segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

O pátio da Dona Noêmia




Quando eu tinha 4 e 5 anos morava numa casa de esquina na rua João Palmeiro, em São Borja. Era uma casa grande, com um quintal imenso, mas o que me atraia mesmo era o casarão que ficava em frente, na outra esquina: a casa da Dona Noêmia e do seu Aparício. Ali viviam os dois com os seus filhos, uma das quais, Maria Elena, seria aquela que me levaria para o colégio, meu inesquecível primeiro ano no Francisco de Miranda, no bairro do Passo. Tenho-a na lembrança como minha primeira mestra, ainda que não tivesse sido minha professora. Era ela quem me pegava pela mão até o ônibus que nos levaria para escola, bem longe dali. Imagino eu que minha mãe confiasse muito naquela guria para deixar que sua pequena, de apenas cinco anos, fosse estudar tão distante de casa. 

O fato é que eu aprendera a ler muito cedo, ensinada por minha irmã, que fazia seus temas num quadro verde no quintal de casa. Eu via e aprendia. Dizia a mãe que a Maria Elena, ao saber que eu já lia, insistira para que eu fosse logo para a escola e assim aconteceu. Com ela eu empreendia, todos os dias, a longa viagem de ônibus até o Passo, até hoje lugar de minhas mais doces memórias.

Por conta dessa amizade, era comum a gente estar por ali, no pátio da casa da Dona Noêmia, brincando. Era um desses lugares de encantamento, cheio de plantas e um pouco úmido, onde assomavam flores coloridas. No meio dele um enorme poço, do qual a família abastecia a casa. E no seu entorno não era raro a gente encontrar algum desses sapos enormes, acostumados a viver no meio dos musgos. Tenho marcada na memória a figura da dona Noêmia puxando o balde enquanto seu Aparício tomava chimarrão na sombra da área. 

Agora em janeiro passei por São Borja, bem rapidamente, quando fui levar as cinzas do pai. E não poderia deixar de visitar minha querida primeira mestra, Maria Elena. Para minha alegria, além de abraça-la pude encontrar, linda, lúcida e cheia de memórias, a inesquecível dona Noêmia, hoje com 99 anos. Foi um desses momentos estelares, quando a alegria se faz plena. Tomamos tererê (os termômetros marcavam mais de 40 graus) e revivemos os bons tempos, contando da vida. 

Dona Noêmia, quase completando um século, lembrava cada detalhe daqueles tempos nos quais fomos vizinhas. Foram muitas risada e uma profusão de boas recordações. Quando chamei para registrar o encontro numa foto, ela levantou, bem serelepe, e foi ao banheiro pentear o cabelo para sair bem bonita. Uma querida. Naquela tarde calorenta com a cidade ardendo sob o sol, nós três desfrutamos da frescura da amizade que não morre. Passados quase 60 anos daqueles dias na João Palmeiro, o pátio da dona Noêmia segue sendo lugar de absurda beleza. O grande casarão não existe mais, mas aquele jardim secreto continua vivo na nossa memória.



sábado, 25 de janeiro de 2025

Museu Getúlio Vargas








Dos seis aos 10 anos vivi colada na vida de Getúlio Vargas, em São Borja. Minha família morava numa casa de aluguel pertencente à Dona Dília, getulista roxa. Bem em frente ao casarão do qual ocupávamos a metade estavam os fundos da casa do filho de Getúlio, Viriato, e alguns metros à frente, a casa do próprio Getúlio. Andar por ali era caminhar na história. Foram incontáveis as vezes que brinquei nos jardins da casa do Viriato com outras crianças que eram filhas das empregadas da casa. Ao contrário da casa do Getúlio, que sempre foi um típico casarão da Banda Oriental, a casa do Viriato se destacava como uma mansoneta moderna, com um imenso pórtico de pedras. 

Neste janeiro fui à São Borja e como não poderia deixar de ser fui visitar minhas memórias. Lá estava a casa da Dona Dília, sólida e impecável, bem como a do Viriato, esta transformada agora em uma empresa. Mais dois passos e Getúlio me acolhia com uma boa cuia de chimarrão. É que hoje tem uma estátua dele, sentado num banco, em tamanho natural, bem em frente ao casarão. 

