sábado, 12 de novembro de 2022

A voz das comunidades na Audiência Pública da Moradia




O relato é longo, mas necessário, porque é preciso que as vozes se expressem

Muitos dos que vieram para a Audiência Pública sobre a Moradia neste dia 08 de novembro, na Assembleia Legislativa, já fizeram esse caminho infinitas vezes. Como muito bem lembrou o padre Vilson Groh essa é uma luta que já passa dos 40 anos aqui na capital. E só essa informação já mostra o tamanho da irresponsabilidade dos governos municipais que se sucedem e não mudam as políticas. Desde o começo dos anos 1980, quando a cidade viveu um grande processo de chegada de migrantes, até hoje, quase nada mudou. Naqueles dias, era o Centro de Apoio e Promoção ao Migrante, o Caprom, a instituição que ajudava a organizar as famílias, contando com estudantes da UFSC de várias áreas. Hoje, muitos são os movimentos, e o problema da falta de moradia só cresceu. 

Viver em Florianópolis é coisa difícil. Como a cidade cresceu amparada na lógica do lucro e da especulação imobiliária, para os mais empobrecidos pagar um aluguel é sempre algo quase inalcançável. A cidade os quer para prestar serviços, mas não se importa sobre onde eles vão descansar a cabeça, ou se não vão. E a prefeitura faz ouvidos moucos, usando a letra da lei para expulsar e criminalizar, esquecendo-a quando é para garantir direitos. Hoje, mesmo as chamadas cidades-dormitórios, na grande Florianópolis, como Palhoça e São José, também já entraram na onda da especulação e mesmo lá pagar um aluguel é quase impossível. Assim que para as famílias não resta alternativa que não ocupar terras urbanas que não cumprem qualquer função social. Ali, levantam suas casinhas e travam duras batalhas com as prefeituras e a polícia militar. São chamados de “vagabundos”, “bandidos”, mas na verdade são apenas homens e mulheres trabalhadoras, com seus filhos, buscando viver com dignidade. 

E foi essa gente que, mais uma vez, encheu o Auditório Antonieta de Barros para discutir uma saída para a ameaça de despejo que paira sobre duas cabeças. A audiência foi chamada pelo Deputado Padre Pedro (PT) e juntou instituições e comunidades para um diálogo. Como era de esperar, os prefeitos das cidades envolvidas não vieram. Restaram outras instituições que compareceram, com representações,  e reafirmaram o compromisso em negociar. 

Foi o caso da Procuradora Ana Lúcia Hartman, do Ministério Público Federal. Ela lembrou que na capital do Mercosul o mais urgentes problema a resolver é o da moradia e que o MP está priorizando a regularização urbana nos núcleos de baixa renda, já que o IPUF não trabalha nisso. O defensor público, Marcelo Scherer da Silva, apontou a necessidade de discutir políticas públicas nesse momento de crise, e principalmente as voltadas para as populações mais vulneráveis. Lembrou que o déficit habitacional existe não porque não tem verba, mas sim porque as políticas desenvolvidas são excludentes. A diretora de Habitação e Regularização Fundiária, Aline Ferreira, se colocou à disposição para ouvir as demandas e afirmou que as portas da Secretaria De Desenvolvimento Social do Estado estão abertas. 

O Comandante do Apoio Especializado da Polícia Militar, coronel Luciano Leite Pereira, disse que não há momento mais desgastante para ele do que quando recebe um pedido de reintegração de posse porque sabe a dificuldade que as famílias passam. Também afirmou que sob seu comando todas as ações sempre foram feitas com os devidos cuidados para garantir a segurança das famílias. “Nós não somos inimigos dos senhores. Nasci no Morro da Caixa, sou igual aos senhores. A minha casa, pela qual lutei anos, hoje está sob o risco de demolição. Mas, tudo isso é por força de legislação”.  A resposta a esse depoimento viria depois nas dezenas de falas do povo das comunidades.

O Secretário de Administração do Município de Fraiburgo, Rui Brown, veio falar das ocupações no município e disse que a prefeitura se sentia impotente para resolver a situação. Negou que quisessem desalojar famílias, no que foi prontamente rebatido pelo representante da ocupação Vila União, Jilson Carlos de Souza. Segundo ele já faz algum tempo que os moradores apontam caminhos e não são ouvidos pelo prefeito. Contou também que o município tem uma área, anexo ao bairro são Miguel, de 300 mil metros quadrados. Por que não utiliza para moradia? E denunciou que tem uma lei que diz que o loteamento Santa Sara é 50% para construção industrial e 50% para moradia popular, mas o prefeito não cumpre a lei. “Nós sabemos o que fazer. Há três décadas que Fraiburgo não tem um loteamento de moradia popular, mas nós temos a solução”.

