segunda-feira, 29 de maio de 2023

Homenagem aos vivos/ Waldir Rampinelli

Foto: Felipe Maciel Martínez


Quero falar de uma pessoa que indefectivelmente me emociona por sua paixão pelas coisas que faz. Pode ser uma simples aula, ou a construção de um livro, ou o cuidado com o gato. Ele está sempre inteiro nas coisas, mergulha em profundidade, se entrega com dedicação desmedida. Raramente o vejo de mau humor ou reclamando de algo. Pelo contrário. É alto astral, engraçado e sempre cheio de novidades. Parece uma cornucópia, derramando planos. 

Nasceu num reduto italiano, Nova Veneza, no sul do estado, e desde gurizinho carrega essa marca de olhar com agudez para o mundo ao seu redor. Tanto que até escreveu um livro sobre sua infância chamado “O menino que vê o mundo”, onde relata suas impressões de guri numa comunidade racista. Foi padre, sempre alinhado com os trabalhadores, com “los de abajo”. Depois, entendeu que não seria ali, na Igreja, onde ele seria feliz. Saiu fora e foi trilhar os caminhos da educação. Hoje é professor titular no Curso de História da UFSC, onde passou a lidar com a história a contrapelo, seguindo seu espírito crítico. 

Ama a América Latina com profunda intensidade, mas não esconde que tem uma preferência: o México. Ali fez seu doutorado e mergulhou mais ainda nesse continente iluminado.  Gosta de viajar, tomar um bom vinho e fofocar. Agora está dirigindo a Editora da UFSC deixando ali uma marca indelével. Porque não apenas divulga os livros, mas faz de cada livro lançado ou anunciado um ato político. Tem lotado a igrejinha da UFSC às sextas-feiras à noite, coisa surpreendente. E toma cada edição como uma jornada épica, o que me provoca grande ternura. Reúne escritores, estudiosos, estudantes, amantes do livro, em concorridos saraus, os quais comemora como se fosse um gol de campeonato. 

Tenho a alegria de caminhar com ele no IELA desde os primeiros anos da nossa história, contando com seu compromisso militante e seu amor pelo continente. Já são mais de 20 anos ao seu lado, desde as memoráveis lutas da Apufsc, numa amizade sólida e risonha. Porque sim, ele ainda é um menino, sempre disposto ao riso e a brincadeira. Sempre que me encontra pergunta: “Elaine Tavares, estás com deus”? E eu respondo... “Estou com jesusinho”.  

Waldir Rampinelli é um cara extraordinário, um desses imprescindíveis.

domingo, 28 de maio de 2023

Das tradições


Minha mãe, Helena, era uma mulher noturna. Gostava de fazer as coisas sempre depois que tudo se aquietava. Gostava de ver jogos de basquete na TV e filmes antigos. Também era de noite que bordava, fazia tricô e escolhia feijão. Feijão era coisa sagrada, tinha de ter todos os dias, então, a cada dois ou três dias lá estava ela de novo escolhendo o feijão.

Eu tinha por costume estar sempre junto nessas tarefas noturnas, até porque era só ela que me acompanhava nas maratonas de filmes de vampiro. Sempre tive medo e para ver os filmes havia que ter companhia. Ela não falhava. Ficava até o fim, as perninhas cruzadas, fazendo crochê e tomando chá de boldo. Eu retribuía, então...

Assim, quando ela estendia os feijões em cima da mesa para catar as sujeirinhas eu já me sentava junto com ela para o mutirão. Enquanto escolhíamos os grãos eu ia contando das coisas do colégio, do menino que eu gostava, essas coisas da vida ordinária. Ela ouvia e por vezes dava algum conselho. Sobre os guris era sempre batata. Se ela dissesse: “esse guri não dá, não presta”, podia escrever na pedra, que era a mais pura verdade.

Eu e minha irmã sempre dizíamos pra ela que ela julgava as pessoas sem conhecer e que isso não era legal. Ela fazia aquela cara de paisagem, um muxoxo de desdém e lascava: não presta, e não presta. Podia passar algum tempo, mas a predição se confirmava. E se ela dissesse: “ah.. esse sim”... podia marcar o casamento, porque o guri era bom.

Assim que até hoje quando jogo os feijões na mesa para catar as sujeirinhas posso sentir a presença da Dona Helena do meu lado, com a perna dobrada e os olhinhos de lâmpada a esperar pela minha algaravia dos dias. Com ela converso e damos muita risada.

Vez em quando coloco um nome na roda para esperar o veredito.

- E o fulano, mãe?

Se ela disser “não presta”, pronto. Tá lascado o fulano, porque a mãe não falha.