Nascido na beira do São Francisco não poderia ser senão poeta, barranqueiro, musical. Teve infância bonita, de carrinho de rolimã, de trilha no mato, de pegar rabeira de caminhão. Fez-se homem na aridez do cerrado, aprendendo que a vida pode ser fluida como o velho Chico, mas também dura como um caraguatá. Aprendeu, mas nunca aceitou. Sem horizontes na Santana do Alegre veio para o litoral catarinense. Na bagagem, o coração sensível e a música. Coisa pouca para a babilônia. Na pressão do social foi fazer faculdade. Queria música, mas não deu. A opção foi o quintal mais perto, a filosofia.
Mas, a universidade, às vezes, mata sonhos, enquadra almas, apequena o ser. E por isso, a filosofia foi perdendo a aura. Não havia encantamento. Educadores estão em falta. Até que ela chegou com sua fala boa, capaz de ser entendida, ligando o mundo escolástico com os dias atuais. Santo Agostinho, o medievo, a beleza de um tempo em que os homens buscavam dar cara de deus à razão. O guri se encantou outra vez. A filosofia tinha gosto de fruta madura de novo. Assim, em meio às correrias das aulas de música, do trabalho como ajudante de pedreiro e do cuidado com a casa, ele se desdobrou. Caminhar para as aulas de Filosofia II passou a ser música, mel, beleza.
Por isso não foi pequena a estupefação quando no outro dia, esperando pela prova para a qual havia dedicado suas melhores horas, ele a recebeu sem qualquer nota. Não fora sequer corrigida. E ela, a que lhe havia feito desejar de novo fazer canções para a filosofia, escurecia o dia: “não precisa vir mais, estás rodado por falta”. O guri minguou, perdeu a voz, ficou sem chão.
O coração de poeta seguiu chorando pelo ônibus afora, no caminho da aula de música. A razão perdia o fio da fé, tão bem amarrado por Agostinho. Na aula, as notas do sax não saiam doces. Havia um ruído gigante ensurdecendo a alminha. Naquela noite não brotaram as notas, nem saltitaram as claves de sol. Ele não entendia. Faltara quatro aulas, e não fora por querer. Havia que prover a existência. Naqueles dias ficara com o coração apertado, sentindo falta do bom filosofar, da obscuridade misteriosa do medievo. Mas a professora nem quisera saber. Seguia a regra dura sem mirar o outro, humano e falível, na sua frente. Não via uma pessoa, talvez um número da chamada. Educação bancária, diria Freire, desprovida de carne e humanidade.
Chegou em casa bem tarde, ainda aturdido. Não conseguia entender como alguém podia educar sem ver. Sua alma de poeta havia perdido as rimas e todo o encantamento se esvaia. Afloravam as águas nos olhos, como se por ali fosse sair o rio. Balançava a cabeça esperando encontrar uma resposta para tanto desamor. Então, foi lembrado de que havia forjado a alma na dureza do cerrado e que haveria de superar. Mas, o guri da barranca do São Francisco é bichinho teimoso. Não quer endurecer. Ele acredita que a vida precisa de amor, poesia, música, riso e ternura. E endurecer é ser vencido pela babilônia. Decidiu que haveria de se compadecer de tal pessoa que educa sem ver, que não vislumbra o encantamento que provoca, que não percebe a mágica que faz. Passou o dia seguinte a fazer um presente o qual haveria de lhe dar.
Porque esse menino que nasceu nas minas gerais é feito de doçura e beleza e nada nesse mundo vai quebrar esse fino cristal. Assim, naquela noite, enfim, dormiu em paz.
Um comentário:
Depois de ler esta história me faltam palavras... Sobram lágrimas!
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