A casa que hoje abriga o museu foi construída em 1910 e para ela se mudou Getúlio no ano seguinte logo após o casamento com sua esposa Darcy. Era ali também que ele tinha seu escritório de advocacia, no qual atendia a gente de São Borja, ricos e pobres. O museu foi idealizado pelo seu filho mais velho, o Dr. Lutero, e em 1984 foi inaugurado.  Ali se pode acompanhar a trajetória política do caudilho, ver os seus objetos pessoais, móveis, livros, documentos, roupas, discos, retratos e até a máscara mortuária. Getúlio está sereno na sua expressão final. 

Aquele dia em São Borja estava especialmente calor, com a sensação térmica acima dos 40 graus, ainda assim, por conta do pé direito bem alto, a casa se mantinha fresca e a visita pode ser feita com vagar. Por conta das mudanças na política local, a professora que atendia como guia havia sido transferida para outro espaço municipal e a casa contava com apenas uma trabalhadora. Ela não sabia dar muitas explicações sobre os objetos e a vida de Getúlio, mas era visível seu carinho pelo presidente. “Ele foi o pai dos pobres”.

E assim, enquanto a cidade ardia no calor, percorremos os cômodos reverenciando aquele que muito fez pelo Rio Grande, pelo Brasil e pelos trabalhadores. Foi o presidente que abriu a porteira do capitalismo moderno, mas que, ainda assim,  mantinha firme seus ideais nacionalistas. 

Para mim, a Elaine menina, além de ele ser o pai do seu Viriato, em cuja casa nos esbaldávamos, já aparecia como uma espécie de herói visto que meu pai tinha por ele muito respeito. Naqueles dias eu pouco sabia de sua história, mas já lhe queria bem, porque meu pai dizia que ele protegia os empobrecidos. Hoje conheço sua vida e suas contradições, e continuo lhe querendo bem...

segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

A segurança é matar


Foto: Luiz Damasceno (Ocupação lanceiros Negros – Porto Alegre) 

Circula um vídeo nas redes sociais no qual uma mulher, supostamente israelense, é entrevistada. O repórter pergunta: sabes quantos civis foram mortos em Gaza? Ela responde: são todos merda. O repórter insiste: ok, mas você não sente pelas crianças, os filhos? Ela faz uma pausa e arremata: filhos crescem para ser árabes. Ou seja, não importa. São árabes. E sendo árabes merecem o extermínio. Simples assim. Nenhum sentimento a não ser a indiferença. 

No Equador, quatro garotos negros que jogavam futebol nas ruas do seu bairro, Las Malvinas, em Guayaquil foram sequestrados por militares, sob a suspeita de que tivessem cometido um furto. Pois estes militares os levaram para o campo, próximo a uma Base Aérea, esquartejaram e tocaram fogo.  Eles permaneceram sumidos do dia 08 de dezembro até a véspera de natal, quando os restos foram encontrados. Meninos pobres, com idade entre 11 e 15 anos. Para os milicos e para a sociedade, potenciais criminosos. Logo, suas mortes podem ser encaradas com indiferença. 

Não precisamos ir mais longe. No Brasil, esse massacre contra os pobres acontece todos os dias nas periferias das grandes cidades. A cor da pele e situação financeira são elementos indissociáveis para que os indivíduos sejam vistos como suspeitos e a execução é segura. Quem não se lembra da família metralhada com mais de 80 tiros no Rio de Janeiro? E os policias saíram limpos, sem qualquer penalidade.  Na sociedade fica o sentimento de segurança, afinal, assim como para a mulher israelense, crianças pobres crescem e viram criminosas. Destino manifesto. Nenhum policial pensaria em agir assim num condomínio de luxo.

Em Florianópolis, policiais mataram um conhecido personagem da Praia da Solidão, Ernesto Schimidt Neto (o anão Betinho) que seguidamente tinha surtos de violência por conta de distúrbios psicológicos, mas sempre controlado por familiares e vizinhos. Desta vez não houve tempo. Os policias chegaram e, ao vê-lo com uma faca, dispararam mais de cinco tiros. Vários policiais contra um anão. 

E assim poderíamos seguir com os exemplos. O sistema capitalista precisa dos pobres para o seu exército de reserva. Precisa do trabalho vivo, aquele que potencialmente pode ser utilizado para gerar valor. Mas, como há muitos, ele não se importa, diante da menor suspeita, de exterminar alguns. A lógica é a mesma, em Florianópolis ou em Israel. Pessoas empobrecidas são ameaças em potencial. Pessoas acossadas pela violência, pelo desamparo, pela miséria são eternos “suspeitos” e uma bala nos cornos nunca será desperdício. Garante a segurança. 

