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quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

As mulheres indianas e a luta por vida plena





O pêndulo da política segue seu incansável vai e vem. Por isso, enquanto em alguns espaços do planeta conquistas são perdidas e avança o retrocesso, em outros a luta por transformação assoma, com surpreendente força. Um exemplo disso foi o que aconteceu na Índia, esse imenso país asiático, ainda tão desconhecido para os latino-americanos. De lá, o que sabe o senso comum? Que é a terra de Gandhi, que tem muita pobreza, que tem templos bonitos, muitos deuses e espiritualidade latente. Raros são os que compreendem as razões da pobreza extrema bem, fruto de uma tradição ultraconservadora somado com a destruição colonial, bem como a estranha divisão da sociedade por castas, que se configuram em espaços intransponíveis. Ou seja: quem nasce numa casta ali permanece, e tampouco pode conviver com outra.

Um dos grandes dramas na Índia é o das mulheres, principalmente o das de casta dita “inferior”. No geral são tratadas como propriedade de pais, irmãos, parentes e maridos. Não são poucos os casos de estupro coletivo registrado no país e a violência contra elas é generalizada. Em muitos lugares elas são impedidas até de entrar nos templos para reverenciar seus deuses. Direito é algo que parece inimaginável para a maioria.

E foi justamente a batalha das mulheres para ter acesso a um complexo de templos, no estado de Kerala, que detonou um movimento gigantesco de luta por direitos. Até então, por conta de regras pétreas da chamada “tradição imemorial” elas não podiam entrar no templo de Sabrimala, dedicado a Ayyapann, filho de Shiva, ao qual acorrem mais de 17 milhões de pessoas durante o ano. Depois de muitas lutas a Suprema Corte da Índia suspendeu a decisão da justiça do estado de Kerala, que já havia reiterado essa proibição em nome da tradição.

A decisão da Suprema Corte da Índia foi tomada em 28 de setembro de 2018 e determinava que as mulheres poderiam entrar no templo, alegando que essa discriminação não fazia parte essencial do hinduísmo, mas de um arraigado “patriarcado religioso”. Com base nessa decisão o governo da Frente Democrática de Esquerda do estado de Kerala liberou o acesso, enfrentando por isso uma série de protestos de rua realizados por grupos reacionários de direita, incluindo aí o partido Bharatiya Janata (BJP).

O clima seguiu bastante tenso em Kerala e, em outubro, o chefe dos ministros do estado, Pinarayi Vijayan, que também é líder do Partido Comunista da Índia fez um discurso público na defesa da ruptura de determinados costumes. Ele afirmou: “Se uma tradição é um grilhão, devemos rompê-la”. E então convocou as mulheres a constituir um muro vivo de protesto e de luta. A partir daí, conta o jornalista Vijay Prashad, as pessoas foram se mobilizando. “Foram realizadas mais de cem reuniões públicas nos últimos meses de 2018 para impulsionar o apoio e mais de 170 organizações progressistas da Índia se uniram à campanha”.

E foi assim que no dia primeiro de janeiro, a partir das quatro horas da manhã, começou a se formar o muro humano que juntou cinco milhões e 500 mil mulheres, ombro a ombro, por 620 quilômetros, em luta pela emancipação das mulheres. “Aquele não era um muro da intolerância, como o de Trump, mas um muro de liberdade, contra tradições que não fazem mais do que humilhar as mulheres”, diz Vijay Prashad.

Prashad informa que K. K. Shailaja, ministra da Saúde de Kerala e dirigente do Partido Comunista da Índia esteve a frente do muro em Kasaragod, no norte do estado. O muro terminou em Thiruvananthapuram, a capital do estado, onde a última pessoa na cadeia humana era a dirigente comunista Brinda Karat, que reiterou: “Este muro de liberdade não é só para as mulheres de Kerala, mas para as mulheres de todo o país”. Os movimentos de esquerda estiveram unificados nessa importante manifestação de força.

A luta das mulheres contra as já insustentáveis tradições de exclusão, violência e intolerância não é coisa simples na Índia. Os costumes ainda são muito arraigados e não são poucos os assassinatos de mulheres por conta disso. Mas, com o fortalecimento das forças de esquerda no país esses pressupostos começam a ser questionados e deslegitimados inclusive legalmente, abrindo caminhos importantes para que os direitos sejam respeitados, de fato, na vida real.

