quinta-feira, 2 de abril de 2020

Tristes dias


Abro os olhos nessa vigésima manhã de quarentena. O despertar é sempre sobressalto. Ao meu lado, meu pai, de 88 anos, acorda sempre confuso e tonto. Preciso pular da cama para ampará-lo e guiá-lo no seu conturbado amanhecer. Não há tempo para pensar em nada, tudo fica enredado no turbilhão. Quando toda a parafernália do despertar ameniza e o pai já está tomando café é que eu cevo um mate, encho de maçanilha, e sento no alpendre. Enquanto a quentura do chimarrão vai aquecendo a goela, sinto a presença da ceifadora ao meu lado. Tem sido assim, assustadoramente, todas as manhãs. E como Antonius, de Bergman, eu recomeço o jogo que temos jogado desde que nasci.  

Ela ronda, incansável. E eu tenho medo. Porque viver é bom. Porque gosto de andar no centro, de sentir o cheiro do mato, de dar risada nos corredores da UFSC, de discutir política, de escrever e narrar, de caminhar na praia, de tomar cerveja, de ir ao Bar Do Zeca, fazer meu programa de rádio. Gosto de caminhar pelo Campeche com o pai, de beijar meu amor, de brincar com meus gatos e cachorros, de encontrar meus amigos. 

Mas, ela me olha, impassível. Na televisão, todos os dias, os homens e mulheres da saúde dizem: todos vão ter de pegar o vírus, mais dia, menos dia. Alguns vão morrer. E eu tenho medo. Meu pai tem 88, meu compa 60, eu mesma já estou quase lá, os sobrinhos têm rinite. Minha irmã e meu irmão estão longe, não tenho controle sobre ninguém. O vírus está no comando. Não há qualquer beleza nessa espera. Porque é uma espera sem esperança. Nada vai nos livrar do vírus. Ele vai chegar. Só podemos controlar um pouco o quando. 

Há quem me diga: mas a morte é certa mesmo. Por que temer? Sim, ela é certa, mas caminha invisível entre nós enquanto nos ocupamos em viver. Agora não. Ela senta ao nosso lado e toma mate conosco, olhando nos olhos. E em todos os aplicativos – rádio, TV , internet – ela está nos dizendo: Já chego, Já chego.  Ela fala com a gente, sem pejo. 

Os dias correm, lentos. Procuro manter certa rotina, necessária por causa do pai, que sequer consegue entender o que estamos passando. Mas, vez ou outra me pego com os olhos no vazio, esgotada dessa espera. Por conta da doença do pai, a cada tentativa dele de sair pelo portão afora, preciso explicar tudo de novo, sobre o vírus, sobre a quarentena, sobre o fato de não podermos sair. Não posso alienar o pensamento e fingir que estou de férias. Não são férias, não são dias de descanso, nem de meditação. São tempos sombrios de confrontação direta com a ceifadora, que me encurrala justamente nos meus dias preferidos de outono. E a cada minuto tenho de mirar seus olhos vazios. 

Hoje, depois de conturbada madrugada saio com o mate para a manhã emburrada. E ali está ela, olhando pra mim. Respiro fundo, sento ao seu lado e ofereço o chimarrão. Ela pega, e sorve. Depois vira pra mim e sorri. Seus olhos expressam profunda ternura, como a me dizer: desculpa, mas em algum momento teremos de nos tocar. Eu olho pra ela e digo: eu sei. E seguimos, ombro a ombro, olhando o infinito. Que demore, que demore!



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