quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Vitória dos Amarildos

A comuna Amarildo já dá seus frutos

As vitrines da “ilha da magia” já iluminavam um vindouro natal naquele dia 16 de dezembro de 2013, quando, na madrugada, um grupo de famílias, sem condições de pagar aluguel na grande cidade especulada, decidiu ocupar uma área na região mais nobre da ilha de Santa Catarina: Canasvieiras, a super praia amada pelos turistas. E, bastou que as lonas dos barracos fossem vistas da estrada, para que começasse o furdunço. Num átimo e lá já estava a polícia e um pretenso dono do lugar, até então, um vazio. Quem reivindicou a terra foi uma empresa chamada Florianópolis Golf Club, de propriedade de Artêmio Paludo, que, em tempo recorde, conseguiu a reintegração de posse. O judiciário, sempre ágil para servir aos ricos, já mandou arrancar as famílias e derrubar os barracos.

Mas, as coisas não foram tão simples assim. As 60 famílias que ocuparam o lugar deram a ele o nome de “ocupação Amarildo de Souza”, em homenagem ao trabalhador negro, desaparecido em uma UPP, na Rocinha, e decidiram resistir. Naqueles dias, ninguém sabia, mas essa ocupação iria levantar o véu espesso que cobria a questão da posse das terras em Florianópolis.    

A proposta dos “Amarildo”, como ficaram conhecidas as famílias, era a de constituir ali, naqueles 600 hectares de terra uma comunidade agrícola, onde pudessem plantar e viver. Boa parte das pessoas era migrante e saíra do campo em busca de vida melhor. Na capital, as famílias viviam de bico ou no subemprego, e não conseguiam garantir a moradia. Ocupar foi a solução. Afinal, terra vazia, sem cumprir função social, é passível de expropriação.

A resistência dos Amarildo foi grande. Eles foram tirados do terreno de Canasvieiras, depois foram para outro no Rio Vermelho, onde a população os rechaçou violentamente. Com crianças, velhos e mulheres, eles tiveram de se mover e chegaram a ir para uma terra que era dos indígenas. Mais conflito. Passaram-se meses, de ocupação em ocupação, insistindo junto ao Incra para que garantissem uma terra. Afinal, o que eles queriam era integrar-se ao processo de reforma agrária, conquistando terra e plantando.

Finalmente, depois de muita batalha, eles foram levados para a cidade de Águas Mornas, onde as famílias foram assentadas em pouco mais de 130 hectares. Já não eram mais as 60 da primeira ocupação. A dureza da resistência e a necessidade de ganhar a vida na capital mesmo foram fazendo com que muitos tivessem de desistir. Mas, os que ficaram logo arregaçaram as mangas e começaram a fazer a terra parir. E ela deu frutos. Em pouco tempo já havia uma boa plantação de hortaliças, produção de geleias, criação de galinha, e as famílias já começavam a comercializar.

Ainda assim, as coisas não estavam definidas e a luta pela posse definitiva da terra seguiu. Finalmente essa semana, os Amarildo tiveram uma vitória. O INCRA de Santa Catarina formalizou, através de publicação no Diário Oficial, a criação do Projeto de Assentamento, na modalidade Desenvolvimento Sustentável, para a Comuna Amarildo de Souza. Isso significa que agora eles estão legalizados e poderão, inclusive, garantir recursos para seguir plantando com mais eficácia e qualidade.

Por isso não era sem razão a alegria imensa estampada no rosto de Daltro de Souza, uma das lideranças da área, quando me entregou nessa manhã de quinta-feira, a cópia do documento oficial. Naquele pequeno pedaço de papel estava plasmada toda uma batalha, que durou mais de três anos, travada na escuridão dos barracos de lona e,  depois, na solidão da distância, em Águas Mornas.

Agora, novos caminhos se abrem para os Amarildos e muito trabalho está por vir. As famílias que perseveraram seguirão trabalhando e produzindo a comida que chega à mesa do povo da cidade. E quando a noite chegar, eles poderão descansar a cabeça na sua terra.