A incrível coluna feminina de 620 quilômetros que se expressou no primeiro dia do ano sabe que há muitas coisas mais a conquistar do que o direito de entrar num templo. Mas, devagar, elas vão acumulando forças, coletivamente, para avançar em outros terrenos. O passo desse primeiro de janeiro é o primeiro. 


quinta-feira, 8 de março de 2018

Dia de mulheres

Mirando La Paz, desde El Alto


Sempre que a vida pesa e a luta chama, recorro à imagem de dona Vivi, uma mulher boliviana que conheci em janeiro de 2004, na cidade de La Paz. Acontecia uma greve da força policial e junto com ela manifestações massivas contra um pacote de impostos decretados pelo então presidente Sanches de Lozada. O governo chamou o exército e os conflitos se espalharam com extrema violência. Todas as estradas estavam fechadas, ninguém entrava ou saia de La Paz. Eu estava numa pensão perto da rodoviária e lá acompanhei o terror que foram aqueles dias. Na mesma pensão estava dona Vivi. Viera da cidade de Oruro com o marido, mineiro, para tratamento médico. Devia andar aí pelos 70 anos, bem magrinha, encurvadinha, os dedos tortos de tanta lida. A ordem era não sair para a rua, porque como não havia polícia, os saqueadores tomavam conta da cidade. Durante a noite, ficávamos acordados, todos juntos, porque grupos criminosos estavam invadindo casas e hotéis para roubar. A pensão era simples, e havia poucas mulheres. Eu, dona Vivi, a esposa do dono da pensão e uma senhora que fazia a limpeza. Os demais hóspedes eram homens.

Acompanhávamos os conflitos pela televisão e dona Vivi reportava outros conflitos, tão violentos quanto aquele, que ela já tinha vivido. “A Bolívia é um caldeirão, minha filha. Não há que ter medo. A morte nunca vem fora de hora. E contra os tubarões, tem que lutar. Não tem outro jeito”.

No segundo dia de conflito, a comida já se acabando, ela decidiu sair. Os homens gritavam. “Não pode sair, o terror está lá fora. Vão matar a senhora”.  E ela firme na decisão de conseguir comida. O marido precisava, estava doente, não podia ficar só na bolacha, que era o que tínhamos. Tudo estava fechado. As pessoas que andavam nas ruas eram os saqueadores, carregando móveis, portas, janelas. Um horror. Pois ela pegou sua bengalinha e saiu. Os homens acuados, sem esboçar reação. Eu olhava estarrecida pensando como podiam deixa-la sair e não fazer nada. Decidi ir com ela. Quando me viu sair, estendeu a mão e sorriu. “Tienen miedo. Pobrecitos”.

Andamos uma quadra inteira e nada de encontrar qualquer comércio aberto. Havia um silêncio estranho no ar. De repente, um som, baixinho e crescendo. Parecia uma onda gigante quebrando no mar. Ela se agitou. “Se vienen”, gritou, as mãozinhas agarrando com força o meu braço. E saiu ligeira em direção ao som. Pela estrada que leva a cidade de El Alto vinha a multidão. Uma vaga humana incontrolável. Na frente da coluna vinham mulheres, de braços dados, formando uma corrente. E atrás delas vinha o povo. Milhares. Uma cena inesquecível. Dona Vivi seguiu em direção à passeata, me arrastando com ela. Vibrava. “Vamos pegar o cabrón”, dizia, referindo-se ao presidente. Entramos na onda humana e ali, as mulheres eram maioria. Caminhavam de olhar fixo, passando por cima de tudo. Ao longo do caminho foram destruindo tudo que havia, tudo. Uma violência santa. Dona Vivi caminhava com a mesma fúria inquebrantável das suas companheiras.

A marcha chegou ao palácio presidencial e as gentes colocaram fogo nele. Também atearam fogo nos prédios dos ministérios que ficam em volta. De dentro dos edifícios jogavam mesas, cadeiras, computadores. Era uma praça de guerra. Dona Vivi, impávida. E só não entrou para jogar as coisas para fora porque não tinha forças. Mas não arredou pé, nem quando o exército chegou atirando e os corpos começaram a cair no chão. Foram 14 mortes ali em frente ao palácio. O sangue escorria pela sarjeta. E ela, punho em riste, gritava: “Fora gringo”, numa alusão ao sotaque inglês do presidente boliviano.

