Ali estávamos, deitados no chão da Rádio Campeche. Sobre nós, o céu estrelado de uma noite fria. Nove graus no termômetro. Mas, naquele
pequeno pedaço de terra, encravado no sul do mundo, no sul da ilha de Santa
Catarina, uma comunidade inteira vibrava em ternura e emoção, aquecida ao pé da
fogueira que serpenteava fagulhas. A formação de estrelas que leva o nome de
Cruzeiro do Sul luzia forte, apontando o caminho escolhido, sempre o sul. E na
parede do muro a luz do projetor fazia passar em cenas coloridas a história
mais linda do mundo: a nossa.
Embalados pela voz de Todd Southgate, que narra o filme
"Desculpe pelo transtorno: a história do Bar do Chico", fomos
relembrando toda a saga da comunidade do Campeche na luta pelo Plano Diretor,
pelo direito de viver num bairro-jardim, num espaço de comunhão e de benquerenças.
E em cada fotograma que passava, projetando o rosto e a voz dos nossos bravos
companheiros de luta, passava também nossa própria vida. Esse delicado e
precioso tramado de sangue, suor, lágrimas e risos. A história do Campeche.
Nossa Rádio Comunitária celebrava dez anos de programação ao
vivo e o dia fora de festa. Já tínhamos abraçado os amigos, já tínhamos
acompanhado o esquete da atriz Vânia Schwenke, a música do Pedra do Urubu. Tudo
isso regado a muito quentão, pizza e toda a sorte de comidas e frutas que, como
mágica, foram aparecendo na grande mesa comunitária que se formou no pátio.
Nada pode ser mais divino que o pão repartido de forma amorosa e fraterna. Esse
gesto poético que concretiza em corpo essa ideia abstrata do que chamam
"comunidade". A rádio se fazia passarela de pessoas, vindas de todo
lugar, para o abraço e para o encontro.
Um fogueira se acendeu para fazer sumir a friagem da noite
invernal. Crianças corriam pelo pátio, em brincadeiras e cantorias. Rodinhas se
formavam, conversas, risadas. Uma mão ajudando outra e costurando essa rede de
solidariedade e realidades construídas em comunhão.
Então veio o bolo, com velas de 10 anos. Uma delícia morena,
de chocolate amargo, coberta de puro glacê, que foi lambuzando caras e bocas.
Chimarrão, chá quente, vinho, água pura. Tudo repartido como cabe ao Campeche.
E quando a noite se firmou no horizonte, rodeamos a fogueira,
entrincheirados e cobertos de lã, para ver o filme que falava de nós. Essa
batalha de viver no Campeche, sempre cientes de que somos parte da cidade e que
estamos todos ligados por um fio invisível de comunhão. E, na tela, saltavam as
caras e as vozes da Tereza Barbosa, a Janice Tirelli, o Ataíde, o Glauco, o Lázaro,
a Débora, o Seu Chico, o Fernando, e tantas outras pessoas especiais que ao
longo de décadas vêm entregando seus dias pelo nosso Campeche. A luta de um
bairro, de uma gente, de uma comunidade viva. Nossas vitórias, nossas derrotas,
nossas lições aprendidas na dura batalha contra o poder.
E quando o filme acabou, triste, evocando a morte do Seu
Chico, por um minuto só se ouviu o espocar das fagulhas do fogo que ardia na fogueira. Um silêncio
reverente que, num átimo, se fez palmas, seguidas de risos e falas alegres.
Essa comunidade guerreira não se entrega para a dor. E quando a luz acendeu e a
gente se olhou, ali estavam as mesmas pessoas que há poucos minutos estavam na
tela do filme. Todas elas: Tereza, Janice, Glauco, Ataíde, Dauro, Lázaro,
Débora, Fernando... o Campeche que luta, o Campeche que é comunidade viva, o
Campeche que aprendeu, na caminhada, que é a comunhão, a partilha e união que
nos faz fortes. E a gente se abraçou, forte, apertado. A coisa mais linda que
pode haver no mundo. Ser, juntos!
Quando, enfim, todos foram embora, e só restaram alguns
poucos, da diretoria da rádio, juntando as cadeiras e tralhas espalhadas pelo
chão, respirava-se um ar de bendições. Pairava na noite uma alegria doce, um
sentimento bom, uma quentura amorosa de quem se sabe amado.
A festa da Rádio Campeche foi como o Campeche é: simples,
terna, solidária, bonita e trovejante.
Obrigada a todas as pessoas lindas que vieram para esse
momento de celebração. Foi bonito demais. Quando acontecem momentos assim é que
a gente percebe, na pele, que tudo o que fazemos vale a pena.