Mas, apesar de estarem distante da capital, onde tudo começou com a ocupação do terreno na beira da praia, os Amarildo deixam em Florianópolis a sua marca. Depois da ocupação de 2013, que ousou questionar a posse da terra urbana, muita água rolou. Aquela ferida aberta na região mais nobre da ilha moveu o historiador Gert Shinke a pesquisar sobre quem eram os donos das terras na ilha. E sua escavação nos arquivos acabou descobrindo a gigantesca farsa da “reforma agrária” feita durante o regime militar, na qual os governantes distribuíram terras aos amigos. Um vespeiro que ainda está zunindo e que pode ter consequências.

Lá em Águas Mornas, as famílias da Amarildo agora dormem em paz, enquanto que nas casas-grandes dos surrupiadores de terra a chapa esquenta. Não que se tenha fé no judiciário. Impossível. Mas, pelo menos, o véu está rasgado e alguma incomodação eles vão passar.


Na comuna, mais do que nunca, ecoa o bordão pelo qual eles são conhecidos: “Firmes!” E cada vez mais. Vida longa para a comuna, vida longa Amarildos. 


terça-feira, 17 de outubro de 2017

A morte do outro não importa

Tragédia na Somália: uma a mais no doloroso processo de libertação

O mundo ocidental se move por uma premissa que vem da cultura grega: o ser é, o não-ser não é. E o que significa essa frase tão enigmática? Que só é reconhecido como ser aquele que é igual. O outro, esse não existe. Não-é. Não tem importância. Sendo assim o que é para o mundo ocidental europeu/estadunidense? Aquele que é igual a eles: branco, rico, capitalista, guardião da ordem e da moral. Tudo o que sai desse script não-é. E, não sendo pode ser destruído sem dó. Sobre a morte desse outro que não-é, não se fala, porque não importa.

É por isso que o massacre perpetrado pelos Estados Unidos nos países do Oriente Médio não tem a menor importância para o mundo ocidental. Todos os dias, os “mariners e seals” matam 20, 30, 40 iraquianos na sua já eterna campanha contra o “mal”. E as pessoas seguem vivendo sem se importar. O picoteamento do continente africano em inúmeros países, criados pelos interesses dos povos europeus, sem que fossem levadas em consideração as histórias e tradições dos povos do lugar é outro exemplo. Todos os dias morrem milhares por conta da ocupação colonial e sua herança. Poucos se importam.

Nessa semana, na capital da Somália, Mogadíscio, dois caminhões bomba explodiram causando um massacre, matando cerca de 300 pessoas e ferindo outras tantas. Foi o pior ataque nos últimos anos, em um país que foi completamente destruído por conta dos interesses dos Estados Unidos. Guerras internas, fomentadas na disputa socialismo  x capitalismo destruíram o país no início dos anos 1990, depois de um golpe contra o presidente Siad Barré, alinhado ao socialismo. Desde então, grupos locais se revezam no poder.

E como sempre acontece, por conta dos conflitos internos, e sendo a região estratégica para a navegação, com grandes reservas de minério de ferro, estanho, gipsita (gesso natural), bauxita, urânio, cobre e sal, além da suspeita da existência de reservas de petróleo e gás, o governo dos Estados Unidos decidiu ir para lá, “promover a paz” com seus soldados. Desde então vem promovendo ações para garantir o controle da área. De certa forma, como nos países do Oriente Médio, acaba por incentivar cada vez mais o aparecimento de grupos radicais. Agora, no último mês de março, o presidente Trump autorizou a intensificação dos ataques aos grupos em luta, que eles chamam de “terroristas”, e foi isso que acabou provocando o ataque.

Mas, a Somália é um lugar onde vivem não-seres, gente pobre, negra, muçulmana, que, por um azar do destino, nasceu num ponto estratégico para os “donos do mundo”.  Fica numa região chamada de “corno da África”, ponto mais oriental do continente africano. Então, a morte de centenas e centenas de somalis aparece como apenas uma estatística, exatamente como a dos iraquianos, os afegãos, os paquistaneses, etc...

