Minha mãe nasceu no campo, filha de um italiano e uma morena pelo-duro, da fronteira. Era a segunda filha. O primeiro era um varão, sempre preferido. Da mãe teve muito pouca atenção. Minha vó era filha de fazendeiro, metida a rica, e quando casou com o meu avô, italiano pobre, seguiu vivendo como se fosse abastada. O resultado eram as crises, pois o vô era do tipo bondoso e sempre acabava sendo levado no bico nos negócios. Tudo o que fazia não dava certo. Teve bar, e perdeu tudo, tinha dó dos clientes pobres e não cobrava. Depois, foi plantar arroz. Viveu até os 70 anos plantando em terra alheia, na dura vida de agricultor sem os meios de produção. Da infância, a mãe contava que a vó a deixava trancada no quarto e ia com o vô para os bailes de campanha. Ela, no escuro, sozinha e com medo, se apegava nas novelas do rádio. Era tudo que tinha. Por isso, talvez, o seu romantismo incurável. Apaixonou-se, numas férias, quando tinha 15 anos, mas o guri era de Porto Alegre e acabou indo embora quando o verão terminou. A minha vó, que a queria casada com meu pai, escondia as cartas que chegavam semanalmente da capital, e a mãe achou que tinha sido esquecida. Aquilo a destruiu. Por fim, aceitou casar, afinal, que outro destino poderia ter? Nunca foi feliz no casamento, nunca esqueceu seu amor. De bom, teve os filhos, era o que dizia. Essa foto tirada lá pelos seus 18 anos mostram uma guria pobrezinha, bem mal vestida, de chinelo de dedo, cigarrinho na mão e já com aquele olhar meio desesperado que lhe era característico. Tinha o nariz adunco, feito águia, uma belezura que não herdei. Era uma mulher triste. Foi triste até o fim. Morreu do pulmão, a doença da tristeza. Por mais que fizesse, nunca consegui lograr que ela recuperasse a alegria. Essa é também minha grande dor. Olhando pra ela, nessa foto que emerge das brumas do passado, me vejo, e me sobram as lágrimas.
Estamos a um passo de bater a cota de 100 mil mortes por Covid-19, e não precisaríamos estar vivendo isso. Como muitos países do mundo já haviam passado pela experiência da pandemia ficou fácil para nós agirmos rápido e certo. Sem vacina e sem remédio, a única alternativa para não morrer gente era o isolamento social e a testagem em massa. O fechamento de tudo, de maneira radical, por um ou dois meses, a quarentena para os sintomáticos e a realização de testagem massiva para evitar que gente assintomática ficasse por aí, transmitindo o vírus. Mas, nas últimas eleições, os brasileiros decidiram colocar na presidência um ser que, além de ser o mais fiel representante do capital, é também a concretude do mal. Tudo nele exala enxofre e o que se viu foi o óbvio. Nenhuma ação para barrar a desgraça. Pelo contrário. As ações foram para acelerá-la, torná-la maior. A pandemia chegou e o governo federal não tomou qualquer atitude para comandar a ação de combate de maneira unificada. Pelo contrário. Mandou embora os ministros da saúde que passaram pelo cargo e que não tiveram coragem de seguir as ordens, que eram as de não se isolar e sequer de usar máscaras. O próprio governante, que veio dos Estados Unidos, depois de um encontro com um infectado, decidiu sair às ruas sem máscara, abraçando e tocando as pessoas. Apesar de todos os que estavam com ele no avião terem sido infectados, ele disse que não foi, e se recusou a mostrar os exames. Os meses se passaram, as mortes foram acelerando. Primeiro nos estados mais empobrecidos, do norte e nordeste. Centenas e centenas de covas sendo abertas sob os olhos da nação e o presidente fazendo troça. Inexoravelmente o processo foi chegando aos demais lugares. Agora, até mesmo nos estados do chamado “sul maravilha”. Já não há leitos nas UTI e não há sequer remédios para garantir a intubação de pacientes. E os números crescendo a olhos vistos. Foram-se 50 mil, 60 mil, 70 mil e seguimos caminhando para o matadouro. Trabalhadores da saúde exaustos, massacrados, e as gentes desamparadas. Parecia não ser possível