Eu era menina e vivia na cidade
de São Borja. Estranha guria, amante da solidão. Envolta em livros e velhos
discos. Nos dias de verão intenso, quando o mundo parecia derreter e todas as
almas faziam a sesta no pós meio dia, eu pegava a vitrolinha e ia para a
varanda ouvir os discos do meu pai. Antigas canções sertanejas, música caipira
de raiz. Ângela Maria, Carlos Galhardo, Orlando Silva, Vicente Celestino,
Silvio Caldas, Miguel Aceves Mejía. Não me cabiam nem o rock, nem o iê-iê-iê.
Eu era uma guria velha.
Mas havia um disco em particular
que me tirava do mundo. Na capa, uma cena de acampamento cigano. Uma fogueira,
uma mulher morena, bonita, com véus coloridos e pandeiro na mão. Ela dançava e,
à sua volta, os demais a miravam com fervor. Dentro da capa, o disco, já surradinho,
trazia toda a sorte de canções húngaras. Violino, acordeão, uma coisa que
parecia penetrar peito adentro, como uma flecha fervente. Havia uma delas em
particular que me amolecia as pernas e me tomava inteira de paixão. Czardas. Nunca
em toda vida uma música me emocionou tanto. Quando ela tocava, meu corpo
magrinho assomava e, com os olhos fechados, eu ficava a dançar. Primeiro,
piano, só o balançar dolente. Depois, aquela explosão de beleza.
Nada podia ser mais inverossímil.
No interior do Rio Grande, de frente para a campanha infinita, uma guriazinha meio-charrua
se fazia cigana, de alma e coração. E quando eles chegavam, os ciganos de
verdade, eu os espiava cheia de vontade de ser roubada, para poder viajar pelo mundo
dançando ao pé da fogueira. Até hoje, quando o violino começa a tocar, volto
àqueles dias de infância. E minha alma voa para os não lugares da Hungria que
nunca conheci, mas que sempre amei.
3 comentários:
Elaine, filha da "domadora de palavras"...domadora de sentidos a cada novo texto. Lindo!
Elaine
Maravilhosoooo!!!
Assisti lá no Gilson Sampaio, passei aqui para dizer que adorei.
Um grande abraço minha amiga
Um beijo
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