sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

A pampa



Das imagens que povoam a minha vida uma delas é a da pampa gaúcha. Todos os anos a família saía de São Borja para Uruguaiana nas férias, para visitar os avós. Primeiro era a longa e maravilhosa viagem de trem.  O campo passando na janela, o balanço do vagão, o rec-rec-rec das rodas da Maria Fumaça nos trilhos. Lá fora, os nhandus correndo, tentando seguir o trem, as saracuras nos banhados ao longo dos trilhos, os tarumãs com sua sombra bendita para o gado, as ovelhas e os cavalos livres pelas campinas e, vez em quando, algum paysano tocando uma pequena tropa. E lá longe, o horizonte. O mundo parecia sem fim. 

Depois, o pai comprou um Fusca e fazíamos a viagem de carro. A estrada era de chão e demorava chegar. Por outro lado, as coisas podiam ser vistas com mais vagar. Às vezes o pai parava para a gente ver os nhandus bem de perto e ao longo da estrada brotavam os banhados repletos de vida. Fazíamos uma parada em Itaqui para descansar e comer sanduiche na rodoviária. Era o melhor sanduíche do mundo, por isso a parada era obrigatória. Enchíamos a pança e com mais um monte deles na sacola seguíamos o caminho até chegar à ponte do Ibicuí onde também fazíamos parada apenas para olhar, embevecidos, aquela imensa estrutura de ferro construída pelos ingleses ainda no século 19. Nela só podia passar um carro por vez, e então ficávamos esperando nossa hora, enquanto a mãe contava histórias sobre o rio. Era um momento mágico.

Depois de cruzar a ponte, mais um monte de tempo até chegar à Uruguaiana, sentindo todos aqueles sentimentos que a pampa traz. Aquela era a viagem mais linda. Passávamos o natal com os pais do pai na cidade e depois seguíamos para o Japeju, na casa dos pais da mãe.  Ali o vô plantava arroz e os dias se passavam no cuidado com a terra. Cedinho ele pegava o rumo da plantação onde ia cuidar da bomba d´água e manejar as taipas. Eu ia de apêndice, ouvindo suas piadas de sapo e pulando nas macegas. Voltava para casa com as pernas cheias de chamichungas. Havia noites que ele pegava a lata de minhoca e ia pescar no Ibicuí. Metida, eu ia com ele. Amava demais aquele vô. E lá, na beira do rio, ficávamos pela madrugada, apenas com uma fogueirinha feita numa lata de banha e com o vô contando causos de assombração. Certa noite, enquanto vigiava a linha, vi passar uma perna... era seguramente uma perna humana, via-se o pé, os dedos. O Vô estava do meu lado e também viu. 

- Que é aquilo, vô? 

- Deve ser assombração - disse, achando que não iria me assustar.

Nunca soubemos se era gente ou não, mas que era uma perna, era, e aquele foi um causo que nos seguiu a vida toda nos saraus à luz do lampião de gás, que era o que iluminava a casinha de madeira no meio do nada, alaranjada como a aurora. 

Quando as férias acabavam fazíamos a viagem de volta. Tudo outra vez. A pampa e suas maravilhas, Itaqui e seu sanduíche, os nhandus, as saracuras, os paysanos, o céu azul, o horizonte. Chegávamos à São Borja já sonhando com o fim do ano, para novas aventuras... 

Ah, essa pampa que ainda vive em mim!


quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Os fugitivos do capital


Fronteira do Brasil com o Peru - polícia peruana impede passagem dos que fogem do Brasil por medo da pandemia que está incontrolável

A cena de um grupo de haitianos/venezuelanos/brasileiros tentando cruzar a fronteira do Peru, desde o Acre, é de partir o coração. Dezenas deles, que não encontrando formas de sobreviver no Brasil, decidem partir para outro ponto do globo, sendo impedidos, barrados, escorraçados. Seu destino parece ser a fuga permanente. Os haitianos, maioria no grupo, saíram do Haiti, onde desde há décadas o império estadunidense estende seus tentáculos, seja nas ditaduras sanguinárias, seja nos golpes disfarçados - como a tal ajuda humanitária com os cascos azuis – seja em mais uma tentativa de perpetuação no poder, como é o caso agora do último presidente, Jovenel Moïse. O Haiti é uma ferida aberta de tormentos e dores. E por isso os jovens fogem de lá, buscando um espaço para viver em paz. Mas, ao que parece, por mais que se desloquem, não encontram guarida.  

Aqui na capital catarinense também podemos vê-los, nas suas correrias no centro da cidade, com enormes sacos nas costas, tentando vender produtos nas ruas, sempre acossados e humilhados  pelos fiscais da prefeitura. São rechaçados pelos comerciantes que não lhes dão emprego e também lhes impedem de sobreviver com as vendas informais. Podemos vê-los nas comunidades empobrecidas, sendo enganados, sofrendo agressões e até morrendo. É um sofrer sem fim. Poucos conseguem escapar deste destino. 

