quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Seu Tavares faz 90 anos


Outro dia, enquanto vínhamos do quarto para a cozinha, no passo lento e inseguro, falei com o pai:

- Seu Tavares, sabia que o senhor vai fazer noventa anos? 

E ele, me olhando espantado, abriu um sorriso e disparou, incrédulo:

- Capaz?

Pois é. Sem nem a gente saber como, ele chegou aos 90. Tem sido um caminho bem difícil desde os 86 pra cá. A doença de Alzheimer é muito cruel e vai incapacitando a pessoa, assim, devagarinho. Lembro que quando ele chegou aqui conseguia ir ao mercado sozinho, ligeirinho e serelepe. Agora, os passinhos são trôpegos e ele precisa se amparar. Alterna momentos de alheamento com lucidez, mas no geral passa bem os dias. Dou atenção 24 horas, converso sobre tudo, explicando tim-tim por tim-tim as coisas da casa, os problemas que vivencio, as notícias que vemos na TV, os filmes. Falamos sobre o clima, sobre os animais, sobre política, sobre tudo. Procuro não tratá-lo como criança, mas como uma pessoa adulta que precisa saber o que se passa. No geral ele é bem curioso, tudo quer saber. 

No mais das vezes ele não consegue pronunciar as palavras certas. Brinco que ele agora fala a língua do Cheewbaca, por estar vivendo muito tempo entre os Wookiees. Ele sempre ri quando eu falo isso.  Mas, o fato é que assim como eu entendo o Cheewbe, também entendo tudo o que ele diz. Respondo todas as suas perguntas e ele fica bem satisfeito com as respostas. Nós passeamos bastante pelo quintal, tomamos sol, comemos muita fruta do pé, falamos sobre Quaraí e Uruguaiana, cidades que ainda habitam sua memória, e cuja lembrança sempre suscita uma expressão de grande contentamento. Estamos sempre conversando e a Clau, que é a companheira que fica com ele de vez em quando para eu poder dormir ou trabalhar, faz o mesmo. Ela também entende a língua do Cheewbacca, ri com ele, e isso é muito bom. 

Agora que a doença vai avançando ele tem muitas infecções urinárias e isso acaba debilitando seu corpinho já tão frágil. A última delas fez com ele perdesse a manha de caminhar. Só agora, nos últimos dias ele voltou a andar, e foi uma alegria, porque pensei que não voltaria. Ele é valente e teimoso, gosta de fazer tudo sozinho. Eu dou área, ficando por trás para amparar se necessário.

No final do dia ele toma um copo de vinho enquanto tomamos uma cerveja gelada e assim vamos indo, nos dias que se repetem. Completou hoje 90 voltas em torno do sol. Uma tremenda aventura, quase um século. Tem vivido plenamente, de acordo com seus princípios de honestidade e honra. Trabalhou muito e agora, já sem as imposições da moral, apenas frui da existência. O que faço, como filha e parceira, é garantir todas as condições para que encerre sua extraordinária caminhada na paz e na alegria. O maior presente que ele me dá é justamente isso: ouvir o seu riso. De minha parte, sigo aqui, segurando sua mão... e vamos caminhando...