abaixo assinado, protestos, tudo já foi feito e nada. “A gente tem que ir lá e
queimar tudo, só assim eles se mexem”, resmunga uma mulher , carregada de
sacolas. “Estou aqui desde as quatro horas. Já são cinco e 15 e nada do ônibus”.
Ela conta que não pega o intermunicipal
porque a passagem é mais cara. Ou seja. A lógica é clara. A prefeitura tira os
horários dos ônibus urbanos e dá vantagem a dois grupos empresariais de uma só
tacada. Os locais que circulam menos e levam mais gente, e os intermunicipais
que podem lucrar muito mais com os passageiros extras. O povo? Que se
arrombe!!!
E assim segue a vida na adorável
Viamão... Até que alguém resolva acordar...
Construtoras se unem à elite dominante para destruir Florianópolis
Plano diretor vai à votação as quatro
da tarde dessa terça-feira
Os
rapazes bem vestidos da prefeitura de Florianópolis já não pretendem mais
passar por bons mocinhos. Atropelaram a população com o edital do transporte
coletivo, sem debate, sem discussão e agora promovem novo massacre com a
votação do Plano Diretor. Sem que as comunidades pudessem avaliar claramente as
mudanças feitas no projeto que levou anos sendo debatido e acabou cheio de
alterações, o prefeito César Souza Junior encaminhou o projeto para a Câmara de
Vereadores. Tudo isso feito na manhã seguinte à audiência pública, já
encadernado e bonitinho, mostrando que nada do que foi dito pelas lideranças
comunitárias e moradores foi incorporado.
De
forma nada surpreendente o projeto passou como um relâmpago pelas comissões
chegando a ser aprovado em três delas no mesmo dia. Ou seja, ninguém estudou o
plano. Tudo já estava acertado. Depois, foi a vez das emendas que chegaram aos
borbotões de todos os vereadores preocupados em introduzir aquilo que seus
financiadores exigem. Ao todo, 253 emendas recolhidas num calhamaço de 503
páginas. Para as comunidades restou a ação de vereadores como Lino Peres, do PT
e Afrãnio Bopré, do Psol.
Com
o pouco tempo para analisar cada uma das emendas e o plano como um todo, muita
coisa ruim pode passar sem que a população tenha condições de compreender o
conteúdo das mudanças. Uma análise preliminar feita pelo verador Lino Peres, do
PT aponta as seguintes questões:
- Uma das
emendas mexe na Ponta do Coral permitindo a construção de prédios ali, de até
16 andares. Quem a defende são: Bispo Jerônimo Alves, Edinon Manoel da Rosa,
Marcos Aurélio Espíndola (Badeko), Aldérico Furlan, Célio João, Guilherme
Pereira, Deglaber Goulart e Marcelo Fernando de Oliveira (Marcelo da
Intendência). Já o movimento social não aceita isso, quer que o local se
transforme em área de lazer pública.
- Outra emenda
permite que a Ponta do Goulart, que integra a proposta do Parque das Três
Pontas, passe a ser área residencial, com prédios de até dois pavimentos.
- Outra
emenda permite a urbanização da região do Pântano do Sul, bem no lugar onde a
população luta para ter um parque.
- A área
pertencente ao Exército na rua Bocaiúva também fica no alvo dos especuladores,
com viabilidade de construção que ameaça fauna e flora local.
- Permissão
para aumentar o número de andares na margem direita da SC-401, sentido
Centro-Bairro, de 3 para 6, sem previsão de áreas verdes nem de infraestrutura
para dar conta desse aumento.
- Morro do
Jurerê, em Canasvieiras poderá ser ocupado em mais de 10% da área.
- Área da
Marinha, no Estreito, poderá ter 12 pavimentos! É o fim da proposta de uma área
de lazer no local.
- A área
entre o túnel no Saco dos Limões e o supermercado Baía Sul, aterro da Baía Sul
e rua geral do Saco dos Limões terá viabilidade para oito andares e não quatro
como é agora.
Essas
são apenas algumas das propostas que mudam radicalmente o rosto da cidade,
transformando-a numa grotesca selva de pedra. Nem mesmo os recantos mais
bonitos, os quais são procurados pelos turistas ficarão de fora. Tudo está preparado
para as grandes construtoras deitarem e rolarem.
