Ali estava eu, enfrentando meus medos. Sozinha, sentada bem no meio do avião. Havia pedido um lugar no corredor, por conta do temor. Uma coisa meio estúpida já que dento do avião, não faz diferença. Ainda assim, me sinto mais segura. Mas, ao entrar, uma mulher, mais nervosa do que eu, insistiu para trocar o lugar. Ela estava na janela, e suava. Cedendo à opressão da bondade deixei a mulher ocupar meu lugar e lá fui para o assento da janela. Foi a minha vez de começar a suar. O voo era de La Paz à Santa Cruz de la Sierra, e seria a primeira vez que eu cruzaria a cordilheira dos Andes num avião. Daí o medo. Sempre vêm à mente aquelas cenas de acidentes nas montanhas e coisas assim.
Sem saída, enterrei a cara num livro do Enrique Dussel que havia comprado em Sucre. As 20 teses sobre política. Julguei que me distrairia com o debate, sempre original, do filósofo argentino/mexicano e o tempo de voo passaria num átimo. E ali fiquei, entretida na ideia de que o poder, se for obedencial, não é ruim nem corruptor. Genial esse homem! Minha cabeça fervilhava em orgasmo intelectual.
Foi então que senti, do lado de fora do avião, uma presença. Pelo canto do olho percebi que havia algo ali, naquelas alturas. Meu corpo se retesou, os cabelos arrepiaram, todos. Uma espécie de gelo me tomou inteira. Como poderia haver algo lá fora, naquela altura? Então, lentamente, despreguei os olhos do livro de Dussel e enfrentei o pavor. Virei a cabeça e me deparei com a visão mais incrível que já pude presenciar.
Bem ao lado, quase sendo possível tocá-la, se descortinava a espinha dorsal de Abya Yala: os Andes. Nunca pensei que pudesse ser tão belo. Eu, que já havia caminhado por suas entranhas, nas longas viagens de ônibus, não tinha noção do que seriam, vistos assim, do alto. O avião passava tão perto, meio em paralelo. Da janela, podiam-se ver as neves eternas e quase sentir sua textura. Aguçando a vista, dava para ver as trilhas feitas pelos animais andinos - ou pelos homens - nos pontos mais baixos. Foi um momento sagrado. Sem que eu pudesse conter, as lágrimas me foram caindo, numa volúpia de emoção. Eu, guria nascida na planura missioneira do Rio Grande do Sul, lugar de onde só se pode vislumbrar o infinito, agora provava daquela visão andina, concreta, numa hora mágica.
Observei que o lugar onde eu estava sentada era o centro do avião e percebi que aquela posição conformava também o centro da “chacana”, a sagrada cruz andina dos povos originários. E que, agora, dentro de mim, também se desenhava essa figura mítica das gentes do meu continente. Nascida na planura, criada no cerrado mineiro, vivendo em frente ao mar, agora provava da beleza dos Andes. O grande círculo dos quatro cantos estava fechado. Ninguém mais pode ser o mesmo depois desta experiência. Ali se conformava minha alma abyayálica. Ali se definia, agora com mais vigor, essa decisão de assumir uma identidade autóctone, charrua que sou.
Os Andes, o mar do Brasil, as planuras das “misiones”, o cerrado, tudo isso é a expressão da Pachamama, a grande mãe. A visão majestosa das montanhas andinas tornou mais forte a certeza de que nesta terra grande, nesta “nuestra” América, nesta Abya Yala, podemos ser algo mais do que imitadores baratos de uma cultura imposta. Por todo o continente se levantam as gentes originárias recuperando seus deuses, seus credos, suas formas organizativas. Ensinam eles que, antes da conquista, aqui viviam homens e mulheres que tinham outros modos de se relacionar com a terra, com a água, com as matas, com as pessoas e os animais. Um outro jeito, nunca respeitado. E que foi solapado, subsumido na dominação.
Mas, agora, aí estão, vivos, se expressando, crescendo. Porque nunca morreram. Porque estavam latentes, ou disfarçados, esperando a hora histórica, que chegou. E, assim como os Andes, gigantes, magníficos, belos, os povos originários irrompem na vida social dos países de toda Abya Yala dizendo, bem alto, a sua palavra, exigindo respeito às suas culturas, línguas e modos de vida. Quéchuas, aymaras, guaranis, mapuches, mocovís, charruas, kollas, kunas, caraíbas, pataxós, navajos, tantos...
O grande sol, Inti, se derramando sobre os Andes, bateu na brancura das neves eternas, Pachamama espreguiçou. O condor bateu, forte, as asas, as llamas correram, brincalhonas, os cuys saltitaram alegres. No céu, a pura paz. Nos caminhos, lá embaixo, os aymaras da Bolívia - mais antigos que os incas - seguiam suas vidas, mais fortes que nunca. E eu, hipnotizada, agora entendia o segredo já sussurrado pelos povo navajo: “Beleza em cima, beleza em baixo, beleza pelos lados. A vida é um caminhar na beleza”. E assim será, melhor, quando vencermos e superarmos o capitalismo predador. Esse dia vai chegar, pela força das gentes!
Um comentário:
Belíssimo texto. Permitiu-me recordar da maravilha que é sobrevoar os Andes.
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