Feito o estrago nos prédios públicos e dispersada a multidão ela decidiu voltar para a pensão, mas ainda queria conseguir comida. Na volta, observávamos o rastro de destruição que ficara pelo caminho onde passara a marcha. Vários comércios estavam com as portas quebradas e as pessoas começavam a ajeitar as coisas, calmamente, como se nada. Dona Vivi conversou com elas, em aymara, sua língua originária. E, como mágica, apareceram farinha de milho, carne de lhama e batatas. Ela me passou a sacola e seguiu, firmezita, subindo a rua devastada.

Quando chegamos à pensão, todos estavam como ratos apavorados. Tinham visto tudo pela televisão. Já nos acreditavam mortas. Menos o marido de dona Vivi, que esboçou um leve sorriso quando ela entrou, devagar, no passinho cadenciado. Foi uma algaravia, todos falando ao mesmo tempo, querendo saber de tudo. E ela seguiu para a cozinha onde iria fazer uma sopa.

À noite, depois de saborearmos a sopa de lhama, ficamos na sala, ela e eu, falando sobre comida. Ela queria que eu lhe passasse a receita da feijoada.  “Foste muito corajosa – disse, segurando minha mão – e é assim que tem que ser. Ninguém faz nada por nós. É a gente que faz. Eu já explodi mina, já enfrentei tiro, paulada. E também já bati muito. Ninguém é por nós. Nem deus. É nós e nosso braço. E a gente é forte quanto tá junto.”

No dia seguinte, ela se foi, com o marido, decidida a encontrar o médico que viera ver. Nada a deteria. Ofereci para ir junto. Não quis. “Fica aqui. Hoje vai estar ruim para um misti (branco)”. Saiu, passo lento, as tranças brancas escondidas sob o chapéu. O marido agarrado em seu braço, mancando e silente. Não me abraçou nem beijou. Apenas apertou forte as minhas mãos e disse: “te protege e protege as companheiras. Somos só nós. Só nós.” Fiquei ali parada, olhando a velhinha sumir rua acima, as lágrimas caindo sem parar. A impressão que eu tinha era de que ela era uma força da natureza, alguma deusa originária, vinda das profundezas das minas de Oruro. Uma fortaleza de bronze. Mas, não. Ela era apenas uma mulher. Uma mulher como tem que ser. Forte, decidida, sem medo, imparável diante do terror.  

Dona Vivi em meio ao turbilhão da rebelião boliviana era a expressão de todas essas mulheres anônimas que rasgam o mundo todos os dias. Olhos fixos no infinito, corpos em movimento, mãos armadas de porretes e uma vontade férrea de garantir vida boa e bonita. “Somos só nós”, dissera ela naquela despedida. E isso não é pouco. Quando estamos juntas, tudo parece possível. Essa nossa energia lunar, que nos revoluciona por dentro, a cada ciclo de sangue, é a prova concreta de que fomos feita para a luta renhida, para o vendaval. Não é da nossa natureza a submissão. Pelo contrário. Estamos sempre ao pé do canhão. Quando os homens titubeiam, são as mulheres que saltam à frente, como leoas. 

Aquela mulher boliviana, de frágil aparência, era feita de puro mineral, o mesmo que ainda se esconde nas montanhas de Oruro. Aquela mulher era como eu, como tu que me lê, capaz de atravessar o inferno em busca do que quer, para proteger o que ama. Era como as trabalhadoras de Chicago, que morreram queimadas na luta por direitos. Ou como Juana Azurduy, enfrentando os espanhóis, espada na mão e dois filhos pendurados no corpo. Ou Anita, que seguiu Garibaldi e expôs sua vida na luta pela liberdade de dois mundos. Como Dandara, enfrentando o exército para defender o Quilombo dos Palmares. Ou como essas mulheres anônimas que estão na frente das batalhas nas cidades curdas, na Síria, no Iraque, em Honduras, na Guatemala, em Trinidad y Tobago, no Congo, na Zâmbia, nas ruas de São Paulo, nas favelas do Rio, nos protestos em Florianópolis.