Não
bastasse todo esse horror, os veneráveis vereadores chamaram a sessão que vai
votar esse plano para amanhã, às quatro da tarde. Ou seja, não querem permitir
que a população acompanhe, uma vez que todo mundo está no trabalho a essa hora.
Nesse
sentido, é preciso que nessa terça-feira, dia 19, todo mundo falte ao trabalho
e vá para a Câmara. Não é possível permitir que seja votado um plano com mais
de 200 emendas, sem que haja qualquer discussão.
Esse
é um momento chave para a vida da cidade. Ou participamos ou perdemos a
batalha.
É hora! Todos para a Câmara de
Vereadores.
Equador: a opção pela dependência
as escolas novas
os saberes antigos
Apesar de toda a propaganda que se faz do Equador, colocando-o dentro de um espectro de "país dirigido pela esquerda", não são poucas as contradições vivenciadas pelo governo de Rafael Correa, cada vez mais distante do que se poderia considerar um mandato com o povo. Indiscutivelmente o primeiro mandato trouxe avanços importantes, como a realização de uma nova Constituinte, soberana e autônoma, que, apesar de todos os percalços, conseguiu levar para dentro do documento que rege a vida das gentes numa nação uma série de avanços fundamentais que, inclusive, servem de exemplo a todo o mundo.
Mas, no cotidiano da vida, quando a Constituição começou a ser regulamentada, os interesses econômicos e políticos começaram a aparecer com força e a ditar regras que, de certa forma, destroem toda a lógica do sumak kausai (o bem viver - que é o bem viver de corte indígena, não é o consumismo do mundo capitalista), centro de toda a Constituição nacional. Um dos exemplo mais visíveis é o da mineração e da exploração de petróleo. Mesmo que a natureza tenha ganhado um capítulo dentro da carta magna, revestindo-se de direitos, na prática tudo cai por terra quando os interesses econômicos cobram a conta do que chamam "progresso". Em nome do que denominam "desenvolvimento", as classes dominantes impõem seu modelo e passam por cima do que foi construído coletivamente com muita luta pela população do país.
Os povos indígenas são os que mais tem sofrido nesse processo. Primeiro porque sistematicamente sofrem desqualificações sobre a sua maneira de viver a política. Não é raro que a qualquer grito de rebeldia eles sejam imediatamente ligados a setores da direita raivosa do Equador, tal qual o grupo do ex-presidente Lucio Gutierrez, de descendência indígena. Basta que haja qualquer oposição ao projeto governamental e lá vem o velho discurso de que os índios estão sendo manipulados, que fazem o jogo da direita, etc...
É fato que a direita se aproveita - e muito bem - das batalhas travadas pelos indígenas contra as propostas do governo, mas daí a dizer que eles são manipulados é pura ideologia. E também mostra que a elite dominante continua mantendo pelas populações originárias um profundo desprezo, a tal ponto de nunca admitir que os indígenas possam pensar, formular políticas e definir suas demandas de maneira autônoma e livre.
Outro discurso que o governo usa com bastante maestria, até porque Rafael Correa é bastante carismático e uma figura midática, é o da necessidade do progresso. Alegando que o país tem imensas riquezas minerais que necessitam ser exploradas para que as gentes possam ascender a bons níveis de consumo, o governo vem passando por cima daquilo que foi a pedra fundamental da nova Constituição: a vontade popular. No caso dos territórios indígenas está na lei que, para qualquer tipo de exploração dos recursos, a comunidade precisa ser ouvida. Mas, não é o que acontece. Mesmo que as comunidades estejam gritando contra a exploração, fazendo lutas, enfrentando a polícia, o governo permanece surdo. E ainda joga o restante da população contra os indígenas alegando que eles estão tentando impedir o "progresso" do país. De certa forma, o governo alimenta o velho ódio, de origem colonial, entre brancos e índios. Não são raros os textos e opiniões de gente da esquerda de toda a América Latina que também cai nesse canto de sereia.
