quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Antes do coronavírus, o quê?




O Brasil segue em vertigem.  Não que fosse muito diferente antes, mas é impossível não ver que desde o primeiro de janeiro de 2019 foi dado uma espécie de sinal verde para a barbárie. Tudo está liberado. Matar índio, matar gay, matar povo da umbanda e do candomblé, seguir caçado e matando jovens negros nas favelas, matar sindicalista, matar político. Está tudo bem. O Ministro da Justiça aparece na televisão e vaticina: está tudo sobre controle. E está mesmo. Sob o controle da mais avassaladora sanidade do capital.

A conjuntura latino-americana já vem mostrando sistematicamente que não há mais espaço para a democracia burguesa no mundo do capital. Aquele arremedo de liberdade, no qual as pessoas se sentiam decidindo alguma coisa através do voto, já  não pode mais ser tolerado. A voracidade do sistema se acirra e é preciso mão-dura em todos os aspectos da vida. É por isso que os golpes se sucedem seja contra governos de esquerda, como nos de direita. É preciso cerrar todas as portas ao povo. Esse alerta foi dado ainda em 2004, com a invasão do Haiti e veio caminhando com o golpe em Honduras, no Paraguai, no Brasil. O professor Nildo Ouriques vem alertando desde há tempos: o que precisa ser visto e combatido não são os governos em si,  mas o sistema. Só que essa é uma verdade difícil de assimilar. E o que se vê são movimentos e partidos tentando humanizar o capital.

Agora, no Brasil, o governo federal escancara as portas para a violência, tanto pessoal quanto corporativa. Tudo está validado. Desde matar a mulher que não que não nos quer  até as comunidades que atrapalham a mineração e a pecuária. Incomodou? Elimina! Como se fosse um inocente Big Brother . O poder aplaude todas as iniciativas que levem a medidas de exceção. É tudo que se quer, criar o caos para que a sociedade mesma peça pelo salvador.

Mais uma jogada nessa direção entra em cena, em pleno carnaval,  quando ministros do governo e até o mandatário nacional chamam o povo às ruas para se manifestar pelo fechamento do Congresso Nacional. Um lance de mestre. O Congresso, que é um consolidado antro de pessoas que não se importam para nada com a maioria da população é, de fato, um espaço indefensável.  Lá, não há qualquer chance para as pautas populares. Tudo é definido no andar de cima, para o bem dos grandes grupos econômicos  nacionais e internacionais.

A queda de braço do governo federal com o Congresso é uma briga de cachorro grande. Não diz respeito à maioria da população e não tem nada a ver com democracia ou liberdade. É um enfrentamento intraclasse dominante para ver quem fica com o bolo todo. O governo – que se ampara nos pilares de parte dos militares e igrejas evangélicas – quer que o Congresso aprove tudo o que encaminha e se há disputa de poder aí, bom, inicia-se a batalha pela hegemonia de poder.  De maneira bastante inteligente, como já  fez o presidente de El Salvador, o executivo convoca o povo às ruas para apoiar medidas de força, forçando a barra com as instituições. O judiciário já está dominando e mesmo que chamar à destituição do Congresso seja inconstitucional, quem vai julgar? Ora, esse é o jogo democrático. Ou as pessoas não sabiam disso?

E assim, com pequenos – mas barulhentos - espetáculos os homens do poder vão tramando o tabuleiro do jogo. Pode ser que nem precise fechar o Congresso, porque na verdade isso não importa. Assim como não importa ter ou não um STF. O que vale é apertar a soga para ver quem desiste primeiro. No fundo, toda essa gente quer a mesma coisa: defender o capital a qualquer custo, ainda que para isso 99% da população tenha que se explodir em miséria, fome, desemprego, doença. E, o mais dramático é saber que entre esses 99% tanta gente há que seria capaz de dar a vida por essa gente, acreditando que tudo o que querem é o seu bem.

Passado o carnaval a vida real começa de verdade no Brasil, então vai ser a hora de inventar novos factoides, tal como espichar a histeria pelo coronavírus ou qualquer outra desgraça, mantendo as pessoas atadas ao medo. O medo é bom para quem governa. O medo é tudo.

