Por Ricardo Casarini - jornalista
Durante toda a noite os “guardiões”
ficam acordados para cuidar da segurança da Aldeia Maracanã. Eles se revezam,
às vezes de duas em duas horas, outras de quatro em quatro. São indígenas os
Pataxós, Puris, Ashaninkas, Guajajaras, Potiguaras, Apurinãs e de tantas outras
etnias. São colabores os “brancos”, professores, jornalistas, educadores,
estudantes, artistas, anarco-punks e uma diversidade de outros simpatizantes.
O momento é tenso, delicado. O prédio
onde hoje funciona a Aldeia Maracanã, considerado um centro de referência da
cultura indígena na cidade do Rio de Janeiro, está prestes a ser demolido por
conta do projeto do novo Estádio do Maracanã, que sediará jogos da Copa do
Mundo de 2014. De acordo com matéria publicada no Correio do Brasil neste
finalzinho de 2012, cujas informações foram apuradas através de fonte ligada
aos empresários que participam do projeto de recuperação do Estádio Mário
Filho, o Maracanã, e do próprio Governo do Estado do Rio de Janeiro, a
demolição do prédio do antigo museu do índio é “apenas uma questão de tempo”.
A casa, de 150 anos, pertenceu a Duque
de Saxe, que doou a mansão para que o governo federal a transformasse em Centro
de Pesquisa sobre a cultura indígena. O lugar já foi sede da Escola Nacional de
Agricultura e também sediou o antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI).
Depois, em 1953, finalmente retornou para o estudo da cultura indígena, quando
Darcy Ribeiro, em 19 de abril, instituiu o Dia do Índio, e criou ali no casarão
o Museu do Índio, primeiro museu dedicado à cultura indígena de toda a América
Latina. Ali na aldeia também foi criado o Parque Nacional do Xingú, uma das
maiores e mais importantes reservas indígenas do país.
Infelizmente o prédio não ficou muito
tempo sendo utilizado para preservar e difundir a cultura indígena, em 1977 o
museu foi transferido para o bairro de Botafogo e o prédio da Aldeia Maracanã
passou para as mãos da Companhia Nacional de Abastecimento, que durante anos
abandonou o casarão e o deixou praticamente em ruínas.
O lugar, considerado histórico e
sagrado pelos povos indígenas, passou a ser ocupado por moradores de rua e usuários
de drogas e seguiu durante anos abandonado pelo poder público. No ano de 2006, um grupo de indígenas,
de várias etnias, resolveu assumir o espaço que lhes eram de direito e ocuparam
o prédio com o propósito de fazer dali um Centro de Referência da Cultura
Indígena, além de abrigo para os “parentes” de diversas etnias que chegam a
cidade e na maioria das vezes não tem onde serem acolhidos.
A partir da ocupação em 2006 o prédio
passou a ser “recuperado” de acordo com a capacidade financeira dos indígenas,
que sempre foi muito pequena, e com a força de trabalho deles, que sonham em
manter o lugar e poder fazer dali, além de sua morada, um lugar onde as pessoas
possam conhecer e vivenciar um pouco da cultura indígena de nosso país. Um
espaço que já funciona como centro de referência, mas que ainda tem muito a
oferecer, seja como centro de estudo, escola ou até mesmo uma universidade
indígena. Como o estado de conservação do prédio é péssimo e a ideia e de que
ali funcione toda a estrutura para o centro de referência, várias casinhas para
abrigar os índios foram construídas ao redor do casarão e hoje ainda seguem
vivendo aproximadamente 30 indígenas de várias etnias diferentes, Guajajara,
Pankararu, Xavante, Guarani, Apurinã, Fulni-ô, Pataxó, Potiguara, Ashaninka e
tantas outras.
A vida na Aldeia Maracanã é uma luta
diária, nas primeiras horas do dia, junto com o nascer do sol, o despertar dos
indígenas já começa com atividades e compromissos dentro e fora da aldeia. O
trabalho é dividido de acordo com a afinidade de cada um e com as necessidades
do coletivo.
Cacique Tukano é um dos primeiros a
despertar, já sai de casa arrumado, sempre com uma papelada nas mãos. Depois de
organizar alguns trabalhos e atividades da aldeia e tomar um humilde café com
pão e manteiga segue para cidade, junto com colaboradores, a fim de organizar e
articular a luta institucional em defesa da Aldeia Maracanã. Desde o principio
da ocupação já foram organizadas inúmeras audiências públicas na assembleia
estadual e na câmara municipal, além de caminhadas, protestos e ações
judiciais. Cacique Tukano é dos mais antigos moradores da ocupação, muito
respeitado pelo grupo é um dos ícones em defesa da Aldeia Maracanã.
