sexta-feira, 15 de outubro de 2021

Devagar, lá se vai a cidade



Passo pela via expressa sul todos os dias em direção ao trabalho. Não gosto daquela via rápida, que nos impede de ver. Sempre preferi a Costeira, com seu velho cais, com a visão das moradas e as figuras dos personagens diários que assomam: o velhinho limpando a calçada, o papai-noel, a senhora à janela, os cachorros. A cidade descortinada no seu existir humano. Mas, o busão vai na Expressa e tudo o que posso fazer é olhar o vazio que se forma em volta. Não é de hoje que eu digo ao meu companheiro: “não vai demorar e estão vendendo tudo isso aqui, como fizeram na beira-mar”. Digo isso com profunda tristeza porque o que pode se erguer ali são prédios de alto padrão. A vista para o mar outra vez retirada das gentes comuns. 

Pois a semana passada li o veredito que me assombrava: o vazio artificial criado pelo aterro da expressa sul vai ser vendido. O prefeito Gean fala em “revitalização”, palavra bonita que significa entrega do que é público para a iniciativa privada. E a proposta é incluir o vazio do aterro num tal de programa pioneiro do governo federal – provavelmente um desastre - que busca vender as terras da União que consideram “subutilizadas”. A venda será feita por intermédio de um fundo imobiliário, coisa que cheira mal. A proposta vem da Secretaria Especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercados do Ministério da Economia e, considerando que o governo federal está aí para destruir tudo, já se pode prever a desgraça.

As bocas-alugadas da imprensa já começaram a campanha em favor da proposta, alegando que a Expressa Sul precisa ser melhorada. Os vereadores – na sua maioria  - já se preparam para as mudanças no zoneamento e tudo o que isso traz, como o esfacelamento do Plano Diretor. Em março desse ano a mesma Câmara aprovou um total de 100 milhões de reais para a prefeitura usar em obras de infraestrutura na via, claramente ajeitando o espaço para entregar ele mais bonitinho para os empresários. A cidade ficará encalacrada com o empréstimo. E quando se diz cidade, diz-se nós, os moradores. Ficaremos com o ônus e ainda perderemos o patrimônio público. Obviamente que ninguém fala em parques ou espaços de lazer para as comunidades do entorno – a maioria suspensa nas encostas onde quase nada existe para a brincadeira e a fruição. Não. As vendas certamente serão para grandes empreendimentos imobiliários ou de eventos, afinal, para essa gente que governa, os empobrecidos tem mais é que trabalhar e dormir. Lazer é pra quem pode e afinal, tem a praia. 

O que me espanta é que tudo isso vai acontecendo sem reação. Nas redes sociais criam-se grupos que lembram uma Florianópolis de ontem, mas poucos se preocupam com a de hoje, que segue se transformando sob nossos olhos atônitos. Sei que as mudanças são inexoráveis, mas elas não precisam ser para pior. Há milhares de exemplos de cidades que conseguem mudar sem perder sua essência. 

E aqui? Que faremos? Só nos restarão as lágrimas?

***

Deixo aqui a imagem que plasmei na retina quando as dragas começaram a estender a costeira. Um profundo momento de dor: 

Assisti ontem uma triste cerimônia de adeus. Parei em frente a grande obra da Via Expressa Sul com os olhos perdidos na areia branca, que aos poucos vai nos roubando o mar. Tinha dentro do peito uma certa angústia, destas que batem, inexoráveis. Não sou engenheira ambiental, ainda não sei detalhes sobre a obra, mas uma coisa eu sei. É como se estivessem assassinando a beleza. Algo soa mal ali, principalmente no pôr-do-sol.

Refletia sobre isso e mastigava minhas mágoas quando meus olhos bateram num homem, distante de mim alguns metros. Ele também olhava a obra. Tinha o rosto vincado de sol e de mar, destes rostos que não se pode adivinhar a idade, só a profissão. Era um homem do mar, um pescador. Ficou parado por uns minutos eternos, petrificado diante da areia branca. Depois, lentamente, caminhou em direção da lama preta, velha conhecida, que fica próxima aos ranchos de pesca já em demolição.

Então começou a cerimônia. Arremangou até os joelhos as velhas calças de um tergal gris, bem desbotado. Tirou os chinelos de borracha e foi entrando na lama, pisando devagar, quase em reverência. Com os pés enterrados na sujeira do mar ele foi caminhando pra lá e pra cá. Os olhos baixos, olhando o chão, se despediam. Depois, o pescador caminhou em direção à água, já distante. 

Quando seus pés encontraram o salgado do mar ele parou e volveu os olhos para a grande draga que continuava seu trabalho, jogando areia branca, engolindo a água que por muito tempo, com certeza, embalara o seu barco. Ficou ali parado, olhando fixo, parecendo fazer força para acreditar que aquilo tudo não era um sonho. Então voltou pelo mesmo caminho, os pés enterrados na lama, os olhos de novo no chão. Chegou ao meio fio e sentou sem pressa. Foi quando eu vi. Lágrimas corriam fininhas pelo meio das rugas de sol e mar.

Era um homem dizendo adeus a um mar que foi seu abrigo por décadas. Um pescador chorando esses choros sem barulho, por isso mais dolorosos. Olhei de novo para a obra da Expressa Sul e já comungando da mesma dor com aquele homem, pensei: Qual é o preço do progresso? Do conforto? Se forem as lágrimas daquele homem, não sei se vale a pena. Não tive coragem de lhe falar e fui embora com um indelével sentimento de culpa. Quando o ônibus no qual eu ia passou pelo homem, ele continuava ali, sentado no meio fio, os pés sujos de lama e o rosto crispado de dor.

20.09.96