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terça-feira, 28 de março de 2023

Ficamos velhos, carajo


Na foto, o grande Kirk Douglas... sim, ele ficou velhinho... e seguia com olhos de lâmpada...

Toda hora pulam nas minhas redes sociais matérias com as seguintes manchetes:  “Ídolos dos anos 70 ou 80. Respire fundo e veja como eles estão agora”. No geral eu respiro fundo mesmo, mas é de ódio. Que coisa mais estúpida e idiota. Se uma pessoa foi famosa nos anos 70, 80, é óbvio que estará diferente hoje, cinquenta, quarenta anos depois. Afinal, Dorian Grey só existe nos livros e no cinema. Na verdade, estas listas de pessoas velhas são produzidas obviamente por pessoas totalmente imbecilizadas.  É como se ficar velho fosse uma maldição. Mas, ao mesmo tempo, pode ser fonte de “likes” e “engajamentos”.

O pior é que tem gente que consome isso, que compartilha, que comenta, que discrimina os velhos, mandando que fiquem em casa, que se escondam, que escondam suas caras enrugadas, afinal, um dia foram belos, e há que manter a mágica. E essas estupidezes fazem com que pessoas velhas busquem harmonizações faciais, plásticas e sei mais o quê para manter um mínimo rasgo da juventude perdida. Principalmente os artistas, os que sempre viveram do corpo, esses são os que mais sofrem, imagino eu. Vi outro dia a turma falando mal da Madona que fez alguns procedimentos. Ora, os insaciáveis juízes da internet cobram juventude, e quando as pessoas buscam a juventude, são tripudiadas. É um verdadeiro inferno.  Mas é um inferno que movimenta a roda do capital.

O culto a juventude não é de hoje, não é sem razão que está no imaginário coletivo a eterna busca por Shangri-Lá, o horizonte perdido, onde todos são sempre jovens. Talvez fosse bom que a turma fosse lá ler esse famoso livro escrito em 1933 por James Hilton e ver como ele termina. Ninguém fica jovem para sempre. Ninguém. Então, mesmos estes imbecis que escrevem essas matérias ou comentários nas redes também envelhecerão. 

A velhice é uma merda. Traz uma série de limites, já é por si só bem difícil de enfrentar, principalmente sendo trabalhador, num mundo capitalista. Então porque dificultar mais ainda? Deixa o povo envelhecer e ficar enrugado.  Beleza não está apenas nos efebos. A beleza está também numa vida carregada de plenitude, de realizações, de criação e corre-corre. Quando a gente fica velho significa que já cumpriu um largo caminho, que acumulou extraordinárias experiências, que vivenciou milhares de pequenos momentos estelares. 

Eu estou ficando velha e, sim, me assustam os limites que a idade impõe, mas ao mesmo tempo gosto dessa mulher que me olha no espelho. Uma mulher que viveu, que fez coisas legais, que viajou, amou, enlouqueceu, chorou, sofreu. Sim, já fui bem bonitinha e charmosa. Não serei mais. Mas, que importa? Há outras coisas que podemos ser. O mesmo vale para os nossos velhos ídolos. Assim que não precisa respirar fundo para ver como ficaram os artistas ou os amigos do passado. Eles estão velhos. É tudo. Não ficaram menores ou piores. São velhos. E ponto final. Parem de ser idiotas. 

***


segunda-feira, 18 de maio de 2020

Ser velho e inútil


Hoje estava lavando roupa e o tanque fica bem num ângulo que dá pra ver o quarto do pai. Vi que ele conversava muito animado com uma fotografia que achou numa revista e que colocou na mesinha de suporte. Ela fica ali como num altar. É uma foto de um grupo de pessoas, num tempo passado, creio que deve ser lá pelos anos 1940. Não sei quem são, e nem ele, presumo. Mas, de qualquer forma ela o distrai e ele conversa amiúde com aquele povo. O papo é animado, ele mexe as mãos, ri, argumenta. É bem engraçado.