Por isso gosto de pensar que todos os dias são dias de mulheres, de mulheres que lutam. Porque todos os dias podemos encontrar uma dona Vivi. No sertão pernambucano, numa ilha grega, nos confins da Itália, no interior de Chapecó, num órgão público em Florianópolis. Cada manhã uma de nós acorda dando de cara com o monstro e precisa enfrentá-lo. E como aquela velhinha aymara, essa mulher respira fundo, pega suas armas e sai para a rua, disposta a vencer a batalha. O monstro se expressa em muitas caras. Pode ser o machismo, a violência doméstica, o trabalho escravo, o abusador, a exploração. Mas, tudo isso forma o corpo do sistema capitalista de produção. Esse modo de organizar a vida em que para que um viva outro tenha de morrer. Um sistema no qual a mulher é vista como propriedade e mercadoria. Destruir esse modo de vida é fundamental para que encontremos o caminho da vida plena.

Quando naquela manhã dona Vivi se despediu dizendo: “somos só nós”, ela não estava falando da união das mulheres em geral. Não. Ela estava me dizendo que temos de ter tomar uma posição de classe. Naquele dia ela poderia ter escolhido ficar em casa, assustada, com medo, ou apoiando a postura de um governo corrupto e opressão. Mas não, ela saiu, foi para a rua, se juntou à marcha dos trabalhadores. E com os trabalhadores ela derrubou cercas, ocupou palácios, incendiou o poder e mudou a história. Porque naquele dia o presidente da Bolívia teve de fugir do país.

Assim, todos os dias é tempo de sermos valentes para a guerra contra o capital. Nós, mulheres, irmãs, rasgando a história e construindo o novo mundo. Isso é possível em todo o lugar, nas grandes lutas e também nas pequenas batalhas cotidianas.  

Somos só nós,  e vamos juntas!


terça-feira, 7 de março de 2017

8 de março: as mulheres vão parar


Foi no ano passado, na Argentina. Uma garota de 16 aos foi drogada, estuprada, morta e empalada por dois homens, um de 40 e poucos anos, e outro de 23. A violência do caso levantou as mulheres argentinas que realizaram uma marcha gigantesca para denunciar todo o terror que ainda vivem as mulheres naquele país. 

Mas, a morte de Lucía Pérez também acabou por levantar o véu da violência e da brutalidade que se abate sobre as mulheres em todo o mundo. Desde aí começou a ser articulado esse 8 de março de 2017. A intenção é realizar uma greve mundial de mulheres. Uma parada global para que a sociedade pense sobre o que acontece cotidianamente na vida das mulheres em cada canto desse planeta. Uma violência que não é apenas sexual, como no caso de Lucía, mas também é política, cultural e econômica. 

A mulher sofre com o abuso físico, com o assédio sistemático, com a falta de liberdade para decidir sobre seu corpo, com salários menores do que o dos homens, com a tripla jornada, com o preconceito. É uma lista interminável.

Assim, que nesse 8 de março cada cidade, cada país, cada espaço do globo vai viver seu momento de parada para refletir sobre a situação da mulher. E, no âmago de todos esses dramas particulares, a certeza de que é o sistema capitalista o principal inimigo a ser combatido. Por isso, a parada envolve tantas pautas de luta.

No Brasil, por exemplo, uma das lutas mais importantes é a que se trava contra a reforma da Previdência que está sendo engendrada pelo governo Temer, a qual exige que a pessoa trabalhe 49 anos seguidos para conseguir garantir uma aposentadoria integral. Contra isso, as mulheres vão se manifestar. Também as mulheres camponesas levantam suas foices contra o agronegócio, e as mulheres indígenas vão às ruas pelo território, as mulheres trabalhadoras urbanas por salários dignos. Cada segmento com sua bandeira, mas todas irmanadas na luta contra um sistema que é, por essência, violento e opressor.

O 8 de março se ampara na luta histórica das mulheres operárias que foram queimadas, trancadas dentro da fábricas, onde lutavam por uma jornada menor, na batalha das socialistas que brigaram pelo direito ao voto, na jornada de cada companheira que ousou levantar a voz e o braço contra o sistema patriarcal. Mas, para além do passado, assoma também na solidariedade às mulheres que hoje lutam nas ruas, nas guerras fabricadas pelo capital, nos locais de trabalho, espaços de opressão, e se acomuna com as que erguem a voz para questionar, protestar e elaborar novas liras.

