quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Sobre a Bíblia e as novelas da Record


A Eva e o Adão da Record

Quem já leu esse imenso livro sabe muito bem que ele é formado por três grandes partes. O velho testamento, o novo testamento e o apocalipse. O velho testamento é a parte que define a religião judaica até a chegada do Cristo. É um livro estranho e complexo, recheado de violência e fundamentalismo. O novo testamento é formado pelos evangelhos e conta da vida de Jesus, o Cristo, aquele que vem para realizar com os homens uma nova aliança. E o último é um livro místico, cheio de profecias sobre um suposto fim do mundo.

Pois logo que a Record foi comprada pela Igreja Universal, a igreja iniciou sua pregação midiática de uma forma muito esperta. Em vez de investir nos cultos  - embora eles estejam ali – preferiu apostar nas novelas e séries. Afinal, como bem já definiu o sociólogo Gilberto Felisberto Vasconcellos, nosso país é movido à telenovela. Aqui, esse gênero de dramaturgia tem um alcance inacreditável. Quase toda a usina ideológica da classe dominante se expressa nesses folhetins, de maneira subliminar e com uma eficácia impressionante.

A Globo, que ainda é líder no gênero, é perita em fazer a nação brasileira amar empresários, fazendeiros, usineiros, mineradores, enfim, todas as frações da elite dominante.

Pois a Record também apostou na novela para trabalhar a questão da religião. Começou com a História de Esther, em 2010 e foi trazendo, a partir de novas produções, várias partes do primeiro livro em forma de folhetim. Amores, intrigas, assassinatos, violência e tudo o mais que recheia o velho testamento, mas sobretudo a ideia que existe um povo eleito: o de Israel. Ou seja, tudo visceralmente ligado ao universo simbólico do líder maior da igreja, Edir Macedo, que se acha a encarnação do Rei Salomão. É perfeito.

As novelas “Os Dez Mandamentos”, em 2016, e a "A terra Prometida", em 2017, alcançaram índices incríveis de audiência e chegou a ultrapassar a Globo. E elas nada mais foram do que a narrativa do povo de Israel fugindo do Egito. Nelas se pode ficar frente a frente com esse deus vingador, capaz de trazer inúmeras pragas ao povo do Egito apenas para ferir o Faraó, ou que deixou o povo minguar no deserto porque alguns decidiram adorar outro deus. E esse é o deus que a igreja de Macedo professa. Um deus que se vinga, um deus que mata, um deus intolerante, um deus insaciável, um deus que tem filhos prediletos e que odeia quem não lhe rende homenagens.

Quem conhece as escrituras sabe que o Cristo vem justamente para quebrar a ideia de um deus assim. Jesus propõe uma nova aliança, ele não tem povo eleito, ele se senta com os gentios, ele toma água da Samaria, ele ama os fracos, os lazarentos. Não traz a ideia de um deus vingador, mas de um deus de amor. E esse não é o deus que a Record incensa. Tanto que a novela que fala sobre Jesus não teve lá muito sucesso. Jesus é fraco, ele morre no final. Os grandes sucessos são os que estão colados ao deus de poder, ao deus da morte. Por isso não é de estranhar que tantos novos-evangélicos possam defender pautas tão estranhas ao universo de Jesus como a pena de morte, o acesso às armas, a morte aos petistas, comunistas, gaysistas, umbandistas e globalistas. É porque eles estão acostumados com as histórias de um deus que não poupa ninguém além dos seus seguidores fiéis. Também não é sem razão que toda essa gente, incluindo aí os católicos fundamentalistas, considera o Papa Francisco o anticristo, a besta encarnada. Porque Francisco professa um deus de amor, que é um desconhecido para eles.

Então, eis que nesse momento tão obscuro da vida brasileira lá vem a Record com mais uma novela bíblica. O Gênesis. O começo de tudo. O criacionismo. O homem feito do barro por um deus caprichoso que vai se expressar em momentos colossais da vida humana: a queda do paraíso, a disputa entre irmãos pelo poder, a busca pelo poder real, o afogamento de toda a humanidade porque não rendia graças a ele, a destruição de Babel para impedir que a criação se aproximasse do céu, e muito mais. O deus da vingança em todo seu poder. O deus que fundamentaliza a espiritualidade.

