sexta-feira, 29 de julho de 2022

A força de viver



Meu pai tem Alzheimer há sete anos. Com a pandemia piorou um pouco porque a interação social parou. Mas, também sabemos que essa doença é assim mesmo, vai piorando. Não há melhora. Temos de ir nos reinventando. Há alguns meses a mobilidade dele deteriorou muito. Homem afeito a caminhadas, parou de andar. Mal consigo fazer com que ande até o portão, logo de manhã quando acorda. Depois, ele senta e não levanta mais até de noite. 

Como aqui em casa a vida acontece mais na parte de fora – almoços e encontros familiares  - eu tive de encontrar alternativas para não deixar ele isolado no lado de dentro. Então, aluguei uma cadeira de banho – para a hora do banho – e uma cadeira de rodas para movê-lo para fora, no quintal, onde precisa tomar sol e interagir. 

Pois foi só as cadeiras chegarem que ele se aprumou. A cadeira de banho ele abomina. Não senta de jeito nenhum. Na primeira vez fez uma balbúrdia tão grande que tivemos de desistir. Hoje, em mais uma tentativa de dar banho sentado, ele colocou toda sua força nos braços e se levantou sozinho. Não quer saber de sentar na bichinha. O jeito foi levá-lo até o box, caminhando mesmo. E ele se foi, bem contente, chegando até a brincar com a água quentinha. Xô cadeira, não tô morto, parecia dizer. 

Já a cadeira de rodas ele só aceita para ficar ao sol. Eu o levanto e ele vai andando até o quintal, lá ele senta na cadeira e fica o tempo todo empurrando ela com os pezinhos. Na hora de voltar pra dentro, tem de ser andando também. Seu Tavares é porreta mesmo, se recusa a se deixar vencer.  Observo isso com profunda ternura. Meu amado pai, que sempre foi um caminhador, enfrenta com valentia mais essa dificuldade. A parada é dura pra todos nós, mas enquanto ele tiver força, vai querer andar. E que bom que seja assim. 

Nessa doença o lance é esse. Quem tem de se adaptar é a gente que cuida. Eu me alegro de ver a força da vida que segue forte no pai. Ele não se entrega fácil não. Que siga assim, meu brotinho... 



quinta-feira, 28 de julho de 2022

Campeche diz não à proposta da prefeitura para o Plano Diretor


Ginásio lotado - Foto: Eros Mussoi

A apresentação da proposta de mudança no Plano Diretor de Florianópolis na audiência pública realizada no Campeche nesta quarta-feira, 28, deixou uma coisa bem clara: esta é uma prefeitura fraca. Uma gestão fraca. Um governo municipal que simplesmente está disposto a permitir que sejam os empresários do cimento os que vão moldar a cidade. Não é uma proposta construída com a população, mas, como muito bem colocou o professor Daniel José da Silva, é um plano de negócios. E um plano que tem como centro o desejo do empresário da construção e não o povo que vive na cidade. 

Apesar das firulas e jogo de imagens reproduzidas no telão, a ideia da prefeitura é simples. Quer sentar com os construtores e dizer assim: “olha, a lei diz que aqui só pode construir quatro andares, mas se tu me deres um espaço para uma praça, pode um andar a mais. Se tu me deres uma rua, pode construir outro andar e assim por diante”. Os nomes pomposos na armadilha são “outorga” e “incentivo”. Então, será o empresário o que vai definir o que quer dar. Nada poderia ser mais fraco e humilhante. Uma cidade como Florianópolis, conhecida por sua beleza natural, com 42 lindas praias, com tanta riqueza cultural, simplesmente se ajoelha diante dos magnatas do cimento.   

Uma prefeitura forte deveria construir uma proposta de cidade com sua população e dizer aos empresários: "essa é nossa proposta. Se qués, qués, se não qués, dish". Com absoluta certeza os que estão acostumados a explorar o turismo aceitariam a proposta, porque sabem que o que “vende” é a beleza, a mobilidade, a vida boa, a comunidade festiva e feliz. Mas, os dirigentes da velha Meiembipe preferem entregar anéis, dedos e mãos de maneira servil em vez de planejar com seu povo. 

O Campeche disse não a essa proposta. Porque luta há mais de 20 anos para ter reconhecido o seu plano para o bairro, um plano construído por dias, noites, finais de semana, em reuniões e oficinas. Uma parte significativa da vida colocada nesse esforço para manter a comunidade fora da lógica da especulação e da rapina. E, ao final do processo, no apagar das luzes de 2014, o plano diretor que foi para votação não foi o desenhado pela comunidade. O que houve foi um estelionato político cometido pelo prefeito César Souza e pela maioria dos vereadores. Prefeito e vereadores ajoelhados diante da ganância.  