Em Florianópolis, a movimentação começa já às 6h da manhã, com várias atividades no Centro da cidade, culminando com uma marcha às 19h. 

Será um dia de luta, como nunca se viu. E o planeta inteiro vai tremer. 

Confira a programação:

06h30 às 9h: Panfletagem e entrega de fita lilás e apitos no Ticen.

9h às 18h: Tenda do 8MBrasilSC no Largo da Alfândega: TRIBUNA LIVRE para mulheres, debates, exibição de vídeos, atividades artísticas, atendimento com profissionais de saúde e do direito. Informações sobre a Reforma da Previdência. 

12h30: APITAÇO MUNDIAL DAS MULHERES!

13h: Concentração e ATO CONTRA A REFORMA DA PREVIDÊNCIA em frente ao INSS da Rua Felipe Schmidt, com mulheres do campo e da cidade, seguida de panfletagem nas ruas e lojas do Centro.

17h: Tenda do 8MBrasilSC no Largo da Alfândega: Assembleia de mulheres para leitura e aprovação do Manifesto 8MBrasilSC.

18h: Concentração no TICEN para a Marcha das Mulheres em Florianópolis, com saída às 19h.

sábado, 7 de novembro de 2015

Mulheres na rua, contra o retrocesso




















Passeata em Florianópolis  - dia 06 de outubro de 2015

Fotos: Rubens Lopes

A mãe de S.M.L tinha um plano para ela. Iria trabalhar numa repartição pública e casar com um bom rapaz, para lhe dar muitos netos. Tudo parecia seguir o curso, mas, quando tinha 20 anos S. conheceu um cara. Ele era músico e, na cidade, um marginal. A mãe jamais o aceitaria. Ela não deixou passar a oportunidade de viver um amor. Viveu. Só que com esse amor veio uma gravidez. S. não entendeu bem como, era pouco informada e quando se deu conta de que a menstruação falhara, entrou em pânico. O namorado não queria casar, ela não podia ter um filho. A mãe morreria, pensava. Tomou todos os chás que ensinaram e nada. Não havia jeito. Tinha de abortar.

Vivendo numa pequena cidade não haveria como fazer. Com as amigas armou tudo. Conseguiu o endereço de uma clínica numa cidade vizinha. Para lá iria. Conseguiu o dinheiro depois de algum tempo e se foi. Sozinha. Quando chegou na clínica apavorou-se. Tudo parecia muito sujo. Mas, o medo de decepcionar a mãe era maior do que tudo. A enfermeira chamou e ela entrou. Uma mesa de lata, do tipo que se vê em hospital, uma mesinha com instrumentos e um homem já com a máscara cirúrgica. A mulher, mal-humorada, mandou que tirasse a calça. Ela tirou. E o que se seguiu àquele momento foi o inferno. Hoje, relembrando, S. acredita que tudo foi feito sem qualquer cuidado. Ela sentia tudo, a dor intensa, algo sendo arrancado, o sangue borbulhando e aquele barulho dos instrumentos. A cara de reprovação da mulher, os olhos do médico. Tudo vem a mente como num filme de horror.

Quando tudo terminou ela ainda ficou deitada por algumas horas. As lágrimas vertendo. Pelo que passara, pelo que fizera. O medo, a culpa, tudo se remexendo dentro do peito. Passado o tempo requerido pelo homem que fizera o aborto, ela foi mandada embora. Nenhuma receita, nenhuma palavra. Ela saiu do lugar, cambaleando. Sentia-se fraca. Andou pouco menos de uma quadra e entregou-se a uma vertigem. Um rapaz que passava a amparou e a levou para uma farmácia mais adiante. Ela sangrava sem parar. O farmacêutico, possivelmente experiente naqueles fatos, deu-lhe um remédio e a faz descansar. "Eu pensei que ia morrer. Estava me esvaindo em sangue. Não sabia o que fazer e ainda tinha de pegar o ônibus e volta para casa. O fato é que sobrevivi, mas, hoje, passados já 40 anos, ainda me assalta a culpa e a dor. Eu me casei, mas não tive filhos. Não me achava digna".     