O pai passa os dias assim. Acorda, cochila, come bergamota, cochila, fuma, fica andando em volta da casa, vai até o portão e volta, pega os lixos da lixeira e traz para a cozinha, depois leva outra vez para a lixeira. Almoça, cochila, fica andando em volta da casa, prá e prá cá no portão, fuma, ouve música, come banana. Depois, janta, ouve música, come bergamota, toma chá, vê televisão e vai dormir. É uma vida não produtiva, que alguns chamariam inútil. No mundo do trabalho, do capital, ele é um inútil. Ele não pinta, não compõe, não se lembra do passado, não faz absolutamente nada que sirva para alguma coisa. Então, talvez por isso, que alguns governantes não se importem com a morte dos velhos agora na pandemia, afinal, são inúteis, não servem pra nada.

Quando eu vejo o meu pai, aos 88 anos, na sua rotina diária de andanças pelo quintal, num ir e vir aparentemente sem sentido, não posso deixar de me comover. Sua inutilidade é um fato. Ele que sempre foi arrimo da família, agora não faz mais nada por ninguém. Passa o dia vivendo sem qualquer preocupação. Não seria então a inutilidade um presente? Um momento de viver para si, só na fruição? Penso que sim. Quem disse que é preciso produzir o tempo todo? Quem disse que há que se cumprir um protocolo de utilidade para ser uma pessoa?

O pai começou a trabalhar cedo, em escritório de contabilidade. Teve uma vida boa até os quarenta e poucos anos, quando perdeu tudo e teve de começar do zero. Um velho já para o mundo do trabalho. E, ainda assim, ele se reergueu. Estudou, se esforçou, e terminou sua jornada de trabalhador como chefe do almoxarifado do DEER de Minas Gerais. Nunca se queixou do trabalho duro e sempre foi em frente, sem reclamar. Como empregado era um calvinista. Nunca chegou atrasado, nunca faltou, deu sempre o seu máximo. Fazia o impossível pelos seus colegas. Como pagador de trabalhadores no trecho – obras nas estradas – ele se virava nos 30 para fazer chegar o dinheiro, fizesse chuva ou sol. Chegou a atravessar um rio, amarrado numa corda, para garantir o salário dos companheiros. Era o que se chama de “caxias”.

O pai criou os filhos sempre ensinando o sentido da honestidade e do trabalho. Pagava as contas religiosamente. Era capaz de ter um troço se não tivesse dinheiro para quitar as dívidas e o sinal para a demência foi justamente esse: de repente ele se esqueceu de pagar as contas. Isso só poderia ser doença. E era.

O pai foi um cara extraordinário ao longo de sua vida “produtiva”. Ele tem uma história linda de perseverança, de coragem, de derrotas e superações. Ele tem uma história, que está viva em nós.

Por isso que hoje, quando ele aproveita – sem culpa - desse momento de inutilidade, eu me encho de ternura. É bom vê-lo sem a neurose das contas, sem a necessidade de cumprir afazeres, obrigações. Na sua vida inútil ele está livre. Ele pode conversar com os amigos imaginários nas fotos, ele pode degustar as frutas, dormir, caminhar, ouvir música sem preocupação. Ele tem quem lhe cuide, que lhe dê o alimento na hora, troque sua roupa, dê o banho, quem dance com ele, e lhe encha a cama de perfumes e cobertas quentinhas.

Ele é uma vida que foi vivida na plenitude, mas sempre acorrentada ao trabalho, à obrigação, ao dever. Agora, não. É só um corpo dançante, que toma vinho e cospe o que não quer comer.

Por isso que a vida dele importa. Tanto quanto a do jovem que ainda não viveu tudo o que ele já percorreu. Por isso que não é possível escolher entre um e outro. Cada um é um universo. O jovem, ainda em jornada. O velho, que já cumpriu tanto.

