segunda-feira, 4 de setembro de 2023

Com Samuel, pelos Andes

Na foto, Samuel, o caminhão vermelho e nós três, na parada em Paso de Jama.

Seu nome: Samuel. O encontramos meio escondido debaixo de um enorme caminhão que carregava papel. Estava quase marrom, a cor que cobria tudo na perdida cidade de Susques, na puna argentina. Com um pano sujo, tocava aqui e ali no coração da máquina buscando achar o problema que o prendia naquele lugar. Estava atrasado e mal-humorado. Susques é chamada de portal dos Andes, cidade fronteiriça onde está o posto da alfandega e todos os caminhões que cruzam a linha entre a Argentina e o Chile têm que, obrigatoriamente, parar ali. Por isso, era ali que também estávamos em busca de uma carona para San Pedro de Atacama. Samuel já era o quarto caminhoneiro a ser consultado sobre a tal carona.  “Não dá, tô quebrado”, foi a resposta seca e incisiva. Já eram onze da manhã  e a possibilidade de outros caminhões passarem  se esvaía. O movimento maior era sempre de manhazinha. “Até o meio dia ainda pode aparecer alguém”, dizia Fernando, um dos fiscais da aduana, ansioso por nos ajudar. Mas no olhos dele se percebia que as chances eram pequenas. Teríamos que ficar mais um dia em Susques e nosso sonho de chegar ao deserto ainda naquele dia ficava mais distante. Dalí não saía ônibus nem nada. A única chance era mesmo um caminhão.

As onze e meia da manhã o Samuel apareceu na aduana para acertar os papéis. Iria arriscar atravessar a cordilheira com o caminhão ruim. Não podia mais ficar ali. Estava igual a nós, com pressa de chegar ao Chile, mas tinha medo de levar caronas, pois a coisa podia ficar ruim. A cordilheira é traiçoeira e havia notícias de que estava nevando mais acima. “É arriscado”, balbuciava, enquanto Fernando insistia em convencê-lo a nos levar. Então, finalmente, foi vencido.  E lá fomos nós para a boléia levando a reboque o argentino Horácio, que voltava para o posto da fronteira com um galão de gasolina. Seu carro havia ficado lá, sem combustível. Seríamos cinco a subir os Andes no caminhão avariado. 

 A insistente fumaça branca que saia do possante deixava claro que sem óleo não chegaríamos a lugar nenhum. Poucos quilômetros depois de Susques paramos num posto, o último de toda a travessia da cordilheira. Por azar, só havia quatro litros de óleo  disponíveis. Compramos. Sim, nós, porque o Samuel estava tão quebrado quanto o caminhão. Há dias fora de casa e com o veículo avariado já não restava qualquer tostão. E assim tossindo e cuspindo fumaça lá foi o caminhão pela trilha da montanha.

A travessia é solitária. Vez ou outra, muito rara, aparece alguém. Geralmente os caminhões passam bem cedinho e são pouquíssimos os carros de passeio. O trotezito do caminhão não saia dos 40, 30 quilômetros por hora. Íamos rezando para que o óleo não evaporasse todinho. Mas, faltou santo. O barulhinho de pi, pi, pi no painel dava conta de que era preciso parar. Na estrada, o vazio. Uma chuva forte, deserto total. Os cinco desolados, esperando que passasse alguém. Por um milagre apareceu um caminhão e compramos mais quatro litros de óleo. Voltou todo mundo para o caminhão e toca a subir. Marcela começou a ter dor de dente e ria de nervoso. Eu, que não havia comido nada aquele dia, comecei a passar mal por causa da altura. Na frente, Miriam seguia, impávida, de papo com Horácio que contava sobre Córdoba, sua cidade natal. A duras penas chegamos a Paso de Jama, o ponto da fronteira, e ali deixamos o companheiro argentino. Nada havia além da aduana.

