O escritor inglês Perry Anderson, no seu texto Balanço do Neoliberalismo, explica muito bem quando é que nasce essa proposta. Diz: “nasceu logo depois da II Guerra Mundial, na região da Europa e da América do Norte onde imperava o capitalismo. Foi uma reação teórica e política veemente contra o Estado intervencionista e de bem-estar. Seu texto de origem é O Caminho da Servidão, de Friedrich Hayek, escrito já em 1944. Trata-se de um ataque apaixonado contra qualquer limitação dos mecanismos de mercado por parte do Estado, denunciadas como uma ameaça letal à liberdade, não somente econômica, mas também política.” Ou seja, é o conhecido estado-mínimo.
No cerne da proposta de Hayek estava a luta contra a solidariedade reinante, contra o que ele chamava de um igualitarismo que, na sua visão, destruía a liberdade individual e a vitalidade da concorrência. Ele queria outro tipo de capitalismo, livre de qualquer amarra estatal, com base, justamente, na desigualdade. Mas, como a Europa estava saindo de um grande trauma, que foi a guerra, as ideias do economista permaneceram no armário por mais de 20 anos.
Anderson observa então, que com a chegada de mais uma crise do capitalismo, em 1973, as propostas de Hayek começaram a fazer sentido para alguns governantes. O economista dizia que a crise se dava muito em cima do poder excessivo dos sindicatos que havia corroído o “suado” lucro da classe capitalista. E que, a pressão popular por políticas estatais que incrementassem os gastos com saúde, educação, segurança etc..., estava colocando em risco o sistema. Era preciso, então, dar um basta nisso.
Foi nesse clima de crise que vieram as políticas de ajuste neoliberais. A estabilidade monetária dos Estados era a meta. Diminuir investimentos nos projetos sociais, aumentar a taxa de desemprego, quebrar os sindicatos, aumentar os impostos para os trabalhadores, diminuir para os ricos. Retomava-se assim a volta da “saudável desigualdade”. Quem primeiro, na Europa, começou a aplicar essa receita cretina foi a primeira-ministra da Inglaterra Margareth Thatcher, em 1979, seguida de outro truculento: o presidente estadunidense Ronald Reagan. Assim, durante toda a década dos oitenta essa ideia brilhante de Hayek foi se espalhando por vários outros países da Europa, inclusive a Dinamarca, que era um dos modelos do bem-estar social do norte. Nela estava embutido também um virulento anticomunismo – que era o que expressava toda a proposta de vida digna, repartida e solidária que Hayek considerava um “mal” para a humanidade.
Então, se nos países centrais, o capitalismo enfrentava a crise com a destruição do estado de bem estar, elevação da taxa de juros, mais impostos, desemprego massivo, repressão violenta contra as lutas dos trabalhadores e privatizações, o que não estaria reservado para o campo periférico do sistema? Os Estados Unidos, que não tinham entrado na órbita do bem-estar se deslocaram para a indústria bélica, preparando caminho para ser o mais poderoso exército do mundo. A eles caberia a tarefa de acabar com o comunismo e vigiar o planeta. Isso desembocaria numa década de muita transformação.
Os anos 80 e 90 foram de endireitização do mundo. Governos conservadores pipocaram pela Europa inteira, aplicando o receituário neoliberal, ora mais violento, ora menos. O leste europeu, que caiu como um castelo de cartas, também entrou na mesma onda, com governos violentamente neoliberais. E, na América Latina isso não foi diferente.
O Chile foi o primeiro
Mesmo antes de a primeira-ministra Margareth Thatcher dar início ao seu processo de endurecimento liberal na Inglaterra, o Chile tornava-se o primeiro experimento latino-americano a aplicar a máxima de Hayek, na tentativa de aumentar a “saudável desigualdade”. O governo golpista de Augusto Pinochet começou, no final dos anos 70, a consolidar um processo de desregulamentação laboral, desemprego em massa, repressão sindical, redistribuição de renda em favor dos ricos, privatização de bens públicos. Sua meta era apagar qualquer rasgo socialista do governo que havia deposto, o de Salvador Allende. Como, com essa política, a economia chilena cresceu em ritmo muito acelerado, o país passou a ser visto com admiração pela Europa e pelos Estados Unidos, sem que importasse para nada que ali estivesse uma das mais sanguinárias ditaduras da região. O Chile tornava-se assim, comandado por um ditador, a experiência-piloto que seria incensada pelo mundo afora, enquanto os demais países latino-americanos começavam a trilhar o mesmo caminho. A economia bombava, mas a desigualdade entre ricos e pobres passava de 20 para 44%.