A proposta do “deixa morrer os velhos e os fracos”, que aparece agora, com a pandemia, tem me consumido os dias e noites. Não posso aceitar. Porque, como Manuel de Barros, tenho respeito pelas coisas inúteis, que existem apenas para a fruição. Um velho dedal esquecido numa caixa, um quadro sem valor, um lápis de cor quebrado. Coisas que evocam belezas. O pai, esse homem de tanta vida, é assim. Um ser de fruição. Um evocador de belezas. Ele merece viver sem a pressão de ser útil.

Ele é velho, inútil agora, mas já riscou um caminho nesse mundão de deus. Sua vida importa. E muito. Assim como a vida de outros velhos e velhas desse planeta azul, cheios de histórias, memórias e belezuras.

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Nossos velhos precisam de nós


Fumando um charuto, no dia do aniversário do Che

Como diz o Ziraldo, a velhice acontece assim, de repente.  A pessoa está bem , fazendo coisas, controlando a vida, quando então, algo acontece. Com meu pai foi assim. Um dia, minha irmã o surpreendeu rasgando alguns documentos. Coisa que ele fazia cotidianamente, colocando fora os documentos já velhos, para não juntar lixo. Mas, entre os documentos rasgados, estava a escritura do único bem que ele tem: sua casa. Algo não estava normal. Pouco depois percebemos que ele estava descontrolado nos gastos, contraindo dívidas com o banco. Mais um sobressalto. Sua memória falhava e ele foi definhando. Completara 85 anos.

Levamos no médico e o diagnóstico foi Alzheimer. Prescreveu remédios fortíssimo que o tornaram um zumbi. Não andava e em pouco tempo já não conseguia nem pegar os talheres para comer. Aquilo não estava certo. Por sorte, na intuição, minha irmã suspendeu o remédio.

Foi quando decidi trazê-lo para morar comigo. Minha irmã mora no campo, sem qualquer condição estrutural de cuidar de uma pessoa idosa e doente.

Em Florianópolis consultei um jovem médico, Henrique Passos, desses, preciosos e necessários, que pensam no ser humano e não na doença. E do saco de remédios que ele trouxera, sobrou só um: o da pressão. A nova prescrição foi cuidado, atenção, conversas, passeios, estímulo artístico, interação social, alimentação saudável e balanceada. Tudo foi sendo cumprido e ele renasceu.

Ontem, lendo sobre a situação de João Gilberto, me dei conta do quanto a relação com os velhos precisa mudar. Eles definitivamente não podem ficar sozinhos. Não por um imperativo moral, mas por responsabilidade ética. A velhice tem outro ritmo, outras necessidades, outro ethos. E, a única maneira de manter a sanidade e a alegria por estar vivo é estar cercado de pessoas que lhes prestam atenção e garantem uma relação de amizade, de parceria, de companheirismo.

Há um momento em que a memória recente se vai, que as mãos ficam trêmulas, a capacidade de tomar decisões fica confusa, as funções intestinais se descontrolam. Vejo que não é demência, é simplesmente o início do apagamento da energia vital. Por isso eles precisam de gente por perto, para explicar as coisas milhões de vezes, sem irritação, para amparar o passo, para garantir o riso, para incentivar a memória, para caminhar ao sol, para brincar, para ver novela na TV, para contar das notícias, para ajudar na hora do banho.

Com meu pai tenho aprendido coisas demais. É fato que a vida da gente muda por completo e tudo o que era não é mais. Mas, ao mesmo tempo, coisas que nunca foram, passam a ser. E isso não é de todo ruim. Havia anos que eu não catava pedrinha na rua, havia anos que eu não aquietava em casa nas noites mornas da primavera, havia anos que eu não me demorava tanto para ir de um lugar ao outro, no passinho lento, parando eventualmente para ver o avião passar, ou o cachorro, ou o passarinho.

