Bem antes da chegada dos espanhóis à região que hoje forma a Argentina, aquela era um espaço de liberdade. Parte dela era ocupada por povos originários (querandís, charruas e guaranis) que tinham vida nômade; e a outra parte, mais próxima ao Chile (dos mapuches e quéchuas), estava integrada ao império Inca. A vida se fazia farta às margens do Paraná-Guazú (rio grande como o mar) como os originários chamavam o rio que mais tarde foi batizado de Rio da Prata. Este nome foi dado por Sebastião Caboto, em 1526, quando o navegador, vendo muita prata na mão dos indígenas, acreditou que ali abundasse o material. Ledo engano. A prata havia sido botim de uma escaramuça dos índios com uma esquadra portuguesa. E, apesar de logo os espanhóis descobrirem que ali não havia prata alguma, o engano acabou dando nome à região. Do nome latim “argentun” (prata) passou à Argentina, e desde então assim foi.
Segundo maior país da América do Sul, a Argentina tem uma história rica de lutas e desafios que vêm desde as primeiras batalhas dos povos autóctones por seu território até o grande levante popular do início do século XXI, quando o povo derrubou dois presidentes num movimento cascata, exigindo vida digna e repudiando as políticas neoliberais. Apesar de diferenças geográfica abissais, que vão desde as geladas terras da Patagônia, passando pelos Andes, pela Pampa, até o sufocante Chaco, o país tem um povo unido, culto e guerreiro, cuja tradição de luta ultrapassa as fronteiras de Abya Yala.
Pois é esse povo que vai às urnas no próximo domingo, dia 28, para escolher o novo presidente da nação. Depois de viver experiências dramáticas como dois grandes períodos de ditadura, ambos pós-Perón, um dos maiores nomes nacionais, a Argentina ainda busca encontrar seu caminho seguro para uma vida de fartura, na qual caibam todas as gentes.
Desde as lutas por independência sob o comando de San Martin, o povo argentino, amalgamado por criollos e originários, tem sido incansável no desejo de construir uma nação independente e soberana. Mas não tem sido fácil. Nos últimos anos, passada a feroz ditadura militar que ceifou a vida de milhares de pessoas, com mais de 30 mil desaparecidos, os tropeços também têm sido grandes. O governo Menen, pós-ditadura, que apareceu como uma vereda segura para a volta do peronismo e do poder popular se mostrou serviçal do neoliberalismo e carregou a nação para um processo de desmonte e pobreza extrema. Tudo isso acabou na revolta que derrubou cinco presidentes e conduziu Nestor Kirchner à presidência.
Os últimos quatro anos foram de relativa calmaria. Kirchner, que era um desconhecido e muito mais afinado com a direita, se mostrou um dirigente capaz de restaurar uma relativa ordem na economia, proclamou moratória, fechou acordos com Hugo Chávez e deu tintas de esquerda para seu governo, muito mais do que o governo de Lula, por exemplo. De qualquer forma, Kirchner não escapa das críticas de uma parte da esquerda que o considera um farsante, alguém que fez algumas reformas, mas que não tem compromisso com as transformações estruturais que a Argentina precisa.
Ainda assim, é a senadora Cristina Fernández de Kirchner, esposa do presidente, ligada ao Partido Justicialista, quem lidera a corrida presidencial. Advogada, ela ganhou notoriedade no país no movimento de luta pelos direitos humanos e pela participação da mulher na vida política. Apesar de não ter o carisma de Eva Perón (eterna madrecita dos argentinos), Cristina evoca a nova mulher, bonita, inteligente, independente e lutadora. Daí a sua força junto ao eleitorado. As pesquisas indicam que ela pode até ganhar no primeiro turno, tamanha sua popularidade.
De maneira inédita, é também uma mulher a segunda colocada na corrida pela Casa Rosada, Elisa Carrió, candidata da Coalizão Cívica e incluída no rótulo de centro-esquerda. Também advogada, Elisa é ex-deputada nacional por Buenos Aires e coordenadora do Instituto de Formação Cultural e Política Hannah Arendt. Já concorreu ao cargo em 2003 e baseia sua campanha na luta por ética e distribuição de riqueza. Tem avançado nas pesquisas.
Mais à direita está Roberto Lavagna, que foi ex-ministro da Economia dos governos de Eduardo Duhalde (2002-2003) e de Néstor Kirchner (entre 2003 e 2005). Foi o seu ministério que o assumiu a recuperação do país no auge da crise de 2002, mas ao ser afastado do cargo por Kirchner, passou para a oposição. O outro candidato de direita é Ricardo López Murphy, que foi ministro da Defesa e da Economia durante o governo de Fernando de la Rua (1999-2001) e derrotado por Kirchner nas eleições presidenciais de 2003.
Além destes que são os mais citados nas pesquisas, disputam a vaga outros dez candidatos divididos entre direita e esquerda. A que encontra mais eco entre os movimentos sociais mais críticos ao governo de Kirchner é, sem dúvida, a do cineasta Fernado Solanas, conhecido por sua filmografia engajada e apaixonante, sempre dizendo da luta do povo argentino e de suas potencialidades. Junto com ele caminha o sindicalista Angel Cadelli, figura importantíssima na luta contra a privatização do estaleiro Río-Santiago, um dos maiores da América Latina.
E, assim, com toda essa variedade de pensamento e propostas, as gentes da Argentina devem decidir, nas urnas, no dia 28, o seu destino. Seja ele qual for, quem conhece a história sabe: se a coisa não andar direito, o povo se levanta e muda tudo. Tem sido assim, desde os memoráveis charruas. Não será diferente.
Um comentário:
Elaine
Acompanho com viva atenção tuas andanças pela América Latina e vibro com o trabalho que desenvolves.
Sucesso!
bjs
Celso Martins
celsodasilveira@gmail.com
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