Nesse ínterim vamos tentando manter a cabeça fora da merda, esperando que partidos e movimentos coletivos, de esquerda, apontem caminhos para além dos memes. Porque, não se iludam: não há saídas individuais. Ou vamos juntos, ou sucumbimos.



A demência e a noite



Não existe glamour ou beleza na demência senil. É um drama gigantesco que sucumbe com a vida de quem tem e de quem cuida. Isso porque o velho não é criança. Ele ainda tem parte de sua autonomia, de seus quereres. Raramente pode-se impor algo a ele. Emburra, empaca e tudo fica pior. Tudo tem de ser negociado. E isso é um processo de grande estresse, porque é um repetir-se, repetir-se e repetir-se,  à exaustão. 

No geral, a parte da noite é que é mais dura. Durante o dia, com a luz do sol e o movimento da vida, as coisas são mais fáceis de lidar. Até mesmo o mantra do “quero ir embora” a gente vai resolvendo, seja com o canabidiol ou com alguma dose de matreirice. Vamos desenvolvendo estratégias de envolvimento, passeios, conversas, brincadeiras. 

Mas, quando a noite chega e todos desaparecem, é a hora noa do cuidador. Primeiro porque ele já passou o dia inteiro envolvido com o doente. Além disso, no geral, o cuidador ainda trabalha, o que significa que precisa dar conta da vida laboral, com toda a sua complexidade, Por isso não é incomum que a pessoa passe a cometer erros, e a se esgotar fisicamente.  Assim, depois de passar por todo esse processo de trabalho e cuidado durante o dia, o cuidador terá de enfrentar, sozinho, a “mala noche”.

É comum na demência a deambulação, que é o andar sem razão. Isso fica pior no período noturno.  A pessoa anda sem parar e não aceitar deitar. Mesmo quando o sono chega e se percebe que a pessoa está exausta, ela não aceita descansar o corpo. E não há palavras que se possa usar para convencer ao descanso, creio eu que é uma coisa química, que dá no cérebro. É desesperador. A gente prepara tudo, o ambiente, a luz, o cheirinho de lavanda, os chás, mas nada resulta. 

Com o pai já tentei quase todos os remédios que existem para dormir. Cada um deles detona crises horrorosas de delírios, alucinações e quedas. É devastador. Uma impotência tão grande ver o pai da gente naquele nível de sofrimento. Acaba que nem dorme, nem descansa, pelo contrário, fica pior. Já tentei Neozine, Risperidona, Clonazepan, Donaren, e todos apresentaram o mesmo resultado. Nada de sono. Só sofrimento. É ruim porque se a pessoa não dorme, quando chega o dia, fica dormitando e todo o humor fica afetado. Sem sono  a demência piora. E o cuidador, que também não dorme, parece que também vai adquirindo parte da demência. A vida se deteriora. 

É assim que vai se criando também uma espécie de pavor da noite. Quando a barra do dia cai, é como se um grande manto escuro, carregado de dor, começasse a cair sobre nós. As horas vão se arrastar, a pressão vai subir, o desespero vai crescer naquela espera que finalmente venha o dia. 

O mais engraçado nisso tudo são os conselhos das pessoas próximas: Tu precisa dormir, não podes ficar assim, há que encontrar um jeito. Só que não há jeito. Não há com quem dividir a dor e muito menos os cuidados. Estamos sós nessa jornada. E, na medida em que vamos acabando também doentes – do corpo e da alma - mais isoladas ficamos, pois ninguém quer se contaminar com tanta desgraça. 

Sim, é duro. Não há amparo na família, nos amigos, no estado, na medicina. É uma caminhada alucinante, algo que ainda não pude entender. E nisso, vamos definhando, vendo aqueles a quem amamos mergulhados num mundo a parte, nos puxando para dentro dele a cada noite que passa. É um morrer abigarrado – doente e cuidador. Um sofrimento atroz. Há janelas de beleza? Sim, há, mas há que ter muita capacidade de percebê-las no cotidiano avassalador. Coisa que não é para qualquer um. A saída que tenho encontrado é viver o possível, com intensidade, sabendo que é pouco. Lapsos de alegria, uma música, uma cachaça, um filme, um poema. Tudo isso num tempo em que há igualmente uma noite escura na vida política e social. Não é fácil.

Ainda assim, vamos caminhando, desenhando o caminho. Sabe-se lá onde isso tudo vai dar.