O fato é que assim como meu pai, o João Gilberto, uma hora começou a mudar, e, ao que parece não havia ninguém por perto para notar. Há que cuidar... Há que ficar por perto. Essa é uma hora que vai chegar para todos nós. E tomara que tenhamos alguém que nos observe assim, com olhar atento, pronto para nos guardar das dores e dos enganos.

O mundo capitalista nos ensina a ter muita pressa, a eliminar o entrave, o diferente, o chato. Não podemos aceitar isso. O futuro pertence aos homens lentos, dizia Milton Santos. Talvez seja isso que a velhice dos nossos queridos venha nos ensinar, na prática.  







quinta-feira, 6 de julho de 2017

Notas sobre a velhice

Com meu pai, buscado caminhos... 

Então, de repente, a velhice mostra sua cara. E não é aquela dos folhetos da previdência privada, nem da Unimed. É velhice real, que chega e toma conta daqueles que amamos, com doenças e esquecimentos. Pode ser o pai, ou a mãe, ou um avô. E, no contrapé, pega de surpresa, afinal, as pessoas até percebem o velho, mas não notam que ele está perdendo a autonomia. Assim, sem manual e sem qualquer experiência anterior, por vezes é preciso enfrentar uma situação nova, cheia de desafios e surpreendentes ensinamentos.

Foi assim com Nelson. Sempre ativo e tomando conta de tudo, um belo dia foi surpreendido pela filha rasgando documentos importantes. Ela perguntou o motivo daquilo. E ele negou veementemente que o havia feito. Não se lembrava. Acendeu a luz vermelha e lá se foi a família buscar um médico. Um dos melhores de Porto Alegre. Ele fez uma consulta padrão e em poucos minutos já dava o diagnóstico: Alzheimer. Essa doença tão temida, que provoca o esquecimento. A filha fica meio sem chão, mas, seguindo as receitas médicas começa a medicar o pai.  

O remédio logo mostra a que veio. Nelson estava como um bobo. Já não conseguia articular as palavras, não controlava as necessidades físicas, a boca entortava, não queria comer. Foi um baque, porque ele sempre fora o arrimo da casa. Vivendo no meio do mato, sem muitos recursos, a filha, atarantada com a mudança drástica de comportamento, decidiu suspender a medicação. Talvez tenha sido o que o salvou. A bobeira passou e ele começou de novo a atinar as ideias. A outra filha decidiu buscar outro médico. Trouxe para Florianópolis. Nova consulta, um médico capaz de olhar a pessoa e não a doença. Ele chegou à conclusão de que o que Nelson precisava era de uma boa nutrição, cuidado e atenção. O demais, como a perda de memória, ficaria monitorando. Poderia ser o esquecimento normal da velhice. Aos 85 anos isso não era algo tão fora da realidade.  

E assim foi feito. Alimentação saudável, música, cuidado e paciência. Muita paciência. Mas, essa não é uma jornada fácil. Os velhos precisam de atenção durante 24 horas. Porque eles podem esquecer um fogão ligado, um cigarro aceso, meter a mão onde não devem. Aí vem o drama: como cuidar 24 horas, se é preciso sair para trabalhar? A vida vira de pernas para o ar. E quando o velho precisa ser trocado, usar fraldas e tudo mais, torna o cuidado ainda mais difícil. Afinal, é preciso força para erguer, virar, movimentar. Ter uma pessoa idosa em casa, exigindo atenção permanente, é uma virada radical. Poucas famílias conseguem segurar essa barra.

Na verdade, ninguém está preparado para essa tarefa. Não há conhecimento sobre como proceder, o que fazer. A pessoa velha, doente e fora de sua casa, fica irritadiça, nervosa, rebelde. Não se sabe o que fazer. E a única saída é ir tateando no escuro. Ler sobre o tema, buscar relatos de outras pessoas que enfrentam o mesmo drama, buscar amparo. Algumas famílias são maiores, podem dividir as tarefas, construir tabelas de horários para um e para outro, constituindo turnos, rotinas, afinal, o cuidado é permanente. Ainda assim, é difícil conciliar estudo e trabalho. Agora, e quem não tem família, faz o quê?
  
