quarta-feira, 29 de setembro de 2021

Mil noites no Brasil


Faça o que fizer nada vai impedir que o país sangre até o final deste mandato. Negacionismo, descaso, perversidade. O governo em tela passou por uma pandemia dizendo que era uma gripezinha. Não preparou o combate. Milhares morreram por isso. Não havia leitos, nem oxigênio, nem remédios, nem respiradores. Na Amazônia e no pantanal, a vida ardia em labaredas criminosas, abrindo caminho para o latifúndio jagunço. E quando a vacina chegou, o mandatário foi à televisão e às redes sociais dizer que não era para tomar, porque as pessoas iriam virar jacaré. Para os que queriam a vacina restou a espera e a confusão. Sem um sistema eficiente de compra e distribuição, cada estado teve de se virar como pode. 

A produção de remédios, que sempre foi ponta de lança no país, vai minguando. O governo federal retirou a verba. Danem-se os doentes de doenças graves que dependem do público. Não há mais produção de remédio para o câncer, por exemplo. Milhares de pessoas foram entregues à própria sorte. Que paguem aos laboratórios privados, na farmácia, se puderem. Se não puderem, bem, morrer faz parte. Testes de Covid, vacinas e remédios de toda ordem mofam nos depósitos, trazendo prejuízo de milhões aos cofres públicos. Responsabilidade de quem? De ninguém. Ou quem sabe de algum funcionário de décimo escalão. 

Ministro da Saúde vai à televisão dizer que não é pra vacinar adolescentes, que “estudos” dizem que não é seguro. Todas as entidades de saúde do país desmentem o ministro e os governadores decidem seguir com a vacinação. Dias depois o mesmo ministro viaja com a comitiva presidencial para a ONU e infecta deus e o mundo, com Covid. Fica de quarentena em Nova Iorque, enquanto o interino aqui volta atrás e diz que pode vacinar os adolescentes, sim. É um deus nos acuda, um caos sem fim. As pessoas ficam perdidas sem saber em quem acreditar. O presidente segue dizendo que não é pra vacinar, mas a primeira-dama se vacina em Nova Iorque. De certo acredita que a vacina nos EUA é mais vacina que aqui. Aqui, o Instituto Butantã continua sendo atacado e vilipendiado. É brasileiro, é público. 

Os preços do gás, da gasolina e da comida dispararam. A culpa de tudo foi repassada aos governadores, os vilões da hora. Tudo de ruim é coisa do governador e o que pode haver de bom, se é que há, o governo federal é o responsável. 

A fome volta a assombrar o país e as mortes seguem em disparada. Já vamos chegar aos 600 mil óbitos, só de Covid, sem contabilizar as demais mortes que sobram com o descaso. Muita gente não quer se vacinar, seguindo o mito, impedindo assim a imunidade coletiva.

Na CPI da Covid, levada pela Câmara dos Deputados, os horrores se acumulam. Provas e mais provas da sistemática política de morte não provocam qualquer efeito. Os depoentes falam, contam os crimes e saem lépidos e soltos. Há os que nada dizem, mas as provas falam. E, ontem, o depoimento da advogada dos médicos do plano de saúde (?)  Prevent Senior escancara mais um trem dos horrores. Velhos sendo usados como cobaias do tratamento precoce, com remédios inúteis, sendo privados do oxigênio, para não gastar. E sem consentimento. 

Nas comunidades empobrecidas a força policial segue matando gente negra. Os indígenas são assassinados à luz do sol, não há emprego, as universidades amargam cortes de orçamento e o presidente diz que “há professores demais”. Ainda assim, tudo parece seguir normal na Gottam City. Batman morreu de Covid. 

Toda essa montanha russa de terror deveria levar as gentes ao protesto, à luta. Mas, não. As movimentações populares ainda são poucas e esporádicas. Os apoiadores da morte saíram às ruas no dia sete de setembro saudando o mito. Os trabalhadores estão prometendo um ato bem grande agora, no dia 02 de outubro. Mas, ainda assim, ao que parece, seguiremos sangrando até 2023, quando finalmente terminar esse governo. Os partidos políticos, liberais de esquerda, apostam nas eleições de 2022, e esperam por elas, ainda que ao redor se queimem as vidas das gentes, clamando por socorro. 

Enquanto isso, o ministro da Economia, intocável, segue fazendo suas trapalhadas de morte, elevando as taxas de juros, com o dólar a quase seis reais e passando as pautas meninas dos olhos da classe dominante, como a reforma tributária e o fim do serviço público. Tudo com o apoio da maioria do Congresso Nacional, cujos legisladores, saltitantes, aprovam sem pejo as propostas. 

É inacreditável que tenham se passado mil dias, mil noites... Inacreditável que tenhamos tolerado isso. 

No mundo das histórias de fada, quando se fala em mil e uma noites está se querendo dizer para sempre. No Brasil, passaram-se mil noites, passarão mil e uma? 


terça-feira, 28 de setembro de 2021

As aprontações do pai



Nos últimos tempos o pai tem dormido bem pela manhã. Dá uma acordada lá pelas seis, quando eu levanto, mas logo volta a dormir. Só quando tenho algo importante pra fazer é que ele resolve acordar cedo, comigo. Parece que ele adivinha. Eu não digo nada, mas é só pintar algo que exija minha mais profunda atenção e lá está ele. Hoje foi assim. Tinha o compromisso de fechar um texto e deixei para a manhã, que é quando estou mais focada. Pois nem deu seis horas e ele já estava de pé, mexendo em tudo pelo quarto. Tentei fazê-lo voltar a dormir, mas não deu resultado. Vencida, tratei de deixar pra lá o trabalho e começar as tratativas do levantar. Conversinha, banho, conversinha, colocar a fralda, conversinha, vestir, conversinha, levar para o café. Depois, o café. Uma boa novela. 

Lá pelas oito e meia as coisas estavam acalmadas. Dei um cigarro e comecei a ajeitar o cenário para começar a trabalhar. Ele, como sempre, inquieto, andando pra lá e pra cá, numa briga com o cachorro. Ele levanta da poltrona, o cachorro sobe. Aí ele quer voltar e o cachorro não deixa.  Um roteiro repetido milhares de vezes. 

Por fim, começou com o vai e vem até o portão. Eu na mesa da cozinha, escrevendo, mas com um olho vigiando a caminhada através da janela. Ficou assim um tempo, então parou do lado do varal de roupas que eu havia colocado ao sol. Segui escrevendo, observando pelo rabo do olho que ele estava ali, bem em frente à janela, mexendo nos grampos de roupa. Segui entretida até que notei que ele estava muito paradinho, quieto demais, parecia nem estar mais mexendo com os grampos, mas seguia ali, ao lado do varal. Continuei meu texto.

Então, deu aquele estalo. Quietinho demais. Eu continuava vendo ele da janela, mas estava muito parado. Levantei correndo e fui lá fora ver o que passava. Pois ele estava ali mesmo, paradinho, com a mão segurando firme no varal, mas completamente adormecido, quase ressonava. O danado dormia em pé. Levei um baita susto, porque poderia ter caído. Acordei o querido e ainda levei um baita esporro. Brabo, não queria soltar o varal. Mais uma novela para sair dali. 

- Tu tá dormindo, pai.

- Tô dormindo nada.

Toca pra dentro para ver se senta na poltrona e sossega. Já são 10 horas. Então ele senta e imediatamente volta a dormir. O cachorro senta aos seus pés e também dorme. Assim vão os dois, parceiros no mundo dos sonhos, enquanto eu finalmente consigo escrever alguma coisinha.