Então, não adianta clamar nas redes sociais para que coloquem a bandeira da Somália no facebook. Isso não muda em nada o drama que se desenrola naquele despedaçado país. O melhor a se fazer é tentar sair da armadilha filosófica que acaba dominando a realidade na qual o que não é igual é passível de destruição, sem que se sinta remorso ou empatia. E isso é uma pedagogia que está na tele da TV todos os dias, em programas como A Fazenda, Big Brother, e outros afins. Lá, as pessoas que não se encaixam no perfil do público são “eliminadas”, em rede nacional, no grande coliseu eletrônico. E é assim que todos vão aprendendo a eliminar os não-seres, consolidando essa  forma de pensar.

Enrique Dussel, filósofo argentino, construiu outro modelo de pensamento que ele chama de filosofia da libertação. Nele, o pressuposto grego muda radicalmente. Se para o mundo ocidental/burguês o ser é, e o não-ser não-é, para a proposta de libertação, o ser é e o não ser é real. Isso muda tudo. Aquele que é diferente existe, tem nome e sobrenome, precisa da nossa empatia. E é essa atitude que permite que possamos sentir na pele, como dizia el Che, a dor do outro, caído e oprimido. Só assim poderemos caminhar para um mundo de bem viver.

Há um episódio, da famosa série televisiva Black Mirror, que mostra a lógica grega/ocidental na sua forma mais terrível. Nele, soldados estadunidenses aparecem sendo treinados, com manipulação psicológica e física, para ver os inimigos como baratas. Eles então são mandados à guerra e matam sem dó nem piedade tudo o que encontram pela frente. Eles não enxergam pessoas, enxergam baratas gigantes, monstros. Por isso não se apiedam. Essa lavagem cerebral é a que vivemos todos nós. Ao ver um negro, um árabe, um pobre, um gay, um travesti ou qualquer outro ser que não-seja igual ao que temos por “normal”, o que vemos são baratas gigantes, que podem ser amassadas sem que vertamos uma lágrima.

Pessoas há que estão fora da bolha. Que conseguem ver os homens, as mulheres, as crianças, de olhos graúdos e sorriso largo, querendo viver. Esses se importam. Mas, ainda assim, não basta clamar no facebook. É necessário o trabalho político sistemático e organizado para mudar a filosofia e ordem das coisas. Ação concreta na vida, bem aqui, na vida cotidiana, no sindicato, no partido político, no movimento social. Porque se mudamos a forma de pensar e fazemos esse pensamento avançar, a vida dos iraquianos, afegãos, palestinos e somalis também pode mudar.

A tarefa é essa, entender que o não-ser é real, que o opressor é real, que o sistema que nos aniquila é real e sobre isso temos de atuar. Acolhendo o diferente, o caído, o real, e encontrando caminhos para mudar esse modo de organizar a vida, que transforma humanos em coisas para o enriquecimento de uns poucos. Entender que vivemos uma guerra de classes e que a primeira batalha a vencer é justamente a filosófica, embora ela pareça a mais distante.

Seguiremos denunciando as atrocidades cometidas pelo mundo afora pelos “senhores da guerra”, liderados pelos Estados Unidos ou fomentados por eles. Mas, só denunciar não é suficiente, visto que para um grande número de pessoas, “essa gente longínqua” não interessa para nada. E a melhor maneira de ver o outro, diferente, é provocar o conhecimento sobre ele. Os negros somalis que alucinadamente atacam navios no chifre da África, como nos aparecem nos filmes de roliúde (pura ideologia), estão vivendo a fome, a guerra, a miséria, desde os anos 90. Estão fazendo o que podem para sobreviver, enfrentando o maior exército do mundo. Não são loucos, não são baratas e se estão “terroristas” há que se perguntar: por quê?


Entender o mundo, entender as relações sociais, colocar-se no lugar do outro e lutar efetivamente contra o sistema que oprime e destrói. Esse é o caminho para a mudança.