Assim toca a banca, lá longe e aqui. E boa parte das gentes concorda que são “pequenas falhas”, “casos Isolados” e a “solução” para evitar problemas maiores. Leio os comentários que agora são possíveis neste tipo de matéria e me assusto. Cada dia mais me convenço que o que temos é uma espécie – o homo sapiens – mas que poucos deles conseguem se construir humanos. Haverá possibilidade de isso acontecer? Tenho dúvidas. 


quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

Quem precisa de Bolsonaro?

Morro das Pedras

Armação

Navegantes - parte protegida

Navegantes - Gravatá


Nas últimas eleições para presidente, deputados e senadores, o mote era: vamos deter o fascismo! Uma alusão à figura nefasta de Bolsonaro. Mas, vale dizer que faltou outro mote, talvez mais preciso: vamos deter o capitalismo. Sim, porque ao que parece, a turma já não está muito preocupada com ele, muito mais interessada em se adequar do que destruir esse modo perverso de organizar a vida. 

Digo isso porque as eleições vieram e o Bolsonaro não passou. A alegria de ter “vencido” o fascismo parece ter entorpecido boa parte da chamada esquerda brasileira, que simplesmente não consegue enxergar o tremendo processo de exploração do povo e na natureza que vem sendo imposto dia após dia, tanto pelo governo de Lula quanto pelo Congresso Nacional, que tem aprovado sistematicamente as propostas que chegam do executivo. 

Não bastasse o pacote de ajuste fiscal anunciado pelo Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que arrocha ainda mais o salário mínimo, atingindo milhões de trabalhadores da ativa bem como os que recebem o BPC (Benefício de Proteção Continuada), agora a Câmara desengaveta um projeto que visa entregar a costa brasileira, assim como as margens de rios e lagos, para a iniciativa privada. É a chamada da PEC das Praias que acaba com  os terrenos de marinha, uma faixa de terra – hoje pertencente à União – que tem sido a única proteção ao ecossistema. 

Entre aqueles que estudam o ecossistema o protesto contra essa proposta é unânime. Afinal, sem essa proteção, a beira do mar, lagos e rios, ficará entregue à especulação imobiliária, que não tem qualquer compromisso com preservação da natureza. Caso passe, essa PEC permitirá a consequente privatização das praias com o surgimento de resorts, hotéis e outros equipamentos turísticos para a classe alta, obviamente, expulsando assim o povo da possibilidade do lazer. 

E quando se fala em preservação o que se quer dizer é que, sem a faixa de terrenos, a possibilidade de desastres ambientais aumenta significativamente. Está mais do que provado que a manutenção de restingas, dunas e vegetação na beira do mar é o que efetivamente protege o entorno. Quem não acredita nisso basta ver os exemplos que temos bem aqui nas nossas praias, em Florianópolis. Uma caminhada pela areia na altura dos Morros das Pedras e o que se vê são casas sendo engolidas pelo mar, sem que nenhuma das ações (caríssimas, por sinal) de tentativa de proteção dê resultado. Ou ainda a praia da Armação, que simplesmente desapareceu em função da falta de proteção, com edificações praticamente a dois passos do mar que igualmente foram engolidas. 

Outro exemplo – positivo – é o que acontece hoje na praia de Navegantes, onde a prefeitura tem investido pesado na preservação da restinga à beira-mar, fazendo com que a faixa protegida do litoral siga verde, com praia ampla e bonita. Lá é possível ver claramente a diferença entre a área protegida, com a areia grande, e a parte da praia que não teve a restinga preservada. Nesta, o mar avançou comendo toda a areia e quase comendo as construções, o que tem levado ao inútil e caro processo de engordamento sistemático da praia. 

Mas, para o capitalismo isso é coisa que não importa, já que o processo é esse mesmo. Fazer, destruir, demolir, reconstruir, tudo isso é o que faz girar a roda do dinheiro. Dane-se a natureza e danem-se os pobres que querem curtir uma praia. Não há limites para o eterno balanço da destruição/reconstrução. Vai daí que a única possibilidade de parar com esse processo é acabar com o capitalismo. Esse é o mote. Todos os dias, esse sistema de exploração dos trabalhadores nos mostra que não há acomodações possíveis, não há melhoramentos possíveis. É sempre como uma plástica malfeita. O que parece ser feito para melhorar, só piora. E é deliberado.