O liquidante da Cohab em SC, Júlio Cesar Pereira de Souza, disse que em 2017 o governo decidiu que a politica de habitação sairia da Cohab e sua função agora é terminar os processos fundiários que ficaram para trás. “Temos trabalhado para garantir o direito à moradia daqueles que já estão na casa e temos projeto que vai tratar da doação de vários imóveis que já estão ocupados”. E Ricardo Moa, ex-liquidante da Cohab, representando a sociedade civil, disse que é contra a reintegração na forma como ela se dá, conclamando para um pacto federativos visando construir solução e evitando o drama das famílias. 

Felipe Bezerra, da ocupação Marighella se manifestou dizendo que o estado só é eficiente com os empresários, por isso os moradores precisam se mobilizar e lutar, oferecendo as soluções. Só que nunca são ouvidos. E alertou: “Só vamos desistir quando conseguirmos nossa moradia”.

Bianca, da comunidade Benjamim, lembrou que a prefeitura de São José é ré em processos envolvendo a construção da avenida Beira Rio justamente por questões ambientais, a mesma que demanda a retirada das famílias da área. Lembrou que há decisão do STF dizendo que diante de desocupação coletiva há que ter comissões de negociação que garantam o direito das famílias. Eles apresentaram propostas de recuperação ambiental da borda do Rio Forquilhinha com a manutenção das famílias que ali vivem, regularização fundiária das comunidades Benjamin e Fé em Deus de forma planejada resguardando ao máximo o traçado das vias sem necessidade de despejo para garantir a sociabilidade coletiva e sem prejuízo para os moradores que vivem  e trabalham no entorno. “Não queremos aluguel social, queremos ficar ali. Moramos nesse lugar há 30 anos”. 

Odair, também da Comunidade Benjamin, apontou que são mais de 300 famílias as que receberam a ordem de despejo por causa da obra da rodovia. “Estamos ali há 30 anos e não queremos a promessa de aluguel social. É tudo promessa. Estamos sem dormir, sofrendo, tem havido discórdia na comunidade. Eles dizem que nós não podemos estar nos projetos porque não temos cadastro. Ora, estamos ali há anos”.

Marta, da Comunidade Anita Garibaldi, falou que estão à beira de ser despejados e de ver os filhos na rua. Respondeu ao comandante da PM afirmando que a polícia não está do lado das famílias. Quando chegam, entram com o fuzil para fora, como se os moradores fossem bandidos. “E o que é nosso direito? A gente tá ai trabalhando enquanto vocês tão curtindo.. e nós é que somos vadios. Acho que os vadios estão tudo de terno e gravata. O dinheiro que é pra ser povo, cadê? Os meus filhos brincam de ocupação: tem o advogado, o pessoal do movimento e a polícia armada pra atirar em nós. É disso que meu filho brinca, porque ele vê o nosso dia-a-dia”. 

Giane, da Ocupação Marighella denunciou que as famílias estão  sem água, sem luz, sem banheiro adequado, que as crianças brincam no barro. Afirmou seu direito de morar e convidou as autoridades a irem até Palhoça para ver a situação. “Não somos bandidos, mas temos medo, porque nos ameaçam. Queremos pagar luz, água, nós não somos ladrões. Somos pessoas honestas, pais e mães que querem o melhor para ou filhso. Não temos opção: ou pagamos aluguel ou comemos”. 

Samara, da ocupação Marielle mostrou que eles estão numa área nobre e por isso estão sofrendo, porque as pessoas lá não gostam de pobre. “Eles querem a nossa mão de obra barata, mas não morando perto. Só que temos direito a morar. Não queremos aluguel social nem indenização, queremos a reurbanização. Na pandemia enquanto o prefeito usava a prefeitura de motel a gente estava lá morrendo de fome e pela pandemia”, Quanto a polícia ela também rebateu o comandante. “Já tivemos lá na ocupação um policial que jogou uma bomba de gás numa casa que só tinha crianças”. 

Jilson, da Vila União, Fraiburgo também rebateu o secretário da cidade. Lembrou que as famílias são remanescentes do Contestado, gente que foi assassinada pelos coronéis que seguem mandando. “Os mesmo que hoje querem nos matar. A fala do comandante da policia é um mundo de fantasia, porque nós passamos terror. Uma das nossas companheiras agredidas está aqui”. Apontou que dos quase 40 mil habitantes da cidade,  12% vivem abaixo da linha da pobreza. “Hoje, 4.400 pessoas não vão fazer uma refeição decente e são essas que moram na Vila União. Só no bairro São Miguel 110 famílias vivem em áreas inadequadas. O déficit é de quatro mil moradias e não 350. Há soluções, falta é vontade da administração. São três décadas sem moradia popular em Fraiburgo. Lá falta dinheiro pros pobres, mas não para os empresários”.

Monique e Davi , da ocupação Vale das Palmeiras, insistiram ser uma vergonha ter de estar ali lutando por algo que é deles. E enfrentando a polícia “O soldado que tá na ocupação não é esse que o senhor falou, comandante. Lá dentro a coisa é outra. Nós temos medo da polícia sim”. 

Nadimara, da Ocupação Elza Soares também falou de medo. São 103 famílias, 150 crianças, duas gestantes e seis idosos que podem ficar sem casa. “Queremos ficar na área que não cumpre a função social. A lei nos assegura esse direito. Os PM não entra com respeito na ocupação, a gente é bandido pra eles”.

