quarta-feira, 10 de novembro de 2021

Sobre quem me fez amar Florianópolis


 

Quando cheguei em Florianópolis passei muito perrengue. Não achava emprego em lugar algum, pois estava numa lista de "indesejados" que a RBS distribuia nos veículos. Trabalhei por uns seis anos nessa rede no Rio Grande do Sul e sempre estive vinculada ao Sindicato dos Radialistas, promovendo lutas , reivindicando etc.. Então, quando finalmente saí da RBT TV Passo Fundo para vir cursar o Curso de Jornalismo aqui na capital catarinense, imagino que foi uma festa para eles. Quem me contou isso foi o querido Ariel Botaro, que na época era diretor de jornalismo da RBS aqui. Ele falou que a ordem era não me contratar de jeito algum. Assim se fecharam as portas tanto na RBS quanto nas outras emissoras. Passei pelo menos um ano sem trabalho na imprensa e só consegui sobreviver graças a ajuda de amigos, alguns frilas, e a força que me deu minha amiga Lucimar Lara, que acabou vendendo as poucas coisinhas que eu tinha deixado em Passo Fundo, o que rendeu algum dinheiro. Além disso penhorei dois aneis de ouro que tinha ganhado da minha tia Terezinha pelos meus 15 anos.  Com isso, e com o RU, consegui me virar.

Lembro que aqueles dias eram de profunda frustração. Eu tinha de me concentrar nos estudos, e ao mesmo tempo fazer malabarismos para sobreviver. Foi duro. E, naquele período, o que me dava forças para seguir em frente no meu sonho de fazer faculdade era o escritor Flávio José Cardozo, que eu lia no Diário Catarinense. Ele tinha uma coluna diária de crônicas. Eram textos tão lindos que me enchiam de esperança. Eu queria ser como ele, ser capaz de narrar a vida com aquela delicadeza. Suas crônicas sobre a cidade iam também me fazendo amar esse lugar, tamanha a beleza que ele fazia brotar no seu texto. 

Eu morava numa pensão perto da UFSC e todas as manhãs eu levantava cedinho e ia direto para a BU ler a crônica do Flávio antes das aulas. Eu sabia que aquela maravilha que ele criava iria me ajudar a permanecer firme no meu propósito. E assim foi. Passei o primeiro ano, o segundo, consegui emprego, fui me virando e finalmente terminei a faculdade. Fui sua leitora fiel até o último dia dele no DC. Depois comprei seus livros para que eles ficassem sempre na minha cabeceira e quando eu fraquejava, lá ia eu buscar sua esccrita para me animar. Ainda faço isso, sempre.

Nunca o conheci pessoalmente, mas eu o amo com tanta profundidade que é como se fosse um irmão, ou um pai, ou um amigo. Ele é o responsável direto por eu ter ficado aqui e ter me apaixonado por essa cidade. Por isso, hoje, quando escrevo sobre Florianópolis, essa minha Miembipe, eu procuro chegar pelo menos perto da beleza criada por Flávio. Não chego, eu sei, mas ele é meu sul. Serei sempre grata a ele por abrir esses caminhos para a alma secreta desse lugar. Te amo para sempre, Flávio Cardozo, e te reverencio... És grandiosos..um dos maiores da nossa literatura nacional... obrigada.



domingo, 7 de novembro de 2021

O pai


 

O Alzheimer é doença triste, porque, ao fim, não tem cura. Não tem um remédio, nem terapia, nada. Tudo é paliativo e a sentença é cruel: as coisas só vão piorar. Então, cada fase que a pessoa vive nunca é o pior da coisa. O pior sempre está por vir. Penso que isso é o que é mais duro de aceitar. Até porque não somos um tanque de guerra e, vez em quando, fraquejamos. Há que dispender muita energia para se manter firme, alegre e propositiva. Momentos há que tudo o que queremos é desabar. Mas não dá. E esse movimento de se manter de pé, exige.

Mas apesar de tudo isso, há também os momentos de puro encantamento que, penso eu, são os que ficarão na memória, lembrados sempre com ternura infinita. Emociona-me demais o nível de confiança que o pai põe em mim. Ele simplesmente se entrega, sem receio algum. Ele simplesmente sabe que de mim não virá nada de ruim, só de bom. E mesmo quando ele fica irascível, como na hora de trocar de roupa, ele sabe. 

Todas as noites é o mesmo ritual. Tenho de fazer mil e uma peripécias para levá-lo para o quarto na hora rotineira. Assistimos ao jornal, à novela, e depois, caminha. Lá, tenho de deixar ele se ambientar. Ele anda pelo quarto, mexe em tudo que há, revira cama, o diabo. Depois vem a hora de trocar a roupa e colocar a fralda limpa. Aí há que se agarrar com todos os santos. Eu distraio ele o mais que posso e quando ele finalmente decide sentar, eu tenho que puxar, num movimento rápido, a calça, porque ele se recusa a tirar.  Aí ele senta, mas fica xingando até a minha última geração. Briga, reclama, manda alguns tapas — dos quais me esquivo como uma ninja — e chora de mentirinha, pra me compadecer. Eu vou deixando ele fazer tudo isso ao mesmo tempo que, conversando, tiro a calça, a fralda suja e a sandália. Ponho a fralda limpa e preparo para a segunda parte que é fazê-lo levantar, para realizar a limpeza das partes.  Aí valei-me, São Pancrácio! É a terceira grande guerra mundial. Feito tudo, ele se acalma. Eu beijo sua carinha sapeca e digo:

- Pai, tu sabes que eu faço tudo isso porque eu te amo, né?

E ele, com cara de surpresa.

- Mas é claro que eu sei, ora bolas...