Tudo isso é para dizer que a indústria cultural não dá ponto sem nó. Ela expressa as ideias da classe dominante. E a classe dominante quer forjar uma nação vestida de medo para poder aplicar sobre ela o seu poder. Medo do deus vingador, medo do comunista, medo da mulher emancipada, medo do negro, medo do diferente, medo de tudo. Então, contra esse medo vem a mão dura da polícia, do pastor, do padre, do patrão.

Eu tive uma criação católica. Minha mãe era devota e no seu exemplo ia nos ensinando sobre a religião. Mas ela era jesuânica, agarrava-se a nova aliança, entendia que era chegada a hora de um deus dos de baixo. Já bastava de reis, rainhas, templos suntuosos, líderes de mão de ferro. Ela cria em um Jesus amoroso, vestido em sandálias, comendo com os pecadores, as putas, os esquecidos. E é nesse deusinho que eu creio também.

Mas, infelizmente, a voz que ecoa é a do Macedo. Ele tem uma televisão. E nessa usina do ódio vai gerando um povo sem compaixão.

Enquanto isso, o Cristo, o que veio para zerar o horror do velho testamento, segue sendo chicoteado, torturado e morto. Todos os dias nas ruas das nossas cidades.



Somos poeira


 

Esse ano que terminou foi dureza, pancada mesmo. Perdemos parentes, amigos, conhecidos, gente demais. A ceifadora passeou desinibida nos mostrando que basta um leve manear de cabeça e ela nos toca, irremediavelmente. O corpo se vai, ficam as palavras de pesar nas páginas das redes sociais ou os sussurros nas antessalas do velório. “Era tão bom”. E segue um rosário de lembranças boas, porque quando a morte vem só fica aquilo que foi essencial, aquilo que definitivamente tocou nosso coração. A bondade, o bem, a beleza. Aquilo que deveríamos ser e que não somos o tempo todo porque a vida nos carrega, na deriva, por caminhos tortuosos. A morte chega para nos dizer disso: das nossas belezas escondidas ou não vividas. Há que despertá-las. 

É por isso que gosto de dizer aos que amo que os amo, sempre que os vejo. Gosto de abraçar apertado a cada manhã, cada chegada, cada despedida. Principalmente os que estão no cotidiano. Porque tudo é tão fugaz. Descobri já faz algum tempo que viver é caminhar na beleza, como dizem os navajos. E é preciso reverenciá-la sempre, a toda hora. Dos que amo não espero homenagens à beira do caixão. Quero carinhos agora mesmo, quero olhares de ternura, apertos de mão, aconchego, beijos molhados, cafunés, abraços.  E é o que dou também. O tempo todo e sem parar, porque não sabemos o dia nem a hora.  

Nesses tempos de angústia, quando tudo se desfaz, só o que permanece é o amor concreto, real, esse que se pode tocar. Esse pequeno texto é um abraço afetuoso a toda gente que caminha comigo, presencial ou virtualmente. O que nos salva são os pequenos gestos poéticos. Sejam pródigos!  A revolução invém... nós vamos construir o mundo novo...



segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

Onde é a saída?



As mudanças de percepção do pai são inesperadas. Ele pode estar bem tranquilo num momento e no outro segundo ficar agitado, querendo sair. Num minuto está consciente de tudo e noutro já nem sabe mais quem eu sou. Numa hora está sentadinho ouvindo música e de repente começa a mexer nos armários compulsivamente.

