O Campeche decidiu e não havia nada mais a discutir. A obra do emissário não seria feita. Há anos a empresa de saneamento insistia no projeto. Fazer um grande cano levando a bosta da cidade para o mar. E a saída seria ali, nas águas da praia. Mas, a gente do lugar era assim, decidia e fazia cumprir. O prefeito – que nem nascera na cidade – desconhecia aquela força e, sem ligar, mandou a obra seguir. Do nada apareceram operários, máquinas, cimento, tijolos. Surdo aos desejos das gentes ele tocava para frente o emissário. O homem da empresa de saneamento jurava de pés juntos que o esgoto não poluiria a praia. “Vai sair longe, não chegará à margem”. E os repórteres reproduziam à exaustão as mentiras bem armadas. Não seria uma comunidade atrasada que impediria a cidade de se modernizar.
Dentro das casas, o povo esperava. Vez ou outra passava pela obra algum morador, de olhos compridos, espiando. As mulheres ressuscitavam bruxedos e nas noites de lua dançavam na praia, invocando poderes adormecidos. As crianças recolhiam ervas e bichos para as poções de encantamento. As velhas recitavam antigas orações achadas nos baús. Os mais jovens se reuniam na praia e socializavam entre eles os planos que se urdiam nas casas.
Então, numa noite de lua nova, quando a escuridão caia como um manto sobre a cidade, no Campeche não se viu qualquer luz. Escondidas pelo negrume, as pessoas saiam das casas, uma a uma, em direção ao rancho de canoa. Lá dentro os velhos faziam arder o caldeirão e só se ouvia o estalido da madeira, salpicando uma chama bem tímida. O mar se agitava, a maré bem cheia. O vento soprava terral, uivando, feito bicho.
No rancho, as gentes se postavam em roda. Um murmúrio baixinho embalava o girar da colher de pau no caldeirão. As mãos se fechavam umas nas outras, o murmúrio aumentava, e na noite de maio, aquele barulho de vozes humanas se fez ensurdecedor. Era como um vagalhão alucinado invadindo a cidade. Assustador.
Os homens da obra despertaram. O que era? As vozes, os murmúrios alucinantes, o cheiro de jasmim. Saíram para a rua e não viam nada. Era o breu. Lá longe, no mar, parecia assomar uma vaga de água, alguma coisa mais escura do que a própria noite. Os cabelos arrepiaram, o coração parou. “Bem que avisaram que aqui tinha bruxa”, disse um. “Bobagem”, disse outro, enquanto sentia um bafo quente na nuca. A fumaça ou sei lá o quê foi adensando e cobriu a obra, com gente e tudo. A estação de tratamento, quase pronta, sumiu na bruma. Houve barulho de lata, prego, cano. Tudo esboroava. Os trabalhadores amoleceram e perderam os sentidos. Na escuridão do Campeche só a fumaça e o murmúrio eram constantes.
No centro da cidade, o prefeito acordou enregelado. Um aperto no peito, uma sufocação. Levantou e foi tomar água. Espiou pela janela e petrificou. Lá fora, envolta na escuridão, uma mulher bem alta, branca como a lua, olhava para ele com olhos de fogo. Não disse palavra. Apenas o olhar, assustador, felino. O prefeito voltou para a cama como um autômato. Dormiu num segundo.
Quando o dia amanheceu no Campeche já não havia obra. Alguns homens atordoados se perguntavam o que faziam tão longe de casa. As pessoas os acolhiam com um chá quente e logo foram embora, sem saber o que passara. No gabinete do prefeito, quem chegara nem de longe parecia o jovem ariano, pretencioso. Como um zumbi, se debruçou sobre os papéis e começou a babar. Nunca mais foi o mesmo. Vieram médicos, psicólogos e especialistas, sem encontrar cura. O vice, que era filho do lugar, sumiu no mundo. Ninguém mais soube dele. O presidente da companhia de saneamento esqueceu os últimos setes anos e foi viver em um sítio em Antônio Carlos.
