quinta-feira, 20 de maio de 2021

Um mercado em Beijin





Ali estávamos nós, eu e meu irmão, no hotel em Beijin, depois de chegar da grande muralha. As retinas ainda queimavam com a visão daquela grandiosidade, fruto de imensos sacrifícios humanos. Era janeiro de 2013 e fazia um frio de lascar. Ainda era o meio da tarde e via-se pouca gente na rua. E mesmo com os termômetros bem pra lá do zero, decidimos sair, batendo perna, afinal, uma cidade só se pode conhecer assim, vagando ao léu, indo onde os passos nos levam, sem rumo ou plano. É quando nos deparamos com a cidade invisível aos olhos comuns. A cidade real, que não se mostra nos roteiros turísticos. Beijin é imensa e quadrada, cheia de edifícios gigantes, cortada por parques que se mostram estranhamente  meio tímidos por conta da quase onipresente poluição. 

Naquela tarde, por algum motivo, aquela fumaça branca, tipo neblina, tinha amainado e as ruas se mostravam em suas cores sóbrias, claras. Já havíamos andado mais de 10 quadras, entrando nos mercados e nas inusitadas pequenas lojas que não ostentam vitrines. Não estávamos preparados para a visão do Pan Jia Yuan. Mas, ele nos chamava.

Numa das transversais da rua maior por onde andávamos vislumbramos uns portões. Eles destoavam do cenário cor de cimento. Entreolhamos-nos. Aquilo haveria de ser obra do Quilin, entidades mítica chinesa que andávamos buscando. Viramos à direita e entramos. Foi como adentrar o cenário daqueles filmes de época, de uma China antes da revolução. Ao contrário das ruas planificadas, ali vibrava a vida, a cor, as gentes trabalhadoras. Era o mercado Pan Jia Yuan.

Posso dizer que foi a coisa mais fascinante que vi em todo o roteiro que fizemos na China. Eu que sou amante da cidade das gentes, encontrara meu lugar. O mercado era um gigantesco espaço tomado pela genuína arte tradicional e popular chinesa, misturado a um animado e diversificado brique, no qual se vendiam desde bonecas quebradas até as mais finas joias.

O pavilhão, é claro, fica fora dos circuitos turísticos e passar pelos seus portões é mergulhar na China mais verdadeira. Na praça estão os vendedores avulsos, cada um com seu banquinho e  antiguidades de todos os tipos. Tranquilos e sorridentes eles nos convidavam para sentar e apreciar as coisas, com calma. Não importava que a língua verbal não fosse compreendida, o corpo falava e a gente ia se entendendo. Impossível descrever a beleza que explode ali. O mercado, na sua concepção mais antiga. O olho no olho, a conversa, o regateio, tudo na mais absoluta paz, numa algaravia suave, típica dos chineses.

Além dos espaços dos que vendiam a céu aberto, havia lojinhas que circundavam o grande pavilhão onde apareciam as pedras de jade em todas as suas conformações e os artistas se apresentavam, com seus trabalhos, sorridentes, ao observarem nosso olhar embevecido.  Éramos, naquele momento já de fim de tarde e frio cortante, os únicos ocidentais dentro daquele universo. E em cada um daqueles espacinhos nos deparávamos com o sorriso e a delicadeza. 

Em outras dezenas de boxes estavam os pintores da arte tradicional, feita com pincel típico e com nanquim. Verdadeiras obras de arte que em nada devem as que ficam no chique Espaço 798, antiga fábrica de componentes elétricos desenhada pelos alemães em 1950, que virou área da expressão da arte moderna da China. Só que ali, na Pan Jia Yuan, o desenho produzido eram a paisagens, as amendoeiras, o impressionismo e a memória de uma China camponesa e milenar. Pode-se ficar por horas nos corredores vendo as obras se constituírem na sua frente, metódica e tranquilamente, por experientes pintores, que trabalham lentamente, sem parecer notar os compradores. Também é de tirar o fôlego acompanhar a confecção das famosas sombras chinesas, incrível e delicado trabalho que testemunha a capacidade humana de produzir indizíveis e absolutamente delicadas belezas. Eu mesma não queria mais sair dali. 