Quem pode cuidar um velho?

Cuidar de uma pessoa velha e doente é difícil demais. Não existe nenhum lugar onde se possa buscar ajuda. Cada família que se vire. Existem os cuidadores particulares, mas o preço a pagar é muito alto. Para uma família de trabalhadores fica inviável. Possivelmente é por isso que uma das opções mais buscada é colocar os velhos num asilo. Não é por descaso ou desamor. É justamente o contrário. Sem condições de cuidar e tendo de prover a família, a pessoa fica sem saída.

Em Florianópolis já existe uma casa, no bairro Santa Mônica, um bairro nobre, que funciona como creche. A família leva o velho e ele fica lá enquanto o povo trabalha. No fim do dia vão buscar e ele vive em família, sem ser privado da companhia dos parentes. Mas, igualmente, é uma opção privada e caríssima.

Há algumas pessoas que já discutem em grupos na internet a possibilidade de criar um movimento pró-creches públicas para velhos. Mas, lendo mais sobre o assunto, surgem muitas dúvidas sobre se esse é um caminho saudável. No geral os velhos não gostam de sair de seus lugares habituais, mesmo os que estão sem memória. Eles têm suas próprias rotinas e andar com eles pra lá e prá cá, todos os dias, pode ser motivo de estresse. E teriam de sair da cama muito cedo para acompanhar quem vai ao trabalho. Um sacrifício total.

E, depois, o velho não pode ser tratado como se fosse uma criança. Esse é um dos erros mais comuns que se comete. Eles já passaram por essa fase, e ainda que não tenham lembrança de várias coisas, de alguma maneira sabem que não são bebês. Então nada de guti, guti, nem de tutelagem. É fundamental que o velho tenha alguma autonomia. Que possa decidir sobre o que comer, o que fazer, como passar o dia. A família que cuida precisa ficar de longe, a cuidar e, vez em quando, propor um passeio, uma distração. Mas, isso, como já vimos, não é uma opção para muita gente.

Fui buscar na internet sobre a experiência de cuidar velhos em Cuba, que é um país com uma proposta socialista, e percebi que lá eles têm discutido bastante essa questão. Porque também estão vendo sua população viver bem mais. Esse é um assunto novo, afinal, a longevidade não era coisa que fazia parte da nossa vida. No Brasil, entre 2005 e 2015, a proporção de idosos de 60 anos ou mais, passou de 9,8% para 14,3%. E há estimativas de que em 2050 esse número triplicará. Esses são números do Brasil, mas o envelhecimento da população é uma tendência mundial. Não é sem razão que o sistema capitalista aponta para reformas de Previdência em todos os países. Querem os velhos trabalhando até a última gota de energia.  

Mas, voltando a Cuba. Lá, a população já tem uma experiência de 60 anos de socialismo, a ideia de solidariedade é uma coisa que vive no cotidiano das gentes e assim como com as crianças, é comum numa rua ou numa comunidade específica, todos cuidarem de todos, prestando atenção em quem saiu, quem está doente. Ainda assim, podem-se ler muitos artigos sobre a necessidade de um cuidado mais específico para com os velhos. Também há debates sobre a criação de creches públicas para esses casos. É um tema em discussão. Enquanto isso, o estado orienta as comunidades a se ajudarem uns aos outros no cuidado com os velhos, principalmente com os doentes.