Feito os trâmite seguimos a subida da montanha, o possante cuspindo fumaça. Agora, na estrada de asfalto o que nos esperava era a neve. Começou assim, de repente, e num segundo, tudo estava coberto de gelo, inclusive o caminhão. Bem naquela hora lá veio o barulhinho insistente pi,  pi, pi, exigindo óleo. De novo paramos, no meio da neve, e descemos a olhar a estrada. Um frio de rachar. Mais um milagre? Rezávamos.  

Pois não demorou dez minutos e logo apontou outro caminhão. O motorista nos vendeu mais quatro litros de óleo. Vibrávamos com palmas e gritos. O caminhão seguiria seu ritmo de completa lentidão. Samuel ria da bagunça e contava um pouco de sua vida. Em 27 anos de estrada, sempre fazendo a rota da cordilheira, nunca havia passado por aquele tipo de situação. Casado e com três filhos queria chegar logo à cidade de Calama, no Chile, onde esperavam por ele com uma comidinha caseira e uma cama quente. Achava estranho o fato de nós três sermos casadas  e estarmos viajando sozinhas. “Lá no Brasil a gente é moderno”, brincava Miriam.  E ele ria um riso que deixava entrever que lá no Chile não era assim não. 

Como a jornada estava longa dividíamos a pouca comida que tínhamos: um pão de sal pequeno que eu comprara em Susques, cortado em quatro pedaços, uma barra de cereal, também cortada em quatro pedaços e pedaços de gengibre. Foi o que nos sustentou até o fim do dia. Não imaginávamos que levaríamos mais de oito horas  para fazer duzentos e poucos quilômetros até San Pedro. 

Já ia caindo a noite e estávamos ainda a 20 quilômetros de San Pedro. Parecia que tudo iria dar certo. Chegaríamos, enfim. Mas, o malfadado pi, pi, pi de novo nos fez parar. Agora não seria mais possível um novo milagre. Era pedir demais para os deuses da cordilheira. Samuel disse que se, por ventura, passasse alguém seria melhor a gente ir com a nova carona. Ele passaria a noite na estrada. Não aceitamos. Estávamos juntos e chegaríamos juntos. O vento soprava com uma força descomunal. Ficamos os quatro, dentro do caminhão, parados no meio fio, buscando nos aquecer com o calor um do outro. 

Então, no meio da ventania, como um novo milagre, assomou um carro branco, de passeio. Samuel desceu e pediu para que parasse. Eram dois bolivianos que vinham na direção contrária. Uma conversa rápida e Samuel trouxe a notícia. “Eles vão voltar e levam vocês até a aduana”. Insistimos que seríamos solidárias ficando até conseguir mais óleo, mas Samuel não quis . “Vocês cheguem lá e peçam para os carabinieri virem me buscar. Eles ajudam”.  Bom, assim tudo bem, eram só 20 quilômetros, seria um passinho para eles. Lá fomos nós então com as mochilas para dentro do carro dos bolivianos, enquanto Samuel ficava na estrada acenando. 

Os dois rapazes conversavam nervosos e por fim nos contaram o conto. Na verdade, o motorista tinha vindo justamente do posto da fronteira. Tinha sido mandado de volta porque trazia um clandestino. Os guardas o obrigaram a  levar o outro – que era um primo – até a fronteira. Mas eles haviam decidido que o garoto ficaria ali, no meio do deserto, naquela ventania, e entraria no Chile à pé, em algum ponto, de forma clandestina. “Chegando lá não digam nada”, pediam, assustados. E nós concordando é claro, mais assustadas do que eles.  Pois foi assim que chegamos ao Chile. No carro do boliviano, que já estava encrencado. 