S. teve sorte. Saiu viva da experiência de um aborto clandestino. Mas, no Brasil, onde são praticados mais de 800 mil abortos por ano, pelo menos 2.100 (dados oficiais) mulheres morreram nos últimos 15 anos, por conta de procedimentos como esse, ou outros ainda mais bizarros, invasivos e violentos. Se considerarmos o número real, que é o das mulheres que morrem sem que sejam contabilizadas nas estatísticas, a situação ainda fica mais grave. Conforme o Ministério da Saúde, o aborto é a quinta causa da morte materna. Logo, isso não é um problema moral. É uma questão de saúde pública. Não é sem razão que as mulheres lutam para que esse tipo de procedimento seja feito pelo sistema de saúde, de maneira pública e segura. E qualquer uma que tenha passado por esse drama sabe que o aborto nunca é uma decisão fácil. Ninguém vai para um aborto como se fosse a uma festa. É sempre uma dor.

S. estava na passeata que reuniu, em Florianópolis, no dia 06 de novembro,  dezenas de pessoas no grito de "Fora Cunha",  numa alusão ao deputado Eduardo Cunha, autor do Projeto de Lei 5069, que dificulta o aborto legal para mulheres que tenham sofrido estupro, impedindo o anúncio ou a prescrição de pílulas do dia seguinte. A lei ainda prevê prisão para quem induza ou ajude à prática de aborto, e permite que um profissional de saúde se recuse a dar qualquer medicamento que considere abortivo. Atualmente as vítimas de estupro, ao declararem o crime, podem fazer o procedimento de maneira legalizada no sistema de saúde. Com a lei do Cunha, a mulher terá de provar que foi estuprada com exames de corpo de delito e queixa na polícia. Ora, qualquer pessoa sabe que um estupro é algo brutal, que deixa uma mulher em choque. Como exigir de uma pessoa violentada que ela aja com racionalidade cirúrgica visando comprovar a violência? A lei é, de fato, ela mesma, uma violência contra as mulheres.

Não é sem razão que esse PL está levantando as mulheres em luta por todo o país. Primeiro, porque como já se mostrou, o aborto não é uma questão moral. Ele é vivenciado por milhares de mulheres por causas tão variadas, que vão desde o medo de magoar a mãe até a completa incapacidade de proteger e criar uma criança.  Cabe à mulher definir o que fazer com seu corpo. Esse é um direito que ela tem, e ninguém no mundo deveria julgar alguém por decidir sobre si mesmo. Da mesma forma, um estupro tampouco pode ser tratado como um problema moral, culpabilizando as mulheres pela violência. Se uma mulher violada quiser viver sem o fruto da violência, essa é uma decisão que lhe cabe. Ao estado resta cuidar e proteger.

A lei proposta por Cunha consegue regredir ainda mais na já conservadora legislação que existe em relação ao aborto. E é por isso que as mulheres estão realizando protestos, buscando impedir mais um retrocesso. Em Florianópolis, S., que é de outra geração, marchou com as garotas e chorou. "Hoje nós vemos que as mulheres se protegem mais. Naquele tempo em que eu tive de abortar eu estava sozinha, não só no dia de fazer a coisa, mas na dor. Não havia com quem repartir. Hoje eu vejo essas meninas aqui, se amparando, lutando por todas as mulheres, eu me emociono".

A chamada bancada da bíblia, da qual Cunha é o mais importante representante, tem demonstrado poder, mas, a considerar a força das ruas, pode ser que a lei acabe arquivada. Nessa semana que começa novos atos estão planejados por todo o país e as mulheres estão engrossando cada dia mais as caminhadas e os protestos. Com tambores soando no ritmo do coração, elas gritam: "Fora Cunha, inimigo das mulheres. O estado é laico. O corpo é nosso". E esse é um grito que vai crescendo e tomando conta mesmo daquelas que nunca tiveram coragem de sair numa passeata política. Como Rose, uma balconista que viu passar a marcha e  ficou com os olhos arregalados, brilhando de alegria. "Eu sei o que é esse terror que a gente passa quando se vê grávida, sozinha e sem saída". E foi por saber que ela pegou a bolsa e saiu atrás da caminhada, somando-se ao coro: "mexeu com as mina, mexeu com satanás".


As mulheres estão na rua, e o que é melhor, não é apenas pela pílula do dia seguinte. Elas sabem que esse congresso quer muito mais atraso, nas leis trabalhistas, na ação anti-indígena, no reforço ao agronegócio. E, por isso, elas vão lutar com unhas e dentes para impedir a retirada de direitos e o retrocesso.