Sempre é bom frisar. Não sou petista, nem lulista. Faço minhas
críticas ao governo do PT desde que Lula, no primeiro mandato, fez a reforma da
previdência dos trabalhadores públicos. Nunca me abstive de apontar os erros e
os equívocos e considero que os quatro mandatos petistas causaram muito mal aos
trabalhadores, em vários aspectos. Desde a cooptação de lideranças até a
responsabilidade pela domesticação e desarmamento político de sindicatos e
movimentos. Isso sem falar na política econômica, na conciliação de classe e
muito mais. Mas, também nunca me furtei a aplaudir o que sempre considerei
importantes pontos, como a eliminação da fome e a criação de vários programas
sociais que ajudaram milhões de famílias a sair da pobreza extrema.
Também já me manifestei várias vezes sobre o que considero
um tremendo absurdo: o fato de o judiciário burguês, que é o realmente
existente, não cumprir suas próprias regras no trato com os cidadãos e cidadãs.
Sejam eles pobres, negros, favelados ou figuras em queda da classe dominante. A
lei burguesa, que dizem valer para todos, é clara no quesito presunção de inocência
e certas coisas só podem passar a alguém depois que foi julgado e condenado.
Bom, isso nunca foi respeitado no trato com as gentes
empobrecidas. Desde minhas primeiras reportagens nas delegacias por onde andei,
sempre foi comum delegado mandar filmar cara de “vagabundo”, mesmo que só
pairasse sobre o dito cujo a mera suspeita. Fosse pobre ou preto, tudo era
permitido. No geral, figuras ilustres ou filhos da classe dominante nunca
passavam por esses constrangimentos. Caso fossem presos eram preservados, suas
imagens não eram permitidas em nome do direito do cidadão em não querer ser
filmado, ainda mais numa situação vexatória.
A queda da presidenta Dilma, a partir de um golpe, tendo
como pano de fundo uma histeria anticorrupção por parte da população que,
sempre foi muito bem dirigida ao PT em particular, virou essa prática de cabeça
para baixo. Na ânsia de derrubar os políticos
petistas naquilo que eles tinham como patrimônio (a ética), todos os holofotes
passaram a ser dirigidos a eles, e uma pequena suspeita já era suficiente para
espetáculos midiáticos, repetidos à exaustão nos meios de comunicação. Assim, o
que era uma prática para os empobrecidos passou a ser usada também com importantes
figuras da política. Detenção escandalosa acompanhada pela mídia, algemas,
prisões preventivas, raspagem de cabeça, toda a sorte de humilhações, comuns
aos comuns, e que agora eram usadas também com os políticos, “essa raça ruim”.
Na malta enfurecida pouco importava que se dissesse que eram
ações ilegais, que estavam ao arrepio da lei, que não respeitava a presunção
da inocência. Não. Danem-se! A regra era a mesma já tão familiar às famílias de
bem, a pedagogia do Big Brother: elimina, elimina, elimina. E assim foram caindo figuras como José Dirceu,
José Genoíno e tantos outros em julgamentos estranhos, nos quais não apareciam
provas, mas apenas convicções.
O alvo sempre mirado era Lula. Havia que encarcerá-lo
também, fazê-lo passar por toda a humilhação reservada aos párias. E começaram
os ataques. De novo, ações espetaculares, atos de mídia, teatro romano, detenção
coercitiva, colheita de documentos, intimações, tudo para seguir incentivando a
histeria anti-PT. Pelo que se sabe nada de provas contra Lula. Nenhum ilícito.
Ainda assim ele já foi condenado pela compra de um apartamento que, como já foi
provado, nunca foi efetuada. Um processo digno de Kafka. Uma aberração. E a
cada novo documento apresentado, novas convicções: os documentos são falsos, as
alegações não são verdadeiras. Tudo baseado no desejo dos juízes. O direito do
desejo. Essa é a cruz dos petistas.