A polícia, normalmente mal-humorada, já nos marcou. Revista total. Abre mala, abre bolsa. Éramos “suspeitas”. Eu, que trazia um saco de folha de coca no bolso, corri para o banheiro e me livrei de tudo. Foi um momento de tensão. E mesmo longe, foi Samuel quem nos salvou, pois contamos toda a aventura e pedimos aos carabinieri que fossem ajudar o companheiro, chileno, que estava a 20 quilômetros dali correndo risco de morrer de frio. Penso que foi só aí que acreditaram que não éramos cúmplices do boliviano. Este, que já havia liberado o primo, sumiu no mundo.

Passado o perrengue da aduana, mochila nas costas, entramos à pé em San Pedro, no Chile, depois de oito horas na estrada. Foi o tempo que levamos para fazer pouco mais de 200 quilômetros, tendo passado por calor, chuva, neve e vento na cordilheira. Ainda estávamos um pouco tensas com toda a aventura e caminhávamos sem falar. Então, ao virar a esquina do pequeno povoado, que era a cara daquelas vilas de seriado de Zorro, foi exatamente isso que vimos. Dentro de um ônibus que saia da cidade, o próprio Zorro, dirigindo, mascarado, a acenar. Caímos na gargalhada e entramos na Caracoles – rua principal - prontas para viver a mais linda experiência do deserto chileno. 

Lá longe, no meio da noite, Samuel recebia dos carabinieri mais alguns litros de óleo, o que lhe garantiria passar a noite em casa.

***


Do Brega

Foto: Rosane Lima


Verdadeiramente tenho uma espécie de compulsão pelo brega. Não sei ser chique. Mesmo quando quero, a coisa acaba descambando. Nas ruas, meus olhos tendem a buscar as lojinhas de roupas baratas e bregas. Não sei por quê. Outro dia fui ao xopim com minha amiga Jussara disposta a comprar uma calça jeans chique. Fomos às lojas da Levis e da Forum...Provei uns 20 modelos, não gostei de nenhum... Geralmente faço uma carinha de enfado, enquanto digo: feeeeiiiiiia. Depois, fui conferir os preços. Com o valor de uma única calça eu compraria seis nas Pernambucanas. Bah, não tem como. 

O pior que sou assim desde pequena. Quando morávamos em São Borja o pai abriu um crediário para nós na Loja Nemetz, uma das mais chiques da cidade. A gente podia ir lá e comprar o que quiséssemos. Minha irmã fazia a festa, comprava roupas, sapatos, bolsas, lenços, tudo o que havia na crista da moda. E eu olhava aquelas roupas esquisitas com a mesma carinha de enfado que faço hoje. Não comprava nada. Minha alegria mesmo era quando eu ia às Pernambucanas com a mãe. A gente ficava por lá uma tarde inteira olhando as fazendas, que era como chamávamos os cortes de tecido. Geralmente paninhos simples, coloridos e baratinhos os quais se transformavam em lindos vestidinhos bregas que a mãe mesmo fazia. Eu me sentindo o máximo. 

O mesmo passa com sapatos. Não consigo sair da tradição. Quando pequena eu usava só as Franciscanas, sandálias confortáveis usadas por freiras. Era tudo de bom. Usei até a fase adulta e só parei porque a fábrica se acabou. Nunca mais vi uma franciscana. Só de pensar eu choro. Como eram boas aquelas sandálias. Sem elas passei para as alpargatas de sola de corda. Usei por anos e ainda uso. Mas as preferidas são as havaianas. Uso o tempo todo, apesar de que agora gourmetizaram as bichinhas. Estão custando 70 reais. Um absurdo. Talvez seja hora de buscar algo mais raiz. Outro dia visitei as lojas de calçados em busca de uma sandália de verão.. mesma coisa de sempre. A cara de enfado e mãos vazias. Acabo no Mercado Público com algum modelito havaiana ou uma alpargata. No inverno até tento ser chique, mas não aguento muito tempo. Uso uma botinha bonitinha um dia e no dia seguinte lá estou de sandália de couro e meia. A alma é brega...  Tem jeito não... Tivesse eu dinheiro seria o fino do brega... exageradamente...