Circulamos por cada cantinho da imensa praça, vez ou outra descansando ao sol, só olhando o vai-e-vem das pessoas que circulavam sob centenas de bandeirinhas coloridas. Não se vê nem a sofreguidão dos grandes mercados ocidentais nem a frieza dos xopins. Não há turistas, é um espaço tomado quase que exclusivamente por locais. Só o que se escuta é farfalhar dos casacos e a risada cristalina das mocinhas. É quase como um oásis no meio de Beijin. 

E, para coroar a sensação de que estávamos no paraíso, no meio da praça despontava uma árvore inacreditavelmente florida. Em pleno janeiro, no frio intenso, quando não havia sequer folhas nos arbustos, aquela árvore, no centro de Pan Jia Yuan, explodia em rosa claro. Seu caule estava protegido com cordas porque “as árvores se assustam com o frio”, conforme explicou, depois, uma senhora. E ela, a árvore, agradece àquele povo simples e criativo, assim, se abrindo em beleza. Ali, naquele inimaginável lugar, a epifania.

Então, de todas as maravilhas que vi em Beijin, na parte antiga e na nova, certamente o que nunca me sairá das retinas é aquela amendoeira, em flor, no meio daquele mercado colorido e cheio de gente sorridente, como que a desafiar o tempo. Ela mesma um milagre, tão maior do que o propalado desenvolvimento econômico que pretende levar a China ao paraíso. 

Aquele que consegue ver, não tem dúvidas. O paraíso já está ali. Entre aquelas senhorinhas, artistas e bandeirinhas, na adorável azáfama de comerciar sem pressa.

domingo, 16 de maio de 2021

A Palestina resiste




 Essas dolorosas imagens em preto e branco foram tiradas em 1948, quando quase um milhão de palestinos foram obrigados, pela força das armas, a abandonarem suas terras, suas casas, suas oliveiras. Amigos se separaram, famílias se destruíram, sonhos foram pisoteados. Esse momento de dor e desespero ficou conhecido como o Nakba – o dia da catástrofe. Quando a terra palestina foi tomada/invadida por Israel.

Esse êxodo aconteceu porque os Estados Unidos, a Europa e outros países do mundo, servis e vis, decidiram criar nas terras palestinas um estado artificial: Israel. Diziam que lá não havia povo, mas havia. Que era uma terra esquecida, não era. Ali viviam famílias que amavam, plantavam e tinham seus filhos. Famílias que cresciam desde a muitas gerações. E que, de uma hora para outra, foram arrancadas de casa. Suas moradas foram destruídas e os sionistas os obrigaram a marchar, abandonar tudo o que lhes era caro. Muitas dessas pessoas carregaram entre os seus pertences a chave de suas casas, uma casa para a qual nunca voltariam. Uma casa roubada, uma vida saqueada.

Os que conseguiram ficar em outros espaços do território foram tendo suas vidas roubadas pouco a pouco, num Nakba que não tem fim. A cada tanto, com armas e soldados da morte, os israelenses vão avançando sobre a vida dos palestinos e a tal ponto de os confinarem em imensos campos de concentração, como é a Faixa de Gaza, por exemplo. Esses palestinos vivem cercados por muros e não podem cruzar os caminhos sem passar por vexatórias e sistemáticas revistas e humilhações. É incrível que o mundo assista a isso calado. 

São mais de 70 anos de dor, morte e horror. E o que é vimos na mídia comercial? “Orem por Israel”. Hipócritas! São os sepulcros caiados. Assassinos também! 

Não pessoal, não há que orar por Israel porque esse é um estado assassino, que mata crianças, velhos, homens, mulheres, que derruba casas, que corta oliveiras, que obriga ao êxodo.