- A senhora teria um cigarro? ele pergunta. E aí já sei que saiu do ar, está noutra dimensão da sua mente. Então, tenho de embarcar nela. Coisas que já faço no automático, como se fosse assim, uma mudança de língua. Estou falando português e logo já começo a falar em espanhol. Igual.
Outro dia estávamos tomando café. De boa. Ele fazendo as traquinagens com o pão. De repente, do nada, ele se levantou agitado. Pegou a almofada, passou a mão no saco de pão e saiu porta afora, perguntando, nervoso: Onde é a saída? Onde é a saída?
Saí da mesa, peguei sua mão e sinalizei:
- É por aqui, seu Tavares, é por aqui. E já fui puxando para o caminho em volta da casa.
Completamos duas voltas de braços dados.
Na terceira ele olhou a almofada, o saquinho e me puxou casa adentro, voltando para o café.
- Quer um pão de queijo, pai?
- Sim, filha.
Pronto, voltou.

Investir na Ciência Nacional



O filósofo Álvaro Vieira Pinto, no seu livro "O conceito de Tecnologia" faz uma profunda discussão sobre esse tema e sobre os países ditos subdesenvolvidos que, segundo ele, precisam atuar no sentido de caminhar com as próprias pernas e desenvolver a sua ciência com os recursos que têm. Isso não significa ficar fechado para o conhecimento gerado fora, mas toda a tecnologia importada não pode vir em pacote cerrado, sem que os cientistas nacionais saibam ou possam intervir.

Diz ele sobre isso: "A tecnologia de origem externa serve de instrumento para a aceleração do desenvolvimento da nação retardada unicamente se for uma aquisição de livre escolha por parte de seu centro soberano de poder político, que objetiva os propósitos da autêntica consciência de si, a saber, a de suas massas trabalhadoras. O poder de decisão na escolha, manutenção e direção da tecnologia não só quanto à origem mas igualmente quanto à natureza dela constitui o traço mais significativo para comprovar  a posse da autoconsciência pelo país subdesenvolvido".

Isso é o faz Cuba, por exemplo, que está bloqueada pelos Estados Unidos, impedida de negociar com muitos países. Premida pela necessidade a ilha decidiu investir na ciência e na busca de saídas locais. Ainda assim manda seus cientistas para fora para estudar, aprender e depois, na volta, criar. Isso é soberania. Por isso Cuba tem a sua própria vacina hoje, quando as demais vacinas só existem nos países mais ricos e desenvolvidos. Todos os outros países terão de comprar a vacina desses centros.

No Brasil, a duras penas, temos o Instituto Butantan (instituição pública estadual), a Fiocruz (instituição pública federal) e outras pequenas ilhas nas universidades públicas onde a ciência pode se fazer. Mas, tudo sempre é muito sofrido. Os profissionais mal pagos, os recursos incertos, a precariedade. Cada dia uma batalha para se manter. E, agora, com esse comando genocida, tendo ainda de enfrentar o próprio governo. Não é fácil.

Ainda assim esses trabalhadores da ciência nacional conseguiram, a partir da tecnologia chinesa, desenvolver aqui a vacina contra o coronavírus. Um trabalho quase heroico, diante de tantos percalços, desafios e guerras políticas. Por isso, é para essa gente que devemos agradecer. Não fosse o fato de que permaneceram no Brasil, resistiram nas condições mais duras, e seguiram trabalhando nas instituições públicas provavelmente ainda não teríamos a vacina, visto que o governo tenta atrasar ao máximo a imunização.

Ainda vai demorar para que sejamos uma nação soberana, tal qual Cuba, e enquanto isso não é construído pelo povo em luta, há que se dizer obrigado aos homens e mulheres - desde os pesquisadores até os faxineiros - destas instituições públicas que conseguiram ontem oferecer a vacina aos brasileiros. Queria muita poder saber o nome de cada um , de cada uma, para registrar na memória. Trabalhadores públicos, cientistas comprometidos com a nação, trabalhadores privados cumprindo seu turno apesar dos riscos, todos e todas que tornaram isso possível.

Obrigada pessoal do Instituto Butantan, obrigada pessoal da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Por causa de vocês, nós, os que ainda sobrevivemos, temos uma chance.

Sabemos que agora inicia outra batalha para a distribuição das vacinas. Muitos obstáculos serão colocados. A nós, os de sempre, restará a luta para que as doses cheguem logo e sejam aplicadas. Cada dia uma luta nova. Seguimos, P´alante!