mais nada de tão ruim. O presidente então resolveu fazer outro teatro. Anunciou estar contaminado, mas que não era problema, pois ele estava tomando cloroquina, o remédio que ele quer empurrar massivamente e que não têm qualquer comprovação de eficácia. Segundo ele, é o que lhe garante passar pelo vírus. Um deboche, um acinte diante de tanta dor e desespero. Também conseguiu elevar suas doses de maldade a última potência quando decidiu vetar medidas de prevenção ao coronavírus junto aos povos indígenas, uma das frações da sociedade brasileira mais fragilizadas diante das doenças dos não-índios. Vetou a distribuição gratuita de materiais de higiene, limpeza e desinfecção de superfícies. Vetou a oferta emergencial de leitos hospitalares e de unidade de terapia intensiva (UTI). Vetou a aquisição de ventiladores e máquinas de oxigenação sanguínea. Vetou a distribuição de materiais informativos sobre a covid-19. Vetou a instalação de pontos de internet nas aldeias. Até o acesso à água tratada foi vetado, com o presidente dizendo que os índios estão acostumados a tomar água do rio. Mais deboche e maldade pura. Afinal, exterminar os indígenas tem sido uma de suas prioridades desde a campanha, quando ainda nem era presidente. Segundo ele, os indígenas devem se integrar ao corpo de trabalhadores e deixar de ser “privilegiados”. Além de incentivar invasões nas terras originárias e incentivar a queima da mata, agora ele decide vetar aspectos essenciais do programa de prevenção à COVID-19 nas aldeias. Talvez acredite que assim possa ser mais fácil e rápido acabar com as comunidades. Tudo isso parece um conto de terror e também pode parecer que é ação demoníaca de uma única pessoa. Mas, não é. O dragão da maldade não está só. Ele está acompanhado e respaldado pelas demais instituições da política oficial brasileira, como o judiciário e o congresso nacional. Tudo acontece sem que qualquer uma dessas instâncias aja em consequência. Há um assentimento total com relação a todas as atitudes de lesa pátria e de crime contra o povo brasileiro. Ainda que alguns poucos parlamentares atuem no plenário, o congresso em si segue impávido diante dos desmandos. O apoio é pleno. Vez ou outra uma notinha de repúdio, bem tímida, sem consequências. Bateremos os 100 mil mortos logo ali. “E daí? Não sou coveiro!” diz o presidente. Com ele, as demais autoridades também dizem isso, ainda que não pronunciem. Isso já seria ruim, mas tem mais. Com eles também caminham e apontam suas arminhas contra os “mentirosos e comunistas” quase 40% da população brasileira que apoiam as ações ou não/ações do presidente. O vírus é uma invenção comunista, dizem, e andam por aí desafiando as autoridades médicas, sem máscaras, devidamente autorizados pelo seu líder. Poderíamos dizer que tudo isso é um absurdo, mas, se pensarmos bem, é só o capitalismo se expressando como sempre, apenas com mais desembaraço. Aproveitando a pandemia para que alguns possam acumular mais riqueza e se desfazendo “da carga” que representam os velhos, os doentes, os desempregados. O dragão da maldade não é uma excrescência no céu azul do país. Ele é a cara visível de um sistema que normalmente se esconde sob a pele de cordeiro, mas que está aí, todos os dias tripudiando dos trabalhadores. Agora, sem pejo, ele se mostra e ri. Não tem medo. Está seguro diante da inércia, do pavor e de seus seguidores. Só mais um passo e já estarão ali, os 100 mil mortos. E mais... Ao que parece, na nação anestesiada, que vê a fileira de mortes pelo Jornal Nacional, a resistência ainda é pífia e o ataque inexistente.
Elaine Tavares. Jornalista. Humana, demasiado humana. Filha de Abya Yala, domadora de palavras, construtora de mundos, irmã do vento, da lua, do sol, das flores. Educadora, aprendiz, maga. Esperando o dia em que o condor e a águia voarão juntos,inaugurando o esperado pachakuti. Contato: eteia@gmx.net / tel: (48) 99078877
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