Assim que o capitalismo não precisa de Bolsonaro para fazer sua maquinaria girar. Isso pode ser feito com qualquer outro, como está sendo feito agora. Seja Lula, Haddad, deputados de todas as cores. O capitalismo avança sem freio. Ele come o salário das gentes, come as praias, enche a comida de veneno, derruba as árvores, muda o clima, mata quem se interpõe no caminho, vai arrasando sem dó. 

O capitalismo é um sistema de abate. Abate a natureza e abate as pessoas. Tudo para que meia dúzia de seres humanos acumule dinheiro. Essa lógica de destruição da vida e de tudo o que é público acontece em nível mundial, nacional e também municipal. Basta ver as seguidas operações da Polícia Federal em Florianópolis, prendendo gente ligada à administração e à vereança, envolvida em corrupção.  Os gerentes e subgerentes do capital vão caindo, mas o “dono da porra toda” segue intocável.  E tanto que quando vêm novamente as eleições, a população vota nos mesmos “gestores do capital” acreditando que eles vão administrar para a maioria. Quando despertarão? 

Bolsonaro mesmo é a prova. Ele sempre foi honesto no seu propósito e dizia claramente que iria acabar com o país. Pois segue sendo seguido por milhões que gritam, histéricos: acabe com tudo, acabe com tudo, mate os comunistas. 

Sequer sabem que o comunismo é exatamente a única alternativa na qual eles poderiam ser felizes.


domingo, 3 de novembro de 2024

O passarinho de uma perna só



Minha casa tem muitas árvores e a passarinhada é grande. É bem comum então que os passarinhos acabem se achegando, catando comidinha no pátio, ou tentando roubar a comida dos gatos que fica em cima da mesa. Não é raro ver enormes bem-te-vis bicando o pratinho, mui faceiros. Também têm muitos canarinhos da telha e outros tantos tipos que vem se banhar nos buraquinhos de areia. No começo, os gatos ficavam à espreita, querendo caçar, mas com o tempo acho que foram se acostumando e agora os passarinhos ficam bem à vontade no pátio, enquanto os gatos e os cachorros dormitam ao sol. 

Pois há uns três anos meu sobrinho notou que um dos passarinhos que nos visitava não tinha uma pata. Pulava certinho, mas dava pra notar que lhe faltava a perninha. Então, passamos a vigiá-lo. Como a gente sempre estava com o pai no quintal, tomando sol, ele era sempre o primeiro a ver quando o passarinho sem perna chegava. Ele apontava e já mandava a gente cuidar os gatos para que o passarinho não fosse caçado. O pai morreu em março desse ano e os dias no quintal rarearam. 

Mas, na semana passada, eu comia uma laranja sentada no alpendre, bem ao fim da tarde calorenta, quando avistei o passarinho. Apurei o olhar. Não era possível que ainda estivesse vivo, tanto tempo sem a perninha. Pois era ele mesmo, creio. Afinal, qual a chance de aparecer outro passarinho sem perna por aqui? Ficou por ali, tomou banho na areia, bicou várias comidinhas no chão e depois voou para o muro, no rumo do pratinho dos gatos. Eu paralisada, sem me mexer, para que ele não se fosse. E assim foi. Voou do muro para a mesa, bicou os restinhos da ração, vou para o telhado, voltou para o quintal. Eu e os gatos de olho nele, reconhecendo o velho amigo. Cheguei a ouvir o riso do pai. Veio uma lágrima. E ficamos ali, eu, os gatos, os cachorros e o passarinho sem perna na quietude do entardecer. 

O pequenininho é danado. Com tantos predadores por aí, segue vivin... Horas assim são de epifania.

quinta-feira, 24 de outubro de 2024

A Turma da Umbu









No sábado, dia 19 de outubro, reunimos a “Turma da Umbu” para o lançamento de um livro com nossas histórias, vividas na chamada década de ouro da televisão de Passo Fundo: os anos 1980. Num tempo em que as condições para produzir jornalismo e programação local em uma emissora do interior eram precárias e desafiadoras, um grupo de profissionais, vivendo seus verdes anos, arregaçou as mangas e fez história, inclusive dando vida a toda uma série de produções que mais tarde foram incorporadas pela RBS de Porto Alegre, como o programa de música nativista (Galpão Crioulo), a promoção da Garota Verão e até o hoje famoso Planeta Atlântida, entre outros. Também era ali, na TV Umbu, que a gurizada inventava as peças de propaganda mais criativas e os videoclipes famosos que faziam febre na época. Quase nenhuma tecnologia, mas muita ideia circulando na cabeça. 