Felipe Bezerra, da Ocupação Marighella e Despejo Zero mostrou que o déficit em Santa Catarina é de 203 mil moradias. E os números mostram que existe uma cidade maior do que Joinville só de sem-teto: são mais de 600 mil no estado. E o programa do governo está anunciando a construção de 615 casas para o ano que vem. São 132 mil famílias  ameaçadas de despejo. Esse é o quadro e por isso existe a luta por Despejo Zero. No Brasil são 33 milhões passando fome, 14 milhões de desempregados, é um processo que tende a piorar, por isso são necessárias políticas sérias. 

Jeferson, das Brigadas Populares e ocupação Contestado  denunciou que já se vão 10 anos de luta naquela ocupação, resistindo a seis tentativas de despejo. Uma comunidade que surgiu de um despejo. E o “programa habitacional” do governo é sempre o mesmo, um ginásio e depois um aluguel social de três meses. “Precisamos criar uma comissão de negociação com o TJ, MP e movimentos sociais que cuide desses processos fundiários e garanta moradia digna. Hoje só falta a prefeitura de São Jose aceitar um terreno da união, mas ficam sem agir”.

Maia, da ocupação Vila Esperança, contou que em 2018 ela viu famílias com suas casas demolida, coisas quebradas, os soldados roubando material. “E eu ouvi dos seus soldados que eu não tinha o direito de ir e vir. Tem que informar pra eles que nós temos direitos. Nós temos educação, acho que quem tem de estudar são os seus soldados. O condomínio do outro lado destruiu floresta e não aconteceu nada com ele”.

Tais e Domingos, da ocupação Beira Rio, também falaram das demolições acontecidas na comunidade em 2017. As casas foram destruídas e teve pessoas que morreram de tristeza por isso. Morreram mesmo. “Temos famílias dormindo na rua. A polícia não é exemplar, eles nos humilham, apontam armas pra crianças. Nos tiraram de casa numa chuva. Semana passada a policia entrou na rua, espancou meu sobrinho sem ele estar fazendo nada”.

Elaine Salas, do movimento 8M falou que a política habitacional em Santa Catarina é casa vazia, é nada. Uma casa que não existe. Lembrou o quanto a falta de um endereço impede as pessoas de acessarem serviços de saúde, escola, creche, assistência social. Como pagar um aluguel de 1.200 reais? “Comandante, me dá seu telefone que eu quero transmitir ao vivo como agem os policiais quando eles vierem”. .

Vladimir, da Nova Esperança insistiu que é hora de parar com os discursos bonitos. Há que ter solução. “Nós não moramos ali porque a gente quer, é porque não conseguimos pagar um aluguel. Nós construímos a casa de vocês, somos os  pedreiros, os trabalhadores, e não temos nada, somos tratados como um nada”.

Padre Vilson Groh trouxe a memória das lutas nomeando pessoas como o Loureci, a Elisa e o Murilo que já estavam nessa batalha no final dos anos 1970. “Estou com 41 anos de vida e de luta na cidade e até hoje não conseguimos construir politicas publicas para os municípios e para o estado. Sugiro que façam mesmo uma comissão realmente operativa com o movimento, instituições e MP, com propostas eficazes. São mais de 40 anos vivendo isso na periferia... com raras exceções de conquista”.

Renato, da ocupação Amarildo trouxe o exemplo dessa luta que deu frutos. Hoje eles têm um território fruto de ocupação, o que mostra como a luta pode dar resultado.

Albani denunciou que ele mesmo quase foi morto em 2020 por um policial. E que o tratamento dado nas ocupações não é mesmo da Beira-Mar. 

Luzia Cabreira, advogada do Igentes também apontou a necessidade de uma solução para as famílias ameaçadas de despejo, e uma solução que seja o ginásio precário. O vereador Marquito insistiu para que a comissão a ser formada tenha participação das comunidades. Por fim, Loureci apontou a necessidade de se firmar compromissos que tenham o povo organizado como centro. Sugeriu ainda que o judiciário faça uma audiência pública porque eles são a salvaguarda do direito. Denunciou que a câmara de São José não fez audiência pública para discutir a obra da beira rio e os impactos ambientais que ela causa. “O prefeito não vem aqui porque é covarde. Nós queremos ser recebidos pela Câmara e pelo prefeito. Vir colocar promessas não aceitamos”.

Fechando a audiência o Padre Pedro se comprometeu de conversar várias autoridades para compor a comissão, bem como garantir a participação das comunidades. E assim encerrou mais uma etapa dessa luta sem fim. 

No dia seguinte, na comunidade de Pedro Castanho, no Ribeirão da Ilha, onde vivem 100 famílias, a polícia entrou com a costumeira violência e a Celesc cortou a luz, levando inclusive os postes comprados pelos moradores. O exemplo mais acabado de tudo o que os moradores denunciaram no encontro. 

A luta pela moradia segue porque morar é um direito.