No mundo capitalista já não temos essa sorte. Nem da solidariedade, nem da preocupação. No geral, quem tem um velho que se vire com ele. É comum as pessoas ficarem sozinhas na estrada, inclusive com o sumiço dos amigos. Na vizinhança também pouco se consegue de solidariedade. As pessoas se preocupam, perguntam, mas não estão dispostas a uma ajuda concreta. O máximo que se tem é mirada do pessoal da padaria ou do mercadinho, que é avisado sobre a doença do esquecimento, porque as famílias colocam ali um telefone para o caso de a pessoa aparecer sozinha ou se perder.

A logística do cuidado, dentro de casa, tampouco é coisa fácil. A vida de todos fica afetada. Uns mais, outros menos. Há muito estresse, pois é preciso respeitar religiosamente os horários de cuidado, para que ninguém fique prejudicado. Alguém tem uma aula fora do horário, uma reunião, uma festa, e toda a família precisa se reacomodar. E, em Florianópolis, onde o transporte é um drama à parte, garantir isso é dureza. Uma pessoa que mora no sul da ilha, como eu por exemplo, leva mais de duas horas para fazer o percurso entre a casa e o trabalho, e qualquer atraso numa parte do caminho pode significar que alguém ficou na mão. Haja maracujina.

Mas, ainda há outros tropeços, como enfrentar a tristeza de ver alguém perdendo a memória ou a rotina incessante das repetições. Há momentos em que os velhos ficam irascíveis e até violentos. Porque não conseguem verbalizar uma palavra, ou porque não se lembram de algo, ou porque não querem tomar banho. É doloroso. A velhice pode ser um momento bonito se o velho tiver saúde e pessoas que o amam a sua volta. Mas, isso não é válido para todos. Até porque, hoje, as famílias são pequenas e muitas não conseguem estabelecer uma rotina de cuidados. Outras há que não encontram outra forma senão asilar. E sofrem com isso também.

Assim que a propaganda da previdência privada sobre a melhor idade é uma enganação. Somos uma geração que precisa aprender como fazer para cuidar dos nossos pais, ou tios, ou avós, porque eles estarão aí. E nós, os trabalhadores, não temos muitas escolhas. Por isso não é bom tatear às cegas, abrindo a mata à facão. Dá muito trabalho e cometem-se muitos erros.

Então, esse é um tema sobre o qual precisamos falar mais, aprender juntos, como sociedade. Termos mais solidariedade real. Afinal, já existem estudos que mostram que no caso dos que optam por cuidar dos velhos em casa, boa parte acaba morrendo primeiro que eles, por conta do tremendo estresse a que ficam submetidos, seja pela logística, seja pela tristeza de ver os pais ou avós definharem.

Hoje, eu estou nessa missão de cuidar do meu pai - conto com meu companheiro e dois sobrinhos - o que ajuda bastante. E quando caminho na minha rua meus olhos procuram os velhos. Não os vejo. Mas se os vir, vou fazer como os cubanos: oferecer o conhecimento que estou construindo, oferecer ajuda no cuidado. Creio que esse pode ser um caminho. Se cuido do meu pai, posso cuidar do pai ou da mãe de alguém no mesmo período. Quem sabe a gente não começa, por aí, a constituir uma solidariedade por rua. Enfim, são coisas que me acometem, pensamentos, ideias, utopias.

E por aí vamos...



quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Aposentado, vai curtir!


Os velhos devem brincar, protegidos e felizes

Os trabalhadores das universidades estão em greve há mais de 100 dias. Querem data-base, reajuste salarial e ainda têm uma longa pauta específica que inclui arranjos na tabela de cargos, contra a EBSERH e outros tópicos mais. Um deles é bem importante. Diz respeito ao reposicionamento dos aposentados. É um tema meio árido para quem não conhece a lógica da carreira pública, mas em linhas gerais posso explicar assim: quando veio o novo plano de cargos em 2004, foi feita uma equação para colocar cada trabalhador num determinado lugar na tabela. Quem já estava aposentado acabou sendo colocado em lugares diferenciados na tabela, enquanto deveria ter ido automaticamente para o último degrau.