Mas, como tudo escapa, a sanha contra os petistas foi
tocando outros nichos e outros personagens foram sendo igualmente enredados na
rede dos abusos. Corruptos confessos, por conta de delações espetaculosas, iam
agregando “provas” (feita do disse-me-disse) e saindo ilesos. Novas prisões
de “inimigos menores” como Cabral e Garotinho seguiam a cartilha irresponsável
da ação conjunta polícia/mídia. Até o milionário Eike Batista passou pela dolorosa
exposição vexatória, de cabeça raspada, adentrando o presídio. E os juízes
começaram a ganhar as redes como novos heróis da malta. Como se tudo isso
estivesse barrando a corrupção. Não está. pelo contrária, ela avança, e está nas entranhas do poder.
Em Santa Catarina o modelo espetacular da trinca judiciário/polícia/mídia
levou um homem à morte. Acusado de tentar obstruir uma investigação sobre
corrupção no interior da universidade, o reitor da UFSC foi preso de forma espalhafatosa
e submetido ao escracho público. Nenhum documento, nenhuma prova, nada que
pudesse transformá-lo em um risco para a sociedade. Ainda assim foi levado ao presídio
de segurança máxima. O reitor não suportou ver toda a sua vida escapar das mãos
por um ato tão insano. Matou-se. Ainda assim, as gentes que atuam nessas áreas
não arrefecem. Lançam notas dizendo que estão certas. E que é assim mesmo, e é
porque é.
Essa semana, outra vez o denuncismo anônimo levou a polícia,
sempre junto com a mídia, à casa do filho de Lula. Acusação: ele estaria
fumando maconha. Opa! Teria dentro da casa a carga do helicóptero encontrado na
fazenda de Parrela? Não. Ele estaria fumando. Ah, tá, então é crime grave.
Invade! E lá foi a polícia com um mandato fazer revista na casa para achar um
baseado. Não achou. A tática é boa. Já que não dá para pegar o Lula, vamos
destruindo pelas beiradas. Pega um filho aqui, uma sobrinha ali, uma tia, um
primo, um cunhado e tudo isso pode formar um mosaico que diga o quanto Lula é
ladrão. E dê-lhe a alimentar a histeria, para que os julgamentos se façam nas
redes sociais e nas ruas, e a condenação aconteça sem passar pelos tribunais.
Está abolido o direito. Agora é a malta ensandecida que decide e abaixa o
polegar como nos espetáculos romanos, exigindo a morte do gladiador.
Tenho gravada na mente a frase do desembargador, amigo do
reitor Cancellier, na sessão fúnebre da UFSC: “Eu não conheço esses juízes,
esses delegados. Não conheço e não quero conhecê-los. Porque tenho medo deles”.
Eis o drama. Quando aqueles que deveriam ser os guardiões do direito nos
provocam medo, que fazer? É a treva.
O clássico do cinema “O advogado do diabo” é uma boa
reflexão para esses tempos. Quando a vaidade assoma tomando conta de tudo, nada
mais pode ser parado. O ovo da serpente choca serpentes. A justiça não é uma
ação espetacular. Ela é, ou deveria ser, espaço do cuidado e da dignidade. E os
crimes deveriam ser investigados no silêncio das sombras, para não espantar o
criminoso, para preservar as provas e tudo mais. Os agentes da lei deviam ser
alguma coisa assim como o Batman, necessários às gentes, mas anônimos, para que
pudessem atuar melhor, garantindo a justiça e não alimentando o ego. Os holofotes acendem a vaidade e a vaidade é a porta do
inferno. Para o vaidoso, e para os que ele ataca.
Não sei se Lula é ladrão, nada foi provado. E mesmo que
fosse. Nem ele, nem o Eike, nem o reitor, nem o Garotinho, nem o Rafael Braga ou
a qualquer outra pessoa precisa passar pelo aviltamento de ser julgado antes de
ser condenado, antes que tenham sido respeitados todos os ritos da Justiça.
Isso é o mínimo que podemos querer, apesar de
saber que ainda assim pode haver injustiça.
Mas o linchamento público, feito com base na histeria
descabeçada, fatalmente leva a tragédia, como a que vivemos agora, aqui em
Florianópolis, com a triste decisão do reitor da UFSC.
Há que estancar esse
surto sob penas de perdermos o controle sobre a Caixa de Pandora. Uma vez
aberta, ninguém mais consegue controlar.