A turma se desfez ao longo dos anos, mas nunca deixou de se comunicar. Até que, na pandemia, foi criado um grupo no uatizapi, onde as histórias daqueles dias foram rememoradas entre risos e lágrimas. Foi o que bastou para virar um livro. Um relato bem humorado daquela década em que a RBS inaugurou sua emissora em Passo Fundo e criou espaço para que toda aquela turma pudesse mostrar seu trabalho. Voltar ao velho prédio e rever os velhos amigos passou a ser uma meta e, finalmente, neste dia 19, aconteceu. Um momento estelar, de reencontro e de lembranças. Quase quarenta anos depois, estávamos juntos outra vez.  

Lembro que quando deixei para trás na TV Umbu, onde trabalhei como repórter, o caminho até ela parecia outro. Antes, o que se via, enquanto subíamos o morro que levava ao prédio onde se plantava a sede da televisão, era um imenso descampado. Agora já não havia vazios, só casas e mais casas. A entrada, pela Avenida Brasil, era totalmente desconhecida. O prédio também. Naqueles dias dos anos 1980 era uma construção branca, sem muros ou grades, destacando-se na paisagem em cuja mureta a gurizada ficava a fumar e tramar as noitadas de farra. Agora, murada, gradeada e com cerca elétrica, virou uma espécie de bunker. Sinal dos tempos. Para entrar precisamos chamar no porteiro eletrônico. Rimos, Bozó e eu, registrando que nos velhos tempos os cobradores entravam porta adentro, exigindo o pagamento das noitadas dos guris, sem passar por entregas. De, apenas o Seu Ivo, de revólver na cintura e sua cara bonachona. 

O portão aberto e na entrada estava o querido Milton Reimers, o técnico que cuidava da “porra toda”, responsável por manter tudo funcionando. Pois não é que ele ainda está ali, cumprindo 44 anos de casa. O mesmo sorriso, o mesmo carinho, o mesmo abraço. Disse-me depois que até hoje guarda a lembrança que deixei pra ele quando fui embora: um cartãozinho com o desenho de um gato e palavras amigas. Na recepção, nenhum sinal da bancada onde a maravilhosa Mara Cavalheiro cuidava da recepção. Chequei a vê-la, linda, com suas trancinhas de kanekalon, lixando as unhas enquanto comandava o telefone e organizava a entrada do povo, com sua risada inconfundível. Ela e a Indiora Crivelli eram as guardiãs da portaria e de todos nós.

Tudo parecia estar como antes, apesar da nova pintura e outras modernidades. A sala do Valmir Correia, onde eu ia contar dos amores e fofocar, o estúdio, o espaço do jornalismo, o salão de festas. Até no espaço do pátio onde ficavam os carros, se podia sentir a presença do Manão e do Seu Ângelo, que eram responsáveis ​​pelo jardim. Tudo ali evocando os bons fantasmas – dos nossos colegas que já partiram – e boas lembranças. O Pedro, mais sensível, nem quis ver o estúdio onde atuoso. Depois, mais tarde, deixou que as lágrimas rolaram sem freio ao lembrar-se da Angélica – colega já falecida - e de tudo que viveu ali naquelas paredes. 

O encontro foi o esperado, cheio de emoções. Cada um que está chegando passando pelo estalar de abraços e beijos, acompanhado de muita gritaria. Até o Lúcio Rodrigues (cinegrafista), hoje uma estrela da Rede Globo, apareceu, para a alegria de todos. Ele, que começou a carreira ali na TV, sempre é lembrado como um dos grandes profissionais que o Umbu deu à televisão. Muitos colegas já estão fora do mundo da comunicação, hoje participam em outras profissões como advocacia, negócios, arte. Outros seguem na empresa, como o Milton, o Paulo Souza, o Carlos Alejandro e o Arno Brinker. Este, que havia perdido o irmão no dia anterior, nosso querido Coroco, chegou quase ao final e foi recebido como um ídolo. Além disso, está ali na TV há mais de 40 anos e é uma referência para todos nós. É uma das pessoas mais queridas que já conheci. 

Tio também a presença de José Carlos Bortoloti, o primeiro apresentador da TV, o Paulo Ricardo e o Ipácio Carolino, vozes espetaculares da Atlântida, a Mara, hoje uma atriz de raro talento. Enfim, a gurizada toda, agora já na estrada dos sessenta, fez com que a gente pudesse se considerar, como há 40 anos, na nossa juventude rebelde, irreverente e criadora. E no salão onde protagonizamos festas de arromba, o tempo voltou atrás, revelando nossos dourados anos. Da porta, Amélia e Leonilda, como “donas” da cozinha, já em outro plano, com certeza celebraram também.    

