Eu era pequena, mas
lembro bem. Lavar a roupa, na casa da minha vó, tinha significado de aventura.
Quando ela começava a recolher a trouxa, a gente já se preparava. Na pequena
casa de madeira alaranjada, onde ela vivia com meu avô, na comunidade de João
Arreghi, não tinha água encanada. Daí que a simples tarefa de lavar a roupa não
podia ser realizada ali mesmo.Era preciso fazer uma longa caminhada até a
“sanga”, que era como todos chamavam a pequena nascente que brotava no meio do
descampado. O olho d´água vertia e formava um pequeno lago, todo cheio de
pedras redondas. A água era tão clarinha que se podia ver o fundo, bem como
toda a vida minúscula que pululava por ali.
A “sanga” era o espaço
da alegria e do espanto. Nos dias de calor - que era o tempo das férias – não
havia nada melhor do que aquelas tardes a farfalhar no riacho, inventando
brincadeiras, tentando capturar os peixinhos pequenos que dividiam a água com
nossa balbúrdia. E a imagem da minha vó, revirando as toalhas no gesto típico
da lavadeira de rio, nunca saiu das minhas retinas. Era uma cena de beleza, de
força, de domínio. Ao longe, meu avô acenava, vez em quando, entretido na
tarefa cotidiana de cuidar das taipas que cercavam o arroz. Mais tarde, se
reunia com a gente, para a merenda, que ele mesmo preparava e levava, para
saborearmos enquanto a roupa quarava ao sol. E assim, depois de toda a festa da
lavação, no final da tarde, voltávamos com as bacias cheias, e tudo era
pendurado no varal atrás da casa.
Quando a noite descia
e acendiam-se os lampiões de gás, a gente jantava ouvindo o cricrilar dos
grilos, enquanto a brisa quentinha fazia esvoaçar a roupa. Ela secaria devagar,
misturando vento, orvalho e depois o sol da manhã. Talvez por isso tivesse
aquele cheiro bom, num tempo em que ninguém sonhava com amaciante. Era uma vida
dura, a dos meus avós, mas recheada de pequenos espaços de ternura. Meu avô era
a criatura mais doce que eu já conheci e os verões na sua casa fortaleceram em
mim esses sentimentos.
Não sei se é por conta
dessas imagens bucólicas da minha infância na casa do vô, mas, para mim, lavar
a roupa tem um quê de ritual. Durante muito tempo vivi em quitinetes, onde não
havia tanque, e aquele infortúnio pesava sobre mim. Precisou passar muito tempo
até que eu pudesse morar numa casinha onde, altaneiro, o tanque ocupa espaço
central. E, quando chega o domingo eu revivo todo o percurso daquele longinquo
tempo em João Arreghi. Passo por todos os cômodos recolhendo a roupa que se
forma em trouxa. Depois, parto com ela para o quintal, onde o tanque,
transbordante, se transforma em sanga. Ali, vou vou lavando, uma a uma, as
roupas, toalhas, lençóis. Girando cada uma naquele girar típico das lavadeiras
de rio, batendo na pedra, destilando, na força do braço, todos os venenos
acumulados. E canto, como cantam as lavadeiras. Da cozinha, meu amor acena,
sorrindo, carregado da mesma ternura que permeava minha meninice.
Então, quando todas as
peças estão esvoaçando no varal, eu sento e fico observando o balanço, vivo e
bruxólico. Posso sentir a quentura do sol, tocando cada roupa, com numa suave
carícia de amor. E elas ficam ali, atravessando a noite, para acumular orvalho,
tal e qual permitia minha vó. Quando secas, posso sentir o mesmo perfume de roupa
limpa, batida na sanga. Por isso me recuso ao mecanicismo da máquina de lavar.
Com ela não poderia sentir a energia viva do ritual de força, de domínio, de
beleza, que encerra o girar da roupa para o baque surdo na pedra. Assim que
essa tarefa cotidiana se reveste de mistérios e de lembranças, todos os
domingos, quando, sem que eu controle, me transformo, de novo, naquela guria
serelepe, que seguia pelo descampado, para o solene ritual de lavar a roupa. E
o que poderia ser um saco, vira espaço de belezas!!!
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