Ataque à educação indígena
O mais novo ataque do governo de Rafael Correa é contra a educação indígena. Mesmo que a Constituição tenha garantido o direito a pluriculturalidade, na prática o que está acontecendo no campo da educação é o soterramento de toda e qualquer iniciativa indígena, ganhando força a homogeneização da educação. O primeiro golpe foi na Universidade Intercultural Amawtay Wasi, universidade indígena que existe no Equador desde 2004 com o objetivo de atuar na educação superior a partir de uma pedagogia autóctone. Ou seja, a forma de ensinar e os conteúdos do ensino estão completamente ligados ao jeito de ser das comunidades indígenas que, ao contrário do que muitos pensam, mantiveram vivos seus pressupostos éticos e pedagógicos apesar de mais de 500 anos de dominação. Assim, a universidade surgiu justamente para se contrapor ao modelo bancário de educação segmentada, descontextualizada e colonizada. Entre seus princípios está a proposta de criar um sistema de educação superior que tenha a sua identidade (indígena), dentro de um marco da integralidade do conhecimento, permitindo assim superar a ruptura usual que existe entre teoria e prática. Busca ainda formar profissionais que tenham uma visão intercultural, descolonizada, capazes de entender onde vivem e de buscar soluções para os problemas concretos das nacionalidades e populações. Gente que também seja capaz de conhecer os mais diversos saberes que existem nas comunidades, apropriando-se deles para melhorar a vida e para construir, de verdade, uma sociedade intercultural, na qual o saber científico conquistado pelo mundo ocidental dialogue com os saberes originários, sem dominação.
Não bastasse essa "heresia" descolonial, a Amawtay Wasi tem uma estrutura física e pedagógica que está totalmente integrada à cosmovisão dos povos indígenas. Todo o trabalho se ampara nos princípios de vincularidade (a relação entre o todo e as partes), complementariedade (a necessidade de um `outro`, com o qual se dialoga), simbólico (relação entre o saber científico e o que ele significa no âmbito simbólico), e a reciprocidade (a troca de saberes). Esses são conceitos muito difíceis de serem compreendidos por aqueles que tem uma formação racional, ocidental. É praticamente outra episteme e precisa ser compreendida como uma forma radicalmente diferente de atuar, de educar e de viver.
Pois com a nova lei de educação, o governo de Rafael Correa decidiu homogeneizar o processo educativo, sem levar em consideração a própria Constituição que garante a pluriculturalidade. Depois de vários meses sendo visitada por tecnocratas governamentais, a Universidade teve seu registro suspenso. Não pode mais funcionar da forma como se organiza, a partir dos princípios que regem o mundo indígena. Os "educadores" governamentais querem que a Amawtay Wasi morra ou se iguale às demais universidades organizadas dentro dos cânones ocidentais. Mas, não é essa a proposta da universidade indígena. Ela quer, justamente, se contrapor a essa pedagogia desestruturante e colonial. No contexto de uma sociedade pluricultural, não há motivo para que isso não aconteça. É só uma universidade diferente, que atua dentro da episteme dos povos indígenas que ali vivem desde muito antes dos espanhóis chegarem e invadirem seus mundos, impondo uma cultura de dominação e de extermínio.
Mas, Rafael Correa tem sido implacável, espalhando ainda que a universidade é foco de resistência de grupos ligados à Lúcio Gutierrez. Como argumento usa o fato de a mesma ter sido criada durante o governo daquele presidente. Na verdade, o que quer é destruir um espaço de formação indígena construído a duras penas pelas comunidades.
As escolas comunitárias
Todo esse ataque ao mundo indígena ainda não terminou. Agora, o governo decidiu também eliminar as pequenas escolas comunitárias que atuam na lógica intercultural, ensinando em duas línguas. Não quer mais que a educação alternativa (leia-se indígena) se faça nas pequenas unidades que atuam com a proposta de unidocência, porque os indígenas acreditam que o conhecimento é um só, e não pode ser dividido em aulas de 50 minutos desconectadas do mundo real.