Vem daí, da herança ditatorial de Pinochet, o desmonte do estado chileno. Quando em 1990, acontece a chamada “transição” para a democracia e assume Patrício Aylwin, de cor centro-esquerda, a política econômica seguiu sem mudanças, sempre amparada na exportação do cobre, cujas jazidas pertencem 90% à iniciativa privada. No governo de Eduardo Frei a economia seguiu expandindo, ainda baseada no estado mínimo. Mas, com a chegada no novo milênio o povo chileno começava também a se levantar. A mordaça da ditadura afrouxava, novas lideranças trabalhistas surgiam, marcando um tempo de mudanças. Em 2002 o governo de Ricardo Lago aprofunda o corte neoliberal e a economia, que andava com problemas, volta a crescer, mas sempre tendo como outra face o empobrecimento exponencial da população.
Em 2006 assume a presidência Michelle Bachelet, do Partido Socialista, com uma plataforma que anunciava a redução da pobreza. Mas, seu primeiro projeto aprovado foi o da regularização da subcontratação do emprego, o que causou grandes protestos entre os trabalhadores. E foi no seu governo que os estudantes começaram uma série de protestos que desembocam hoje nas grandes mobilizações pela educação pública. As mobilizações começaram no sistema de educação secundária e ficaram conhecidas como “a revolução dos pinguins” (em alusão ao uniforme dos sevundaristas). Os estudantes queriam gratuidade no transporte escolar e reformas nos currículos. Os protestos cresceram e em pouco tempo os secundaristas tinham tomado as escolas e suspendido as aulas em todo o país. A presidente, que havia ignorado as revoltas, foi obrigada a conversar depois de uma paralisação nacional que reuniu quase um milhão de pessoas na rua. Algumas demandas foram atendidas – como o aumento das bolsas de estudos e a redução dos juros nos financiamentos - mas continuou na pauta do movimento estudantil a questão da gratuidade do ensino.
Uma série de promessas não cumpridas pelos sucessivos presidentes da Concertación (agrupamento político de centro-esquerda) forjou caminho para o retorno da direita tradicional ao comando do Chile. Assim, em 2010 assume a presidência Sebastián Piñera, conhecido empresário e um dos homens mais ricos do país. Com ele, certamente não haveria mudanças na economia e muito menos na concepção de estado, que seguiria sendo mínimo para os pobres e máximo para os ricos. Formado em Harvard (cabeça colonizada) e dono da maior cadeia de comunicação do país, o novo presidente não se disporia a realizar mudanças que pudessem colocar em xeque o país “queridinho do neoliberalismo”. Logo no início do mandato ele protagonizou um momento de júbilo nacional, quando capitalizou para seu governo o salvamento dos mineiros que ficaram presos numa mina de cobre por longos três meses.
Mas, esse momento de catarse nacional, que nunca levou em conta a situação dramática da maioria dos trabalhadores do cobre no Chile, passou e a vida seguiu cobrando suas demandas. As lutas estudantis, que já tinham sido gigantescas no governo de Bachelet, voltaram a aflorar porque, afinal, quase nada tinha avançado no âmbito da educação, apesar da longa mobilização dos “pinguins”. A principal demanda dos estudantes segue sendo a educação pública e gratuita, pois desde a famosa entrada no carrossel do neoliberalismo nos anos 70, durante o governo do ditador Pinochet, a educação foi retirada do rol dos serviços públicos, assim como a saúde. Todo ensino é pago no Chile. Os estudantes de muito baixa renda recebem um “apoio”, mas é via financiamento. Ou seja, apenas incentivam o crédito e engordam as já saturadas bolsas dos banqueiros que cobram juros altíssimos. Muitos estudantes não conseguem quitar suas dívidas depois de formados.
Assim, agora em 2011, levam mais de três meses as mobilizações estudantis que, inclusive, tal qual no movimento dos pinguins, incorporam os sindicatos e os movimentos populares. Durante semanas eles enfrentaram as tropas de choque, a violência estatal, a acusação de estarem desestabilizando o governo, e enfrentaram mais de 1300 prisões. Na última semana o governo de Piñera, depois de uma série de declarações estapafúrdias sobre a não possibilidade do ensino gratuito, decidiu finalmente conversar com as lideranças estudantis. Na verdade, o presidente está usando da mesma estratégia de Bachelet, que acabou esfriando as mobilizações com promessas de negociação. O atual governo sugeriu aos estudantes a criação de três mesas de trabalho, que deverão finalizar suas proposições no mês de setembro.
Agora é esperar e ver como se movem os estudantes. O fato é que eles mostraram nas ruas, com uma coragem sem tamanho, que só a luta faz a lei. E como comprova a história, as grandes transformações acontecem é na batalha renhida. Na queda de braço entre os trabalhadores e o capital nada vem de graça, muito menos das mesas de negociação. Só a mobilização coletiva, quando um povo inteiro se faz unidade, é que muda o mundo. O Chile – pedra preciosa do neoliberalismo – ainda tem muito que avançar para deixar de ser um país onde viceja a “saudável desigualdade”. A luta dos estudantes é só uma ponta do grande iceberg de reformas que precisar sem feitas, até que chegue a hora da verdadeira revolução.
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Festa nas empresas dos meios de (anti)comunicação hege...
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