Como naqueles dias de mudança de plano de cargos, a coisa foi posta pelo governo praticamente como uma obrigatoriedade - afinal quem não aderisse ao plano ficaria sem representação - os aposentados não tiveram escolha e acabaram aderindo ao plano, mesmo com os prejuízos. Por conta disso, desde aí a categoria tem feito uma luta intensa para garantir o reposicionamento, sem encontrar eco no governo, que insiste em alegar que como já estavam aposentados não poderiam mais "produzir" e subir na carreira. Não leva em conta o governo que a maioria dos aposentados passou a essa condição já tendo cumprido todos os degraus do plano anterior e não pode ser penalizado por ter nascido uma nova tabela com mais degraus que a antiga. 

O fato é que os trabalhadores que já deram sua contribuição laboral ao Estado não deveriam estar nessa batalha insana, lutando por algo que é um direito. Eles deveriam estar curtindo a vida depois de tanto trabalho oferecido ao público.

Faço parte de uma geração que sempre respeitou os "velhos". Quando cheguei na UFSC, logo entendi que estar ao lado de pessoas como Manuel Arriaga e Antônio Carlos Silva - que eram considerados os decanos da luta dos TAEs, era um privilégio. Todos queriam aprender com eles, sorver de toda a experiência de luta e de dedicação ao serviço público. Eram a nossa referência. Depois, os não tão velhos, mas também já experientes combatentes, como Valcionir Correa, Moisés Eller, Ângela Dalri e Helena Dalri reforçaram a ideia de que na questão da aposentadoria o que devia prevalecer era a solidariedade geracional. Nós, os da ativa, seguíamos contribuindo, para que os aposentados pudessem fruir a vida, sem mais contribuições.

E foi essa diretriz que sempre pautou a luta contra a reforma da previdência e contra a proposta - vitoriosa por parte do governo - de que os aposentados tivessem de seguir contribuindo mesmo depois de já estarem afastados do trabalho. Aquilo não era - e não é -  justo. 

Por isso que continuo entendendo que os aposentados têm mais é que curtir a vida. Foram mais de 30 anos dedicados ao serviço público, alguns até bem mais tempo deram. Agora, que conseguiram conquistar um tempo de liberdade deveriam poder viver à larga, com tranquilidade, alegria e sem medo. Mas, não, todos os dias eles precisam acordar pensando: que nova maldade estará sendo preparada para nós? E, em vez de buscar as trilhas da festa do ócio, precisam vir para a universidade, participar das lutas e seguir com todo o ritual de reuniões, assembleias e atos públicos. 

Não digo que eles não pudessem vir. Mas o que os traz não deveria ser a incessante peleia por direitos. Nós, os que ainda estamos na ativa, é que deveríamos ser a ponta de lança da luta na defesa dos direitos dos nossos velhos companheiros e companheiras. Nós deveríamos empunhar a bandeira e arregaçar as mangas na batalha por aqueles que tanto deram de sua vida para a universidade e para a sociedade. Aos aposentados deveria ser garantido o espaço da fruição.

Hoje, quando nossos velhos colegas ainda precisam fazer todo esse esforço para conquistar direitos, eu continuo apostando na solidariedade geracional. E ela deveria se manifestar assim. Nós lutando e eles curtindo a vida. Porque quando chegar a nossa hora de dizer adeus ao mundo laboral, eu queria que tivesse uma juventude aguerrida lutando pelos nossos direitos. Isso me daria alegria e paz.

Assim é que tinha de ser a vida. Solidária, solidária e solidária, cheia de amor por aqueles que já trilharam o caminho que ora cruzamos. Cheia de amor e cuidado pelos velhos, essas criaturas que já deram tanto. Sobre eles estendo a minha ternura, mesmo àqueles mais reacionários, que passaram uma vida e não entenderam. Acredito, como a Compadecida de Suassuna, que o caminho histórico de cada um provocou os erros de avaliação, mas que no fundo e no fim, são todos puros. 