Dentro das casas, o povo esperava. Vez ou outra passava pela obra algum morador, de olhos compridos, espiando. As mulheres ressuscitavam bruxedos e nas noites de lua dançavam na praia, invocando poderes adormecidos. As crianças recolhiam ervas e bichos para as poções de encantamento. As velhas recitavam antigas orações achadas nos baús. Os mais jovens se reuniam na praia e socializavam entre eles os planos que se urdiam nas casas.
Então, numa noite de lua nova, quando a escuridão caia como um manto sobre a cidade, no Campeche não se viu qualquer luz. Escondidas pelo negrume, as pessoas saiam das casas, uma a uma, em direção ao rancho de canoa. Lá dentro os velhos faziam arder o caldeirão e só se ouvia o estalido da madeira, salpicando uma chama bem tímida. O mar se agitava, a maré bem cheia. O vento soprava terral, uivando, feito bicho.
No rancho, as gentes se postavam em roda. Um murmúrio baixinho embalava o girar da colher de pau no caldeirão. As mãos se fechavam umas nas outras, o murmúrio aumentava, e na noite de maio, aquele barulho de vozes humanas se fez ensurdecedor. Era como um vagalhão alucinado invadindo a cidade. Assustador.
Os homens da obra despertaram. O que era? As vozes, os murmúrios alucinantes, o cheiro de jasmim. Saíram para a rua e não viam nada. Era o breu. Lá longe, no mar, parecia assomar uma vaga de água, alguma coisa mais escura do que a própria noite. Os cabelos arrepiaram, o coração parou. “Bem que avisaram que aqui tinha bruxa”, disse um. “Bobagem”, disse outro, enquanto sentia um bafo quente na nuca. A fumaça ou sei lá o quê foi adensando e cobriu a obra, com gente e tudo. A estação de tratamento, quase pronta, sumiu na bruma. Houve barulho de lata, prego, cano. Tudo esboroava. Os trabalhadores amoleceram e perderam os sentidos. Na escuridão do Campeche só a fumaça e o murmúrio eram constantes.
No centro da cidade, o prefeito acordou enregelado. Um aperto no peito, uma sufocação. Levantou e foi tomar água. Espiou pela janela e petrificou. Lá fora, envolta na escuridão, uma mulher bem alta, branca como a lua, olhava para ele com olhos de fogo. Não disse palavra. Apenas o olhar, assustador, felino. O prefeito voltou para a cama como um autômato. Dormiu num segundo.
Quando o dia amanheceu no Campeche já não havia obra. Alguns homens atordoados se perguntavam o que faziam tão longe de casa. As pessoas os acolhiam com um chá quente e logo foram embora, sem saber o que passara. No gabinete do prefeito, quem chegara nem de longe parecia o jovem ariano, pretencioso. Como um zumbi, se debruçou sobre os papéis e começou a babar. Nunca mais foi o mesmo. Vieram médicos, psicólogos e especialistas, sem encontrar cura. O vice, que era filho do lugar, sumiu no mundo. Ninguém mais soube dele. O presidente da companhia de saneamento esqueceu os últimos setes anos e foi viver em um sítio em Antônio Carlos.
Na praia, as pessoas seguiam suas vidinhas. Jogar a canoa no mar, colher o peixe, um violão ao anoitecer, o terno de reis, a bandeira do divino, a festa de são Sebastião, as ruas sem asfalto, as damas-da-noite com seu cheiro doce, o pão-por-deus. O tal emissário que jogaria a bosta da cidade no mar? Nunca mais se ouviu falar. E quando alguém do poder tenta trazer à memória esse “monstro de cocô”, as mulheres se entreolham e balançam a cabeça furtivamente. É quando uma fumaça densa e escura começa a se formar... Ninguém brinca com o povo do Campeche, não... Ah, não...!
2 comentários:
O exemplo do pessoal do Campeche deveria ser seguido...colocamos o texto no blog do sos canasvieiras.
Parabéns e obrigada!
Equipe do blog
Elaine, fraterna :
Sou solidário com a luta e concordo em gênero, número e grau com o conteúdo do teu texto.
Com o devido crédito a ti e a teu blog, transcrevi o mesmo no meu blog www.professorpizarro.blogspot.com
Saudações Ecológicas !
James Pizarro
Postar um comentário