Mais uma vez, os tecnocratas governamentais decidiram que a educação de primeiro e segundo grau do Equador devem seguir as propostas do Banco Mundial e precisam se constituir em "Unidades Educativas do Milênio", as quais são reputadas as novidades tecnológicas e todas aquelas "maravilhas" que os projetos vindos de fora apregoam. Falam em escolas equipadas com computadores, alto nível de ensino, novos conceitos pedagógicos. Tudo dentro da proposta ocidental, sem considerar as especificidades da pedagogia indígena. Segundo a pedagoga e comunicadora Rosa María Torres (http://otra-educacion. blogspot.com.br), a proposta está centrada na aparência, sem que sequer se mencione a situação dos professores, por exemplo, categoria que tem protagonizado grandes lutas no país.
No campo da propaganda o governo de Correa consegue convencer. Desde 2008 vem construindo uma série de UEMs (Unidades Educativas do Milênio), cujo número já ultrapassa as 24, atendendo 23 mil estudantes. E segue construindo outras tantas, dizendo que aumentará esse número em mais de 30 até 2014. Os prédios bonitos e bem pintados aparecem como o "progresso para todos". E justificam a exploração de petróleo na região do Parque de Yasuní. "Com o petróleo teremos mais saúde e educação para todos", diz, na tentativa de buscar apoio para as ações de fechamento das escolas indígenas. Conforme anunciou, das 18 mil escolas comunitárias que existem, apenas cinco mil seguirão abertas. Conforme diz, as escolas comunitárias, aquelas que são geridas de forma alternativa, "são o atraso, a marca da pobreza". Já os educadores que sempre estiveram nas comunidades quando o estado as abandonava, têm outra posição. Eles dizem que essas escolas que vivem à margem do sistema oficial são, recorrentemente, referência na inovação e na transformação cultural, tanto no Equador quanto no mundo. Segundo eles, esse tipo de escola multigrau e unidocente não é necessariamente uma escola para pobres. Ao contrário, é uma escola que se contrapõe ao sistema bancário imposto pelo Banco Mundial a toda América Latina. Como exemplo lembram do programa Escola Nova, que existe na Colômbia e o das Escolas Não-Formais, experiência de Bangladesh, ambas modelos premiados internacionalmente.
Mas, ainda assim, segue a "planificação" da educação, sem que se leve em conta a voz dos educadores e das comunidades. Toda a proposta vem sendo construída por burocratas, apresentando as modernidades como a solução do problema educativo. "Fecharemos as escolinhas precárias e os alunos serão realocados nas Unidades Educativas do Milênio", diz, sorridente, Correa, na televisão. Num primeiro momento, tudo pode parecer muito bom. Novos prédios, fusão de escolas, urbanização de escolas rurais, transporte escolar. Tudo preparado para a criação de grandes complexos escolares com educação igualada/homogênea/ocidental, sem que se leve em conta as especificidades culturais, tal como reza a própria Constituição.
Diz a pedagoga Rosa María Torres sobre uma UEM que visitou: "Em Otavalo, norte de Quito, inaugurada em abril de 2009, com grande presença da mídia. Era a terceira UEM construída no país e custara 2 milhões de dólares. Os alunos, 800, são de maioria indígena. A escola abriu com os sete primeiros anos de educação básica. Tem 38 salas de aula, quadros digitais, cozinha, restaurante, espaços esportivos, laboratórios, bibliotecas, 38 computadores e internet banda larga. O desenho da escola é tradicional, frio, sem qualquer presença da cultura local. Os professores sequer sabem usar o quadro negro digital, é visível a falta de capacitação. Nota-se que os espaços são subutilizados, há problemas de segurança e não se vê qualquer preocupação com a capacitação dos professores". Ou seja, tudo conspira para uma ode a tecnologia, sem cuidado pedagógico e muito menos o contexto cultural.