 E todos esses, queria ver brincando no jardim, enquanto nós seguimos com suas bandeiras e armas. Para, na vitória, dançarmos juntos a ciranda. E é por conta deles que dizemos não à proposta do governo, que se nega a discutir o reposicionamento dos aposentados. Com isso, não podemos claudicar! O direito dos nossos velhos é a nossa luta.

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Sem dúvida, velha!



























Lá vinha eu no ônibus. Como sempre, em pé, porque há que fazer cálculos. Se a pessoa sai do centro determinada hora pode perder o outro ônibus no segundo terminal, e aí fica mais de hora esperando. O tempo duplica. É uma loucura matemática. Então, não dá para esperar para ir sentado. Tem que pegar o carro que te leva ao outro terminal no tempo certo. Difícil explicar para quem não sofre o transporte desintegrado de Floripa. Mas, enfim. Quero falar da velhice.

Há sempre aquele ditado bonitinho que diz: a velhice é um estado de espírito. Só é velho quem quer... Bobagem, não é verdade. Pelo menos, não para a os trabalhadores. Aí a gente entende o papo mosca do politicamente correto. A diferença entre idoso e velho é a diferença de classe. Explico.  Pois como eu dizia, vinha em pé no ônibus me equilibrando com a bolsa pesada, o casaco e os livros. Tenho de segurar no banco porque meu metro e meio não me permite pendurar lá em cima. Então, uma mão já está comprometida com o segurar o “corpicho”. E com a outra eu tentava segurar o livro aberto, para ler, afinal a travessia do centro até o Rio Tavares pode levar até uma hora no período de pico.  O bagulho estava doido.

Quando cheguei ao Rio Tavares o corpo todo doía. A mão, formigando por apertar demasiado o banco, já que os motoristas dirigem como loucos e nas curvas há que fazer malabares. A outra, doendo pelo peso dos livros, e as costas em frangalhos por conta da bolsa lotada de papéis, escova de dente, pasta, batom, bonequinho do Chaves, camiseta, gorro, câmera e gravador. Esse kit básico do jornalista que sai de casa pela manhã e volta à noite. O nervo ciático repuxando tudo, fazendo mancar. Era a imagem do tinhoso.
Então vem a constatação básica. Estou velha. Velha, não idosa. Velha, incapaz de aguentar mais o peso da bolsa, dos livros, da situação vexatória do transporte público, de ser quem eu sou. Então vislumbrei os “idosos” das propagandas de banco ou de margarina. São ricos. Andam com roupas diáfanas, cabelinhos arranjados, maquiagem e estão sempre em alguma paisagem encantadora. Alguns devem ter criados para suas vontades mais tolas. Andam de carro, tranquilos. Sorriem e parecem saudáveis.

Ser velho é coisa de pobre mesmo. De quem precisa se virar na correria do dia, trabalhar, limpar, levantar peso, carregar tralhas e, ao fim do dia, ainda balançar como um pedaço de carne murcha nos ônibus lotados e sem janela, respirando um ar viciado. Velha. Na dolorosa constatação de quem não tem mais forças para enfrentar o tirão. “Há que diminuir o peso”, diz o ortopedista, vendo o corpo retorcido de dor. Mas como? Comprando um escravo para levar a bolsa com tudo que se necessita ao longo do dia? O bagulho é mesmo doido, meu irmão...


E assim, na constatação cotidiana da nossa condição, a gente vai percebendo o quanto essa política do “correto” é sacana e mentirosa. Esteriliza a verdade, amacia, engana. Como dizer idoso ao que vai se desmilinguindo pelos caminhos? Para nós, desse lado de cá do rio, é velho. Velho mesmo. Com todas as durezas, as dificuldades, as feiuras, as dores, as humilhações. Aquele momento fugaz em que se percebe que algo se perdeu e não volta mais.