sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Qual é a surpresa? Uma greve é luta de classe!


As crises sempre são boas, elas servem para mostrar os furos de um sistema. Então, quando elas vêm, há que se ter olhos de águia. Saber mirar, ser capaz de vislumbrar o que aparentemente se esconde sob a bruma. É o que acontece agora com as greves dos PMs. No cotidiano as coisas sempre pareceram claras, e seguras. Polícia existe para manter a ordem, proteger o poder, reprimir os rebeldes. Mas, se a polícia se insurge contra a ordem, o que passa? A resposta está na boca dos que mandam: é a anarquia, é o caos, é o fim do estado de direito.

As coisas então se confundem, o chão foge dos pés. Entre os próprios policiais. Imagino que não deva ser fácil enfrentar a contradição de ser quem bate no trabalhador que reivindica e agora estar na posição do batido. Isso pode desestruturar um prédio ideológico inteiro, ainda que de construção sólida. Por isso a crise é boa.
A greve dos policiais pegou fogo, saiu da Bahia, se foi ao Rio e pode se alastrar. O pânico está instalado, diz a Globo, e aí a platinada não mente. Resta saber: pânico de quem?

Que falta pode fazer o policiamento ostensivo para quem vive na periferia de Salvador? Ou do Rio de Janeiro? Ou de qualquer grande cidade desse nosso país? Quem é que pode dizer, em sã consciência, que os excluídos da vida digna têm direito ao estado de direito? Então vamos lá: de quem se fala quando se fala em defender o estado de direito? Ah, pois é. A coisa começa a complicar.

Em 2003 eu estava em La Paz quando estourou uma greve de policiais. Era uma coisa singela, eles queriam um aumento. Arriscavam a vida por meia pataca. A cidade ardeu. O presidente, então um comparsa dos estadunidenses, chamou o exército e as duas forças se confrontaram em frente ao palácio do governo. No primeiro dia 13 pessoas tombaram sem vida. Foram cinco dias de “pânico”. Eu estava hospedada numa pensão pobrinha perto da rodoviária e lá, com outros companheiros de vigília, ficávamos a noite acordados, vendo as notícias da televisão. O povo estava nas ruas, entrando nos supermercados, incendiando ministérios. Um casal de velhinhos que viera de Oruro (região mineira) para tratamento médico era o meu porto seguro. Entre um chá de coca e outro, na noite fresca, eles seguravam minha mão e diziam: “Não tema, nós estamos entre os irmãos”. Queria dizer que ali, naquela singela pensão, éramos companheiros dos “rebeldes”, não havia medo. Lição absoluta. Nós estávamos do lado da “malta”, das gentes enfurecidas que eram mostradas na televisão como os “vândalos”. Nós éramos aquela gente.

Aí entendi o pânico. Não era dos pobres. Era do poder. Sem a polícia repressora, os bolivianos iniciaram naqueles dias a guerra do gás. E por conta da greve dos policiais, que acendeu o estopim, pouco tempo depois eles derrubaram o governo de Sanchez de Lozada, abrindo caminho para uma nova Bolívia.

Esse é um exemplo concreto de que a greve é sempre a expressão da luta de classe. Mesmo quando ela é promovida pela direita raivosa, como foi o caso do Chile. Daí a importância de se saber muito bem o que é que está acontecendo e que proposta de país governa nossas vidas. No geral, os trabalhadores quando entram em greve, estão fazendo a aposta final. Tudo o que têm para barganhar com os patrões são, como dizia o lindo e imorrível repórter Marcos Faermann, apenas seus corpos nus. Aquele que vota por uma greve já perdeu tudo o que tinha para perder. Está sem esperanças. Resta-lhe a última mão. E ele arrisca tudo. Então, a pergunta que o repórter deveria fazer é: e o que foi, meu irmão, que te tirou a esperança? A causa, não a consequência. A trama, não o desenlace.

Na luta de classe o poder usa suas armas. Grampeia telefone, apresenta a organização da greve como um crime de lesa pátria, prende lideranças, humilha, ameaça. Ah, eles têm tantas armas. E os trabalhadores só os seus corpos nus. Então, quando uma deputada valente, como a Janira Rocha, do Rio de Janeiro, expõe o cinismo do poder, isso não passa no jornal. “Eu admito que estou na luta junto com os trabalhadores, eu não nego, eu coloco meu sigilo telefônico à disposição. Agora quero ver o governador Sergio Cabral colocar as suas gravações telefônicas, das conversas que tem com a Odebrecht, com a Delta, com os empresários”. Ah, muleca! Que atrevimento! Pois é, senhores. E aí, cadê o estado de direito? Só os trabalhadores que lutam têm seus sigilos violados? E os empresários corruptores? Esse não! São gente séria! Olha aí de novo a luta de classe.

E agora, com a greve no Rio, o bicho vai pegar. A fábrica de ideologia – que é a televisão brasileira – vai espernear, babar, cavalgar o diabo. Mas os demônios mesmo ela não vai mostrar. Vai vestir com a capa do capeta cada moleque atrevido que ousar rasgar o véu da contradição. E outros policiais – os que aparecerão como bons – entrarão nas casas dos colegas, chutarão as portas e os arrastarão aos cárceres. Tudo como sempre foi. O valente cabo Benevenuto Daciolo se transformará no responsável por qualquer dedo pisado que houver no Rio. E passará por toda a sorte de horrores que a gente vê nos filmes, nos quais muitos desses que babam por ordem, choram. Será apontado como terrorista. Nenhuma surpresa, nenhuma novidade.

Pois como bem diz esse cabo de olhar brilhante e fala forte, os militares também são trabalhadores e têm todo o direito de lutar pelos seus direitos quando eles não vêm. É a luta de classe. Nada mais. E nessa batalha há que se escolher em qual lado ficar. Benevenuto (bem-vindo) tu que aí estás, a olhar o campo de batalha. Pois, querendo ou não, estás nele.

Nesses dias quentes que virão, agora também no Rio, haveremos de ver na praia, o almirante negro, os tenentes rebeldes, todos os que fizeram a história andar, a assomar a cabeça, cofiando os bigodes, esperando. Tal como os irmãos da Bolívia que um dia ousaram escutar a voz de Tupak Katari, que ao morrer, bradou: eu voltarei, e serei milhões. Quando é assim, nada pode barrar a transformação. Porque às vezes, uma greve é só uma greve, às vezes não.

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