Não peço que orem pelos palestinos. Eles não precisam de orações. Precisam de apoio e solidariedade. Precisam de nossa ajuda concreta. Principalmente a divulgação da verdade.

O Nakba não tem fim. Essa é a verdade nua. 

Fora Israel das terras palestinas. Terrorista é o sionista.


Cheguei aos 60



 Normalmente não gosto de festa de aniversário. Acho meio tolo ficar celebrando nosso decrepitar. Mas, já tinha pensado em juntar meus poucos amigos quando fosse começar a 60º voltinha em torno do sol. Afinal, entrar nos 60 é algo. Desgraçadamente não vai dar. O novo giro começa essa madrugada, em meio a uma pandemia, num país que decidiu entregar seu povo à própria sorte. Nessa hora noa – de profunda angústia – parece uma afronta celebrar o fato de estar viva quando mais de 400 mil pessoas já morreram no carreirão da incompetência e da maldade. Não me compraz festejar em meio a tanta dor.

Eu nasci na madrugada do dia 14 de maio, no interior de Uruguaiana, no Toro Passo. Era uma noite de chuva, raios e relâmpagos. Iansã abençoava, por certo. Meu pai saiu pela noite atrás da parteira, a Dona Maria, que trazia ao mundo toda a gente por ali. Eram duas e meia da manhã quando ela chegou, encharcada, conduzindo sua carroça, e suas mãos abençoadas me receberam. Cheguei assim, nessa tormenta, bem no meio do nada, na campanha gaúcha. Talvez por isso as tempestades da vida não me amedrontem.

Sempre fui uma criança quietinha, de olhos graúdos e curiosos, disposta a sorver tudo que a vida pudesse oferecer. Apegada a bichos, seres extraterrestres e livros, perdida em meio a letras e histórias. Nunca fui birrenta, mas sempre tive opinião. Adolescente, preocupava mais com a humanidade do que comigo mesma. Tive um amor de colégio a quem amei e esperei até os 21 anos, quando então soube de seu casamento. Aí me soltei, disposta a viver todos os amores. Vivi mesmo, sem freio, até encontrar o homem que hoje me aninha e me faz feliz. 

Hoje, entrando nos 60, me assombro. Jamais pensei que pudesse chegar tão longe. Mas, ao mesmo tempo, parece que foi tão rápido, tão pouco. A primeira infância em Uruguaiana, depois em São Borja. A migração para Minas Gerais, Belo Horizonte, Pirapora, Arinos, João Pinheiro.  A passagem por São Paulo: Bauru, Marília. A volta para o Rio Grande: Caxias, Uruguaiana, Passo Fundo. A vinda para Florianópolis. Faço a lista dos amores, os perdidos, os achados. Os amigos, tantos... As aventuras dizíveis e indizíveis, os segredos escondidos, os sonhos realizados e os que ainda guardo nos planos escritos em papéis amarelados. As viagens pelo mundo, pela minha América Latina. Os lugares ainda não visitados, mas muito anhelados. Quanta vida... quanta beleza... quanta superação. Eu realmente vivi à larga. Agradeço aos deuses e deusas.

Gosto que meu nascimento tenha sido no outono, essa estação tão linda, quando tudo parece que fica mais claro. Na manhã de 14 de maio desse ainda aterrador 2021 despertarei – espero - no mais puro espanto. De saber que ainda ando sobre a terra, que vivo, respiro, amo, encontro pessoas, faço coisas boas. Olharei no espelho e verei uma mulher madura, ainda charmosa, carregada de bonitezas. 60 anos. Uma vida boa demais, carajo. Não haverá churrasco, nem tilintar de copos, só a vidinha ordinária com o pai, os cachorros, os gatos, o Renato, o Pedro. Um almoço melhorado, talvez, uma cervejinha e, à noite, uma pizza, porque afinal sou filha de deus.  

A festa fica para quando der, quando não houver mais pandemia, quando não houver mais esse cavaleiro do inferno a conduzir o país... A festa virá, ah... virá, porque é merecida...