Dauá Puri, o ancião da aldeia, também
segue o mesmo caminho, de banho tomado e bem vestido, com o cocar na cabeça,
tendo os braços e pescoço cheios de artesanatos indígenas, Dauá segue ao lado
do companheiro Tukano com sua pasta
cheia de documentos. Sempre prestativo e carregando um sorriso sincero no
rosto, Dauá além de toda correria institucional em defesa da aldeia, exerce um
papel como um irmão mais velho, ou pai da família. Desperta batendo palmas,
chamando o grupo para acordar. Gosta que todos se reúnam em volta da mesa, deem
as mãos, cantem, agradeçam e se alimente juntos.
A organização diária de trabalho na
aldeia segue de acordo com a demanda. Alguns voluntários ficam responsáveis em preparar o
alimento do grupo, outros em buscar apoio financeiro para a ocupação, cuidar da
segurança, equipe de comunicação, recepção de visitantes, venda de artesanato,
limpeza e organização do espaço da aldeia, cuidado com a horta comunitária,
onde foram plantados legumes e verduras para consumo próprio. Enfim, uma grande variedade de atividades que
a cada dia precisam ser realizadas para o bem estar de todos. Na aldeia as atividades são
autogestionadas, as decisões coletivas, todos tem voz e vez e trabalham para o
melhor do grupo. Mas, apesar de todo o trabalho, os índios e colaboradores ainda
convivem com problemas estruturais, como a falta d’água e de energia elétrica.
Para tentar sobreviver dentro das
condições mínimas de habitabilidade, os indígenas da Aldeia Maracanã mantêm um
centro cultural, que realiza aos primeiros sábados de cada mês um festival de
gastronomia, música, rituais e artes indígenas. Nestes dias a aldeia fica
lotada de visitantes, crianças, jovens e adultos, interessados em conhecer e
compartilhar a cultura indígena.
Na programação, contação de histórias
indígenas, música, teatro, artesanato e oficinas. Mas, o pouco que se arrecada
durante os festivais não da conta da sobrevivência dos habitantes da aldeia e
eles ainda dependem bastante de doações, inclusive de alimentos, de entidades e
simpatizantes da causa.
Ao lado do muro e dos portões do
casarão as atividades não param nem durante a noite, pois a aldeia faz
fronteira com o canteiro de obras e alojamento dos trabalhadores que durante 24
horas do dia se revezam nas obras de construção do novo estádio do Maracanã
para a Copa do Mundo de futebol.
Embora a própria história de nosso
país comprove a importância e o valor histórico do lugar, em julho de 2012, o
governo federal vendeu a área ao governo do Rio de Janeiro. A proposta do
governador do Estado, Sérgio Cabral, desconsidera a história e não reconhece
esse valor e insiste em derrubar o prédio para que sirva de espaço de
mobilidade para as pessoas que virão assistir aos jogos da Copa do Mundo de
2014.
Ou seja, ao invés de preservar,
revitalizar e fazer o tombamento deste patrimônio histórico, o Centro de
Referência da Cultura Indígena Aldeia Maracanã, ele quer demolir o prédio para
construir um estacionamento e um shopping Center.
Além da Aldeia Maracanã, também estão
ameaçados de demolição no entorno do estádio a Escola Municipal Friedenreich,
referencia no município, no Estado e no país; o Complexo Esportivo Célio de Barros, onde
centenas de jovens atletas, moradores de várias comunidades do Rio de Janeiro
realizam diversas práticas esportivas e ainda, um centro de estudos de sementes
originárias, que funciona ao lado da aldeia.
Juntos com os povos indígenas,
diversas outras organizações lutam em defesa destes patrimônios públicos hoje
ameaçados pelo poder do dinheiro. Comitê popular, jornalistas, estudantes,
antropólogos, grupo de professores e pais de alunos da escola, atletas,
artistas e ainda, o movimento “O Maraca é Nosso”, que luta contra a
privatização do Maracanã. O projeto do governo do Estado, que prevê a concessão
do Maracanã à iniciativa privada é uma operação praticamente definida em favor
da proposta apresentada por representantes do grupo empresarial fluminense de
Eike Batista.
O poder e os números que os índios
enfrentam são grandes. Uma placa da empreiteira em frente ao Maracanã anuncia que
750 milhões de reais serão gastos na reforma, o valor falado da transação com
Eike Batista é de 450 milhões. São mais de 500 mil apenas para a empreiteira
que vencer a concorrência para demolir o casarão.