Agora, de novo, de forma atabalhoada, a prefeitura, com Gean Loureiro e Topázio,  volta a impor uma mudança no Plano Diretor, sem a participação popular, tanto que para realizar as audiências o movimento social precisou recorrer à luta e às batalhas jurídicas. 

Uma coisa é mais do que certa. Quem sabe do bairro é quem vive no bairro. Assim como quem sabe da cidade é quem vive na cidade. E quando dizemos viver, é viver mesmo, visceralmente, e não apenas morar. 

No Campeche a vida deteriora ano a ano, mesmo com as pequenas conquistas tidas no plano de 2014. Foram mantidos os prédios baixos e as dunas e a restinga não acabaram invadidas por uma estrada do tipo beira mar. Mas, por outro lado a ação predadora da câmara de vereadores e suas intermináveis alterações de zoneamento permitiram a semeadura de inúmeros condomínios, sem a melhoria estrutural, outros tantos prédios em cima das dunas, construções irregulares de toda ordem que a comunidade embargava, mas que logo depois perdia, com o aparecimento de licenças, sabe-se lá como conseguidas. 

Esse enchimento do Campeche tornou a vida dos trabalhadores um inferno, e a volta para casa no final do dia virou um sofrimento sem fim, com o transito lento e mais de 40 minutos parados na Pequeno Príncipe, que já não consegue escoar o tanto de carros. Há apenas duas saídas do bairro. Uma pela Pequeno Príncipe e outra pelo Rio Tavares/ Lagoa. Mas, os trabalhadores, os que andam de ônibus, tem apenas uma. Não há melhoria no transporte, não há trem de superfície, não há VLC, não há nada. A comunidade está entregue ao caos. E não é porque não há leis ou um plano diretor. Não há é fiscalização, gestão competente. 

Durante o verão falta água, a lagoa do Peri vive em risco, e a carga de energia não aguenta. E nem precisa ser verão. Quem vive no Campeche sabe o tanto de cortes de luz que acontecem todo momento. Isso só tem um nome: falta de cuidado e de planejamento por parte dos governantes. A praia, que já foi conhecida como a mais limpa do sul, hoje sofre com o esgoto correndo para o mar. Crescer deveria significar vida melhor. E o que acontece é o contrário.

Agora, com a proposta de mudança o plano da prefeitura é transformar a ilha num monstro de concreto. Aumentar o número de andares, permitir prédios imensos, provocar o adensamento populacional, sem a contrapartida na estrutura. Os governantes não se importam com a qualidade de vida da maioria. Agem como se esse lugar não tivesse limite. Só querem vender e encher a cidade de prédios para especulação de veraneio. Pois bem. Não é o que a comunidade quer.

O que os que vivem no Campeche querem é andar na cidade, sem sofrimento, e sem levar uma hora e meia ou duas horas para fazer 30 quilômetros de ônibus, com  transporte de qualidade, rápido. Querem o parque cultural, o Pacuca, para passear com os filhos, netos e velhos. Querem a praia limpa, as dunas e restinga protegidas. Querem o tratamento de esgoto e a manutenção da ideia de um bairro jardim, com casas e construções baixas, espaços de vida saudável. Querem turismo comunitário e planejado, sem especulação. 

O sul da ilha tem sido a bola da vez, mas a comunidade mostrou, em uma audiência lotada – a maior das 13 realizadas – que não vai permitir a destruição da comunidade. A maioria disse não a essa proposta que, apesar de tantas letrinhas, só tem um propósito: garantir lucros aos donos do cimento, à especulação. Junto com a Amocam os moradores estão dispostos a discutir, estudar e oferecer alternativas para que o bairro fique melhor. Mas que seja uma melhoria real, para todos, e não só para os que querem ganhar dinheiro com a paisagem especulada. O Campeche não quer ser Balneário Camboriu, nem Dubai, nem ter um futuro de excrescências na beira do mar. Quer um presente de vida boa, aqui, agora, garantindo assim um amanhã igualmente bom para os que vierem depois. 

O que a prefeitura ouviu na audiência foi um sonoro não a essa proposta fraca, de uma prefeitura fraca. Mas, não é um não vazio. É um não de quem vive, estuda, ama e pensa a cidade. De quem tem as próprias propostas construídas coletivamente e que exige serem levados em conta. Ou isso, ou viveremos outro estelionato político, como é comum.  Esperamos que não.  Nossas propostas estão na voz da Amocam. E com elas vamos lutar. É para elas o nosso sim.

A parte isso, seguimos lutando para garantir uma prefeitura forte, espelho das comunidades organizadas, que tenha competência para definir a vida da cidade e não uma prefeitura que viva se ajoelhando diante dos interesses do capital, oferecendo migalhas ao povo.