representação feita por Paulo Renato
Era madrugada naquele longínquo 14 de maio de 1961, na cidade fronteiriça de Uruguaiana, Rio Grande do Sul. A noite fechada prenunciava que vinha chuva forte, possivelmente uma daquelas com vento, tormenta, coisa típica no descampado. Era uma hora da manhã quando a mulher deu um leve gemido, e se revirou na cama pequena. Não gritou nem fez escândalo, afinal era daquelas que sempre suportara a dor com estoicismo, coisa típica das mulheres das missões, acostumadas com a dureza da vida do campo. Apenas percebeu que era hora. “Tem que chamar a parteira”, disse Tila, que guardava a filha grávida, chimarreando quietinha à beira do fogo. O marido saiu algo contrafeito. Veja se aquilo era hora de andar pelos matos. Ele saiu e o céu desabou. A pequena casa de madeira, que ficava no meio do nada, estremeceu ao som dos trovões. Os relâmpagos riscaram o breu. Seria uma noite turbulenta, e não só para Helena, que não via a hora de receber a guria que ali estava querendo sair. O vento soprava como se uma Iansã enlouquecida deslizasse pelos campos de arroz do povoado do Japeju. "Má hora para nascer", pensou a avó.
Eram duas horas da manhã quando, no meio da tempestade e da ventania, se ouviu o já conhecido som das rodas de madeira da velha carroça da Dona Chica, mulher que, desde há muito tempo, trazia à vida quase todos os bebês daqueles cantões do interior de Uruguaiana. Encharcada, a parteira desceu impávida e adentrou, com seu corpo grande cheirando a marcela. Atrás dela, o marido, pedindo a deus que tudo se fizesse naquela noite mesmo. Toalhas, água quente e muita reza. Esse era o ritual. Iansã, lá fora, seguia com seu rugido. A velha negra, filha da África, nem se importou, acostumada que era em domar os deuses. A mulher, na cama, apertou os lábios e cerrou as mãos. Estava segura com Chica. Nada havia para temer.
Então, em pouco mais de dez minutos de trabalho de parto, ali estava a pequenina, com pouco mais que dois quilos, vindo ao mundo no meio da tempestade de raios, relâmpagos e chuva grossa. Saiu mansinha, sem chorar. "Um miquim", admirou-se a avó. Chica levantou o corpinho, olhou a cara enrugada. Não bateu. Não era seu feitio. “Deus vai proteger”, vaticinou, e afagou-lhe a cabeça. A guria, igual que a mãe, anunciou o choro, mas não o cometeu. Na carinha enrugada, só a boca esboçou um esgar. As mãos cerradas davam conta de que seria guerreira. Assim chegou, dura como a noite.
Desde então foi assim, sozinha e atenta. Tão quieta que, por vezes a mãe a esquecia nos cantos da casa. E ela esperava, no berço, talvez desenhando mapas para futuras viagens. Mas, se não percebia o esquecimento da mamadeira, virava um bicho alucinado, tal qual a Iansã do dia do seu nascimento, diante de qualquer injúria ou injustiça. Aí, cerrava as mãozinhas e empertigava o corpo, com a cara amarrada, fervendo na raiva e agindo em consequência.
A guria passou pela vida assim, cresceu pouco, madurou, completando já 53 voltas em torno do sol. Carrega no corpo a violência da noite tempestuosa que lhe acolheu, mesclada com a fortaleza da mãe, missioneira. Falta-lhe, talvez, a leveza. Nos caminhos que trilhou, muito mais viveu de punhos cerrados que de risos. Esse, talvez, seja o presente precioso que ela agora precise. Aquele pelo qual espera nesse século sombrio.
Chegará?...
2 comentários:
Guria, toma juízo.
Mais leveza pra quê? Tal qual Remedios de uma Macondo dos pampas?
Mal te conheço pelos seus textos e assim te amo.
Abraço apertado por todas as derrotas, por todas as vitórias, por todas as lutas não acabadas e pelas que estão por vir,sobretudo, por toda a sua humanidade.
Que texto emocionante.
Parabéns, mesmo um dia atrasada.
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