A experiência das escolas indígenas
Inka Samana é uma pequena escola indígena no sul do país, reconhecida internacionalmente como espaço de uma "revolução educacional", por sua proposta diferenciada de ensino de saberes que vão além do formal. Pois também ela deverá entrar no sistema homogeneizado da "educação nacional", abrindo mão dos aspectos simbólicos e culturais que a caracterizam. Os protestos tem sido grandes, mas o governo segue surdo. Quem quiser conhecer melhor essa bonita experiência de educação indígena pode encontrar sua voz nas redes sociais (https://www.facebook.com/ pages/INKA-SAMANA/ 101245569927872?fref=ts). Rosa María Torres lembra ainda de outras experiências comunitárias indígenas como as da província de Pichincha, a Escola Ecológica Samay e a Yachay Huasi (Escola do Saber), que atuam no diálogo entre educação formal e educação indígena. Há coisas do mundo das comunidades que as UEMs não tocarão, com certeza, como a sabedoria dos mais velhos, fazer uma rede ou como reconhecer uma semente, reforçando a ideia de que só a educação formal/ocidental/moderna/ científica é que é importante. Enfim, são dezenas de experiências comunais, culturais e alternativas que estão prestes a sucumbir diante da ideia de uma "educação única, nacional". Isso não pode ser possível num país com tantos povos indígenas, já tão acostumados a atuar dentro de seu mundo cosmogônico e simbólico.
A luta é desigual. O governo constrói prédios vistosos e garante a gratuidade do ensino formal, mesmo que a qualidade desse ensino esteja submetida aos ditames internacionais. As pequenas escolas indígenas vivem de contribuições da comunidade ou de ajuda externa. O governo já declarou que não aportará recursos a essas experiências. Sufoca todas elas no campo econômico e depois acusa os educadores de aliança com ONGs estrangeiras e grupos direitistas. É um cenário difícil de se assimilar.
A mesma prática tem se dado no campo universitário. No mesmo momento em que anuncia o descredenciamento da Universidade Intercultural Amawtay Wasi, o governo divulga a criação de quatro novas universidades estatais, onde os equatorianos poderão ter ensino superior gratuito. Difícil para quem segue acreditando que as culturas indígenas não tem nada a dizer no mundo, aceitar que as mudanças da educação equatorianas não sejam boas. Pois se aumentam as universidades públicas, se constroem novas escolas, se amplia o ensino gratuito. Poucos são os que questionam esse processo de destruição do saber indígena, da forma indígena de educar. Para boa parte das gentes, rendidas ao mundo ocidental, racionalizado e dependente mais vale uma escola grande que um ensino de qualidade. Se as diretrizes vêm do Banco Mundial, melhor ainda, vão aprender conforme aprendem os "gringos".
Poucos são aqueles que observam criticamente o processo de aprofundamento do colonialismo mental em pleno governo dito "progressista". A destruição das escolas comunitárias, dos espaços indígenas de saber e da universidade Amawtay Wasi são, na verdade, uma grande ofensiva do capital contra os povos indígenas, tradicionalmente um entrave nos planos de ganância e destruição de empresas transnacionais, da elite local e de muitos governantes. Estrangular essas experiências é um ato de força e de beligerância.
Os indígenas agora denunciam e não deverão aceitar tudo isso sentados. Eles encontrarão suas formas de resistir e manter viva suas culturas. Serão acusados de alianças com Gutierrez, com forças estrangeiras que querem destruir o governo "popular" e muitas outras coisas mais. Algumas comunidades podem até se enredar nessas armadilhas, isso não se descarta. Mas, qualquer guinada para a direita dos povos originários só se dará por conta do desrespeito às culturas antigas, por conta da insensibilidade do governo em dialogar, pela arrogância - herança colonial - e pela intransigência de Correa. Ou seja, o Equador vive uma hora importante de aprofundamento da dependência e da submissão aos grandes interesses internacionais. Não há interesse em se aliar aos povos autóctones para a construção do sumak kausai, conforme grita a Constituição. O que parece direcionar a ação do governo é o mesmo modelo desenvolvimentista que já mostrou todas as suas tristes e destruidoras faces por onde passou. Explorar petróleo, explorar minério, desalojar famílias, garantir um consumo fictício a uma classe média emergente, provocar a destruição do ambiente, incutir uma educação alienante e colonizada e maquiar o sistema de saúde. Tudo isso pode estar sendo construído para servir de base para a consolidação daquilo que "la radio buemba" (o que se diz nas ruas, boatos) já anuncia: a vinda de um acordo comercial de livre comércio com os Estados Unidos. Se isso se confirmar, o futuro será sombrio, com o aprofundamento da dependência econômica, política e cultural. Tudo como antes.
Então, nada de novo no front. A não ser a força viva das gentes de Abya Yala que, mesmo derrotadas, se reorganizam e voltam a se levantar.