Mesmo assim os indígenas e
colaboradores seguem na resistência, cacique Tukano informa: “Não vamos desistir!
Não queremos ser lembrados como índios coitados e sim como valentes e
guerreiros. Vamos resistir!”
Por isso, ele e os companheiros
Ashaninka, Afonso Apurinã, Dauá, Kauatã, Pará, Pacari, Quati, Mônica, Zahy,
Iracema, Antonio, Flávio, Shama, Coelho Awá-Guajá, Lobo e tantos outros
importantes personagens dessa história de luta, todos os dias acordam com o
nascer do sol e como índios guerreiros, seguem o dia na batalha.
O Poder Público segue dando as costas
para a luta indígena e dos movimentos populares e sociais, nas últimas duas
sessões da câmara municipal, que previam a votação do tombamento do prédio da
Aldeia Maracanã, os parlamentares, a vista de quem quis ver, simplesmente
boicotaram a votação. Na penúltima votaram alguns assuntos da pauta e depois se
retiraram do plenário. Depois da sessão alguns foram vistos rindo, tomando
cerveja e se divertindo em um bar das proximidades, o que gerou revolta nos
manifestantes que acompanharam a sessão e depois presenciaram a cena. Na última
sessão, já nos últimos dias de 2012, grande parte dos parlamentares resolveu
não aparecer, alguns estavam na câmara e simplesmente preferiram ficar em suas
salas com ar condicionado, mais uma vez comprovando a falta de interesse por
parte deles em relação a preservação do espaço indígena e de todo o complexo ao
entorno do Maracanã.
Na esfera judicial, a situação dos habitantes
da Aldeia Maracanã também piorou substancialmente nos últimos dias do ano. Na
semana passada, duas liminares que os favoreciam foram derrubadas. Uma exigia a
permanência dos povos indígenas dentro do prédio do antigo Museu do Índio, e a
outra impedia a demolição do edifício. Ambas as liminares foram concedidas a
pedido da Defensoria Pública da União. A derrubada dessas medidas deixa o caminho livre para que
os índios sejam desalojados e o prédio demolido. Inclusive os moradores da
aldeia já receberam a visita de dois técnicos que se identificaram como membros
da equipe de demolição. A entrada desses técnicos não foi permitida e agora o
temor é que eles retornem a qualquer momento, inclusive com força policial.
A ameaça é iminente, Sérgio Cabral
insiste: “vamos derrubar”. Mas, na aldeia Maracanã, o povo segue em
resistência. Indígenas e colaboradores continuam firmes na luta contra a
demolição do prédio. Estão organizados, no último dia 29, promoveram um debate,
que foi transmitido ao vivo pela internet. Ali, diversos indígenas e
colaboradores puderam compartilhar um pouco da história da aldeia e desse
movimento de resistência.
Os povos originários de nossa terra
resistem junto com os brancos que acreditam na luta. Eles fazem um apelo de
conscientização. Pedem ajuda para todos que sintam esse chamado em defesa de
nossa história. A qualquer momento o prédio da aldeia pode ser invadido, os
índios desalojados e a grande parte da história do Brasil, representada por
aquele patrimônio histórico pode ser demolida e virar cinzas.
A próxima atividade em defesa da
aldeia acontece no dia 1 de janeiro, a partir das 10h, na Câmara de Vereadores
do Rio de Janeiro.
Informações sobre todo o processo de
luta em defesa da Aldeia Maracanã: http://aldeiamaracanarj.wix.com/aldeia e www.facebook.com/aldeia.maracana.3?fref=ts
2 comentários:
Lugar considerado sagrado? hahaha
Durante anos o prédio esteve nas mãos de moradores de rua, abandonado. A campanha 'indígena' só começou quando foi anunciada a Copa e se soube que um dos eventos ocorreria ali. Quem promove a tal campanha é o Comitê Popular da Copa, do PSOL, que se ocupa de fazer oposição à mesma e às Olimpíadas, como modo de ganhar espaço político e opor barreiras ao atual governo e seus aliados. É só isso. O resto é mentira mesmo: eu moro lá perto, minha avó lecionou lá e nunca houve índios, ou melhor, desde o século XVII que não há índios lá. É farsa! Além do quê, com apropriação da identidade indígena como pretexto. Os poucos índios que há hoje ali foram trazidos de outras regiões pelo partido que promove tal campanha.
Repisando: ao contrário do que a Comissão de Direitos Humanos da Câmara acredita, ali não funciona nenhum museu do índio - o mesmo foi transferido para Botafogo onde funciona desde 1978 em um casarão tombado e cercado de jardins.
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