Nesse clima o nosso livro foi distribuído para que as nossas antigas aventuras agora possam estar na cabeceira de cada um de nós, alimentando as lembranças e assim, concretizadas em palavras, para a eternidade. Não foi um lançamento público. É um livro para nós. Mas, certamente encontre caminhos para as bibliotecas locais, afinal, registre a história. Nosso carinho ao Pereira, Fonseca, Carlinhos e Carlos Alejandro, pela organização do encontro que, com certeza, revigorou a amizade que nasceu bem ali, naquele chão, e que resistiu ao tempo. Afinal, 40 anos é uma vida.

Viva a Turma da Umbu. 


terça-feira, 8 de outubro de 2024

Um ano do massacre palestino

Todos os dias a mídia mundial publica os números. Massacres e massacres se sucedem. As notícias aparecem como pequenas gotas, sem que se apresentem a visão do oceano. Ontem, dia 07 de outubro completou-se um ano, um ano inteiro de ataques de Israel contra o povo palestino. As ações mais violentas, selvagens e cruéis. Escolas bombardeadas, hospitais, pessoas em corredores humanitários, espaços de abrigo. Nenhum lugar é seguro. As bombas descem sem parar. Para os jornalistas da mídia comercial, Israel se defende. Uma versão invertida dos fatos. Os malvados são os “terroristas”. E é por isso mesmo que os números que crescem dia após dia não significam nada. 

Uma região inteira foi destruída, cidades, memórias. Já são 50 mil mortos diretos, 17 mil são crianças. Isso sem contar os que vão morrer depois, em consequência dos danos, num número que quase chega a 200 mil. Um ano inteiro de bombas e terror. Mas, ao que parece, esses números não tocam o coração de quase ninguém. Mergulhados na versão de Israel de que os palestinos não são gente, as pessoas assistem ao bombardeio na tela do celular como se fosse apenas um jogo de vídeo game. Já foi assim no Iraque, na Líbia, no Afeganistão. Os que tombavam, atingidos pelas bombas ou pelos tiros estadunidenses eram “apenas” árabes, não-seres, terroristas. 

Nas redes sociais também prolifera a versão de Israel, porque é a que é divulgada pelos Estados Unidos e toda a sua corja de bocas-alugadas. Israel se defende, dizem. Os árabes são terroristas desde criancinhas, insistem. E a massa informe engole, ávida, reproduzindo a exaustão o mantra do imperialismo. No Brasil vemos pessoas bramindo a bandeira de Israel como símbolo do cristianismo e da paz. Uma bizarrice abissal. Nessa gente as imagens das crianças queimadas e destruídas pelas bombas não provocam qualquer acontecimento. São pequenos terroristas, têm o que merecem. Nem mesmo a morte de brasileiros no bombardeio do Líbano provocou comoção. Entre os jornalistas tampouco se percebem olhos lacrimejantes como vimos durante meses durante a cobertura da guerra na Ucrânia. Ali eram “pessoas boas” morrendo. 

É incrível que tenha passado um ano. Um ano inteiro de bombas, massacres, terror. E os governantes do mundo salvou algumas abordagens – se mantiveram impávidos, apoiando as ações de Israel, esperando uma completa desaparição do povo palestino. Mesmo Lula, que faz discursos contra o genocídio enquanto segue negociando com Israel e não rompe relações políticas. Agora, que discursos contra é esse? Palavras ao vento. 

A Palestina foi invadida em 1948, a partir da criação artificial de outro estado promovido pela ONU. Não era uma terra sem gente. Milhares de famílias foram expulsos de suas casas. E depois disso, tantas outras foram sendo dizimadas ou banidas de seus lares enquanto Israel tomava o território. Terras roubadas, muros erguidos, ódios construídos. Então, se alguém está defendendo essa história, não é Israel. Israel é o agressor. Nenhum discurso bonito pode mudar isso. A informação está aí. Ninguém pode dizer que não sabe. 

Passou-se um ano. E praticamente o mundo todo é cúmplice.

Eu que não acredito em justiça dividida, espero que ela chegue pela mão do povo palestino que haja de resistir. A Palestina não ataca Israel. Ela resiste. Ela responde ao terror. Ela luta. 

Que viva o povo palestino!