Migrantes pobres são sempre vistos como um atrapalho, como uma concorrência para os parcos empregos locais, como uma sujeira, um encosto. Se são negros, é pior. Porque aí se embute também o racismo estrutural típico das nossas sociedades escravagistas e dependentes. Os haitianos padecem, assim como padecem os migrantes dos mais diversos países da África, que atravessam oceanos fugindo das guerras, da miséria, da morte.  

Mas não são apenas os negros que vivem esse drama da fuga permanente. Na América Central, desde o ano de 2019, as famílias e principalmente os jovens, inauguraram uma nova forma de migrar. Não mais individualmente, enfrentando sozinhos os coyotes (personagens que cobram para atravessa-los na fronteira), mas em gigantescas colunas que chegam a juntar mais de quatro mil pessoas. Milhares de corpos em fuga, da violência explícita, da fome, de governos tiranos. Atravessam a pé os países do braço que divide as Américas, no rumo do sonhado paraíso, representado pelos Estados Unidos. E, como os haitianos e africanos de todas as nações, são barrados pela polícia, agredidos, mortos. Muitas mães perdem seus filhos, homens perdem esposas, pais se desencontram. Os que conseguem furar os bloqueios vão enfrentar lá dentro do pseudo-paraíso o racismo, a miséria, a violência, tudo igual.  

Olhando bem, vê-se que o capitalismo é mesmo um estado de guerra permanente, em alguns lugares com os tanques e as bombas, em outros com o manejo da economia e o roubo das riquezas autóctones. Tudo o que esse sistema de produção toca fica imediatamente sujo de sangue. Para que 1% da população mundial siga acumulando riqueza sem fim, a maioria precisa viver nesse estado de fuga perpétua, seja migrando para outros países, seja migrando dentro do próprio país. Vagar de um lado para outro em busca de trabalho é a sina. E toca sucumbir no forno da exploração. 

O Brasil sempre foi mais um espaço de chegada, mas com a ascensão do governo ultraconservador – com rasgos fascistas  - de Jair Bolsonaro começa a ser também um espaço de fuga. Os que têm condições de garantir a vida em outro país pegam suas trouxas e se mandam. Os que não têm, sonham com a migração. Não tem sido fácil viver nesse país/continente, onde o governo central aposta na morte, liberando armas para os ricos, abandonando os empobrecidos à própria sorte em plena pandemia e destruindo tudo o que é público, para que os trabalhadores fiquem à mercê do privado. É a hora do cidadão-cliente, figura criada pelo economista Bresser Pereira, do nada saudoso governo de Fernando Henrique Cardoso. Cidadão/cliente, aquele que para ter acesso ao que deveria ser um bem público - como água, luz, saúde, educação - tem de pagar caro, muito caro.  

Não bastasse isso, os brasileiros precisam enfrentar seus irmãos de até ontem, que hoje se juntam às hostes do nefasto e começam a construir a estrada que levará a uma inevitável guerra. Os anjos (eles) contra os demônios (nós). Só que não. Nem eles são anjos, nem nós os demônios. Mas o discurso formatado desde os grupos de uatizapi - alimentados por grandes empresas disparadoras - insuflam pautas fascistas que reforçam preconceitos e discriminações. Um recente decreto do presidente permite que os brasileiros possam ter em casa até seis armas, num claro incentivo a formação de um exército pronto para garantir novas atrocidades do governo. Óbvio que a massa trabalhadora não terá a opção de se armar também, pois sua prioridade será comer e não comprar armas, deixando assim esse “privilégio” para os mais abastados. Isso significa que num possível golpe ou confronto, mais uma vez os trabalhadores ficarão em desvantagem.   

O abandono dos empobrecidos no caso da pandemia já provoca fugas. Cidades em colapso, hospitais sem condições de prover atendimento, mortes desnecessárias. Moradores das fronteiras, por exemplo, procuram os países vizinhos para, pelo menos garantirem vacina, já que aqui o governo cria barreiras para que elas demorem e não cheguem. E, sendo pobres, são também rechaçados como acontece com os demais migrantes. É um quadro de horror.  

E assim, em todo o planeta, os trabalhadores se movem em desespero tentando manter a vida, enquanto que os que detêm o capital ficam cada dia mais ricos, criminosamente acumulando muito mais riqueza nesses tempos de terror.  

E ainda há quem tenha a cara de pau de dizer que o capitalismo é bom e que a ideia de comunismo precisa ser varrida do mundo. Pois para quem não sabe, no comunismo, as riquezas seriam comuns e repartidas conforme a necessidade. Um vislumbre desse mundo pode ser visto em Cuba, que ainda nem é comunista embora tente chegar lá. Agora, na pandemia, seu povo está protegido e é o único país do mundo – dos que não estão entre os mais ricos - que desenvolveu uma vacina própria. Lá, apesar da pobreza – causada por um criminoso bloqueio dos Estados Unidos – existe a melhor educação, a melhor saúde, moradia para todos, segurança e ninguém morre de fome. Sim, há quem queira fugir dali em busca do sonho do consumo insuflado pelo capitalismo. Mas, são poucos. Se olharem bem, verão que os fugitivos, na sua mais absoluta maioria, são fugitivos do capital.   

Logo